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domingo, 29 de novembro de 2015

MISTÉRIOS NA ILHA DO INVERNO


Por: Mauro Rego
            - O mal existe! – dizia a velha cigana contemplando a imensidão do campo à sua frente. O bando já havia partido e ela, que com 94 anos se tornaria uma carga incômoda numa viagem apressada, ali ficara na esperança de que seus netos viriam resgatá-la mais tarde.

            O que havia causado a debandada repentina do bando? Certamente algum negócio mal feito ou o roubo de gado perpetrado por algum dos ciganos e que atraíra a atenção dos criadores da região... Tantas vezes ela alertara para o perigo dessas ações, mas o povo cigano parecia feliz em viver sempre correndo, perseguido por aqueles a quem causavam prejuízos.

            Ela continuaria à espera... E a maldição que pesava sobre a Ilha do Inverno, nos campos de Anajatuba, seria abolida durante a sua permanência ali, porque os espíritos dos seus ancestrais iriam atender aos seus pedidos. Breve seus netos chegariam e, com esse serviço, ela pagaria o conforto de sua acolhida e voltaria ao convívio de seu povo.

            Muitos vaqueiros chegaram e fizeram muitas perguntas aos moradores que informaram da partida do bando, mas ela não fora molestada porque não saía no terreiro da casa, permanecendo acocorada na cozinha, abanando o fogo do fogão de tacurubas.

            Na Ilha do Inverso morava um dos mais prósperos criadores de gado da região. Da varanda de sua casa assoalhada, edificada sobre mourões com mais de um metro de altura, podia contemplar, mesmo nas manhãs de inverno, a grande manada branca que constituía seu rebanho de mais de quinhentas reses, mas que estava sendo dizimado.

            A velha cigana, agachada junto ao fogo, falava da força maligna que era atraída por muitos dos pecados capitais e, entre eles, a inveja parecia predominar perigosamente. Alguém da ilha estava dominada por esse pecado e ela não haveria de partir antes de descobrir a causa por que o gado do “seu” Gregório estava se acabando. Cada dia era uma notícia diferente: ou era mordida de cobra, ou era porque se atolara na proximidade de um dos açudes ou misteriosos desaparecimentos. Quase toda semana uma rês era encontrada morta ou sua falta era sentida pelos vaqueiros.
            A cigana passou a observar as pessoas que visitavam a casa para ver se descobria alguma coisa. Já havia percebido que uma das moradoras da Ilha constantemente aparecia, sempre para pedir um pouco de sal. Embora não fosse vidente, percebia a presença de pessoas maldosas.  A presença dessa moradora passou a incomodá-la e isso foi despertando certos centros psíquicos de seu corpo, pois, lembrando-se dos conselhos de seus ancestrais, passou a concentrar-se por vários minutos diários na região se seu umbigo onde sabia estar situado o plexo solar.
            Uma estranha intuição passou a tomar conta de seus pensamentos. Todas as tardes ela vagava pela capoeira, além do quintal da casa, à procura do que considerava eficiente para afugentar o mal. Raízes e folhas colhidas nessas pequenas incursões pelo mato eram cozidas e a água era depois aspergida nos cantos da casa e no curral.

            Jamais se esquecia, antes de adormecer, de invocar os seus antepassados, pedindo iluminação para descobrir a origem do mal que se abatera sobre o fazendeiro. E a moradora de quem desconfiava já havia até insinuado, em conversas soturnas, que a velha cigana poderia estar atraindo essas desgraças.

            A tristeza se abateu sobre a família que via seus dias de prosperidade se extinguirem.  As reses que sobraram passaram a ser sacrificadas para o sustento da casa.

            Um dia, uma das sobrinhas do fazendeiro que ali morava começou a arrumar a trouxa para partir. Não suportava mais ver tanta riqueza se acabando... Enquanto arrumava suas coisas, percebeu a falta de uma blusa vermelha, presente de sua tia, da qual tanto gostava. Quando desistiu da busca, a cigana pediu que aguardasse mais uns dias e que permanecesse alguns minutos ao seu lado para que ela a benzesse e pedisse a proteção dos espíritos para a sua viagem.
            Nessa noite acigana sonhou que visitava um cemitério e alguém lhe dizia que cavasse ao pé de uma determinada cruz que iria ter uma surpresa.      Confiante na orientação de seus ancestrais, indagou pela manhã onde eram sepultados os mortos da região. Ao saber que era no cemitério de Laranjeiras, logo que se levantou, na manhã seguinte, comunicou sua decisão de ir até ali e, embora os moradores da casa insistissem para que não saísse sozinha, não desistiu de seu desejo. Por decisão de D. Josefa, dona da casa, a sua sobrinha a acompanharia. Durante o trajeto, por duas vezes pediu para parar a fim de recuperar as forças. Finalmente, já o sol alto, conseguiu chegar ao destino.  

            A Ilha do Inverno fazia parte de um grupo de ilhas campestres cuja exuberância atraía os viajantes que por ali passavam em direção ao Curral da Igreja, município de Arari, onde atravessavam o rio Mearim em busca da região central do Maranhão. A distância entre essa ilha e o lugarejo Santa Rosa, na fralda do morro do mesmo nome, na época no lado norte, talvez não fosse mais que três quilômetros, mas o verão intenso, que cobria o campo de torrões de terra ressequida, tornava penosa a caminhada. 

            Após alcançar a orla do campo, ainda havia um pedaço de caminho a percorrer. Ali eram poucos os moradores. Talvez tivesse apenas duas ou três casas de palha, entre as quais a do vaqueiro e agricultor Bento Rêgo, que tinha sérios problemas de audição e era casado com D. Joana. Dali se podia contemplar a exuberância das ilhas, quase todas atualmente devastadas, pois os proprietários, sem nenhuma orientação, resolveram fazer quintas para o gado e destruíram a vegetação que protegia as terras, constituída de criviris e pindobas. Hoje a Ilha do Inverno, a Ilhota, a Ostra, a Malhada do Algodão e a ilha Cantanhede oferecem um espetáculo triste que nem lembra o esplendor que tinham no início do Século XX.
 
Finalmente chegara ao seu destino. O cemitério das Laranjeiras é um dos mais antigos do município, embora esteja abandonado. Ali, o fazendeiro Antonio Rodrigues Lima, no início do século XVIII, prometera à imagem peregrina de Nossa Senhora do Rosário do Sipau, que construiria uma capela em sua homenagem.

            Mais tarde o seu grupo político, liderado pelo Comendador Rosa, escolheu a povoação Santa Maria para ser a sede do município que pretendiam criar e para que isso fosse possível, a Coroa Portuguesa exigia que no local destinado à sede houvesse uma capela, uma cadeia e edificações capazes de abrigar a Câmara Municipal e outras repartições públicas.

            Antonio Rodrigues Lima que já havia juntado parte do material naquele lugar, atendeu ao pedido do Comendador e transferiu tudo para a povoação Santa Maria, a fim de garantir a fundação da Vila de Santa Maria de Anajatuba. Talvez por ter contrariado as forças sobrenaturais alterando o local que fora o escolhido para cumprimento de seu voto, o rico fazendeiro de então morreu em um estado de pobreza tamanho que, segundo os historiadores, só foi enterrado na igreja matriz, graças a contribuições de seus amigos.

            Chegando ao cemitério, a velha cigana começou a procurar as coisas que divisara no sonho. Não encontrou a cruz, mas enquanto visitava os túmulos, percebeu que a moça que a acompanhava parou e persignou-se diante de uma cova antiga. Indagada, a moça informou que ali estava sepultada a sua avó materna. Não havia mais a cruz e a garota falou dessa falta indicando onde deveria estar. Sobre a cova ainda estavam os seus restos.

            A cigana agachou-se e, com os restos da cruz destruída, começou a cavar no lugar onde a garota lhe dissera que estaria fincada. Pouco abaixo da superfície encontrou restos de um pano vermelho, já bastante danificado. Ao tirar a peça do chão, ouviram um assobio fino e longo que causou um arrepio em ambas e a garota exclamou:
            - É a blusa que estava sumida!
            Juntas começaram a congeturar como poderia estar ali aonde a família só ia no dia de finados. E estavam ainda no mês de julho, longe, portanto, da última visita...

            A cigana persignou-se, pronunciou uma espécie de oração em uma língua estranha e, colocando a roupa em um cofinho que levara amarrado à cintura, convidou a sua companheira a voltar para casa, onde chegaram depois do meio dia. Por alimento, havia comido apenas algumas guapéuas e amejus colhidos na orla do campo.

            Ao chegarem à fazenda, encontraram a moradora que, uma vez mais, tinha ido pedir um pouco de sal. Quando a garota falou do achado, ela despediu-se e saiu às pressas. D. Josefa  reconheceu a blusa, embora já estivesse bastante estragada. E enquanto comentavam o ocorrido e ouviam as estranhas preces da cigana, chegaram três vaqueiros que já tinham sido despedidos, conduzindo cinco das reses que estavam desaparecidas.


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