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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

AS ESTRIPULIAS DE HOMEM BRANCO







Josemar Lima                                                        Série Crônicas – ANO IV/nº 38/2017


Numa tentativa de recuperá-lo de seus dois ou três principais vícios, o então prefeito de Itapecuru Mirim, Nonato Cassas, contratou-o como vigia noturno da Praça Gomes de Sousa. Ali, sentado nas escadarias do monumento do ilustre conterrâneo, ele contava para uma plateia de adolescentes que prá lá se deslocavam todas as noites para o famoso mingau de milho de Dona Domingas,  e para ouvir atentamente as suas mais emocionantes estripulias da arte que levou à cruz Dimas e Gestas, no mesmo dia da crucificação de Jesus, igualmente condenados por Pilatos.

““Eu era um desses que não perdia as estórias contatadas pelo” famoso” Homem Branco, nos seus raros momentos de sobriedade.

Ele dizia que todas as estratégias e táticas adotadas em suas incursões noturnas, com algumas inovações que ele mesmo introduzia, aprendera no período que esteve a serviço do exército brasileiro, versão que muito tempo depois foi desmascarada quando ele teve que apresentar a documentação para registro de empregado e o seu certificado era de dispensa de incorporação, Reservista de Terceira Categoria.

Quando o conheci, na década de 70, aparentava ter uns quarenta anos e era de estatura mediana. Moreno claro, cabelos lisos, falava bem o português e até arranhava palavras em castelhano, que dizia ter aprendido quanto estivera uma semana em Buenos Aires, numa excursão de uma corveta da Marinha. A única palavra que eu o ouvir pronunciar em espanhol foi “mujer”, onde ele substituía o “j” por dois “r”, acertadamente. Depois fiquei sabendo por um tio meu que também gostava da pinga, que essa palavra ele tinha ouvido assistindo a um filme cowboy, onde um bêbado apaixonado imitava as músicas do argentino Carlos Gardel.

Soube também de algumas manias que o nosso personagem cultivava: Só fazia suas refeições se fossem servidas em um prato de esmalte e uma colher enferrujada que ele mantinha como lembrança de uma incursão malsucedida a um hotel em Teresina, onde a colher e o prato tinham sido os dois únicos produtos de uma operação planejada com muitos meses de antecedência.

Se sua pobre mãe por esquecimento o servisse de outra forma quando ele chegava alcoolizado, ouviam-se imediatamente os berros:

-  Mãe, quero meu prato de esmalte e minha colher enferrujada!

Essa, na verdade, era uma marca registrada de suas empreitadas; geralmente terminavam mal, para o vilão, tal qual acontece no desenho animado do Coyote e Papa-Léguas. As armadilhas arquitetadas pelo Coyote sempre se voltam contra ele próprio.

Certa noite, sempre no mesmo local e com a mesma plateia, contou as presepadas de uma operação na Farmácia de Seu Orlando Mota, que se localizava na Avenida Gomes de Sousa, em frente ao Colégio Mariana Luz.

Era uma noite chuvosa e já passava da meia noite quando ele escalou o muro da residência onde também ficava o estabelecimento comercial. Não teve dificuldades, pois levou dois belos bifes para distrair os cachorros.

Subiu no telhado e com cuidado deslocou algumas telhas de fabricação artesanal, serrou uma ripa entre dois caibros e desceu para cima da parede de sustentação do teto. Daí para o assoalho de ladrilhos vermelhos onde ficava o balcão da farmácia e a gaveta sem trancas onde era guardada toda a feira do dia, era uma altura de quase quatro metros, situação que ele já verificara anteriormente quando, disfarçadamente, ali adentrou com a desculpa de comprar um envelope de Melhoral.

Ele tinha planejado detalhadamente como descer daquela altura sem usar escada ou cordas. Recorreu, então, a uma das técnicas que dizia ter aprendido na carreira militar: tirou dos bolsos duas barras do Sabão Martins, o mais famoso sabão da época em que sabonetes eram para ricos; e que tinha como reclame, como são clamados os anúncios de propaganda atuais, “Uma Mão Lava a Outra; Sabão Martins Lava das Duas” e, com um barbante, fixou-as sobre o solado das botas de vigia da prefeitura.

 Segundo sua teoria, as barras funcionariam como potentes amortecedores para seus pés e evitariam qualquer ruído que pudesse despertar Seu Orlando Mota, considerado o médico da cidade, grande tribuno, cuja característica era ir aumentando o tom da voz paralelamente ao desenvolvimento do discurso, e conhecido pelas suas respostas ácidas à perguntas idiotas ou inocentes como aquela que fizera uma senhora:

- Seu Orlando faz mal tomar leite com catarro? A resposta veio com gosto de gás! – Se o seu estomago suportar, tome!

Voltemos ao Homem Branco, conhecido assim, por tratar todo mundo do sexo masculino como homem branco, para ele os indivíduos não tinham nome, sempre era “homem branco”! As mulheres ele as chamava de “Damas”. 

Nós o deixamos preparando o pulo de uma parede com aproximadamente quatro metros de altura, com duas barras de sabão sob as botas sete léguas e, ainda, com uma vela em uma das mãos. O salto foi espetacular e, como planejado, o sabão amorteceu a queda e o ruído foi mínimo. Depois e esvaziar as gavetas, pegar alguns vidros de remédios nas prateleiras, tirou a trava de uma das portas e saiu tranquilamente com destino ao seu casebre que se situava na Trizidela.

Na manhã seguinte a notícia espalhou-se pela cidade e chegou até ao delegado de polícia que imediatamente convocou um guarda para ir até a casa do suspeito. Quando o emissário bateu à porta a mãe do Homem Branco já foi saindo com um maço de notas nas mãos e uma bacia de barro com vários frascos dentro e pendido chorando para não levarem seu filho preso pois ele se encontrava muito doente.

O guarda entrou na pequena casa e lá no quanto encontrou o bandido trapalhão deitado sobre uma esteira de palha de babaçu e, junto a ele, vários frascos de “Regulador Xavier”, um medicamento indicado para quando as regras das mulheres atrasavam, mas que continha um alto teor de álcool. Homem Branco torcia-se de dor nas cadeiras e, dessa vez, livrou-se da prisão.

Outra estória que ele contou referia-se ao roubo dos castiçais que ele fizera da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, segundo ele com autorização prévia de São Benedito, após uma conversa franca que travara com santo ...

A última vez que o vi estava completamente embriagado e falava mal do prefeito que o tinha despedido do emprego só porque ele teve a brilhante ideia de deixar apenas uma lamparina em seu lugar na praça e trocar o rifle do patrimônio da prefeitura por seis litros de conhaque São João da Barra.

Assim era “Homem Branco”, uma figura folclórica que vagou por muitos anos pelas ruas de nossa cidade e ajudou a compor um mosaico de estórias e dramas do nosso tempo.




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