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quinta-feira, 2 de março de 2017

Um Mergulho Rumo às Nuvens


 

SÉRIE CRÔNICAS – ANO IV/nº 39/2017
   Josemar Lima

No último dia 17/02, numa viagem rápida a Itapecuru Mirim, ao atravessar a bela ponte de concreto armado que liga o centro da cidade ao bairro Trizidela, que numa crônica de Zuzu Nahuz ele afirma denominar-se oficialmente de Ponte Governador Antônio Muniz Barreiros, deparei-me com cenas que me fizeram voltar ao tempo em que tinha apenas quatorze aninhos, especialmente ao ano de 1964, quando houve uma grande enchente do Rio Itapecuru, a maior que presenciei!

Vi um conjunto de jovens revezando-se no corrimão da ponte para preparar seus saltos acrobáticos, de cabeça para baixo ou em pé, até adentrarem nas águas revoltas e barretas do velho rio.

Lembrei, então, do rito de passagem que percorri como integrante de grupo de meninos da Rua da Boiada, para concretizar o meu primeiro e único “pulo da ponte”.

Era eu, Batonzinho (irmão do Gavetão, que tinha chegado do Rio de Janeiro há pouco tempo e usava cabelos compridos e falava chiando); Luiz Cabral, Natinho, Betinho e Ribinha (meus irmãos mais novos); Pintado, Zé Ageme e Leite de Coco (esse, como o apelido sugere, era branquinho e tinha o rosto cheio de sardas. Esse era o núcleo básico, que as vezes ganhava membros de ocasião, como o temido Zé Diabo, um pouco mais velho!

Éramos todos “ratos do rio”, até pela obrigação que tínhamos de duas vezes por dia ir lá na Rampa Velha buscar água para encher os potes. Nessas idas aproveitamos para banhar, pular do caís inconcluso que ali havia remanescente dos tempos da ponte flutuante e, principalmente, atravessar várias vezes para a margem oposta e lá “convidar” algumas melancias, melões e pepinos, existentes nas vazantes, a fazer a viagem de volta conosco. Era uma festa! Muitas das vezes fomos surpreendidos com tiros de espingardas que, felizmente, eram carregadas com sal grosso em vez de chumbo, mas faziam estragos comparável a uma surra de relhos.

Eu, após uma experiência trágica de quase morrer afogado enquanto mamãe entretidamente lavava roupa, salvando-me de espanto com uma folha de palmeira de babaçu, quando eu já estava no estágio final de subir e descer sem forças para emitir nenhum som, tornei-me um exímio nadador. Atravessava o rio várias vezes sem grandes esforços, até porque meu biotipo esquelético ajudava muito. Meu trauma era servir de piada junto à turma de moleques por nunca ter tido coragem de pular da ponte ... Eu dizia que não era medo, mas só Deus sabe!

Na enchente de 1964, as águas subiram muito! Lembro-me bem de uma grande lancha que chegou de São Luís e se destinava à cidade de Codó e dada a proximidade da lâmina d’água para o arco central da ponte, não teve condições de ultrapassar. Atracou ali mesmo das proximidades aguardando as águas baixarem. Essa lancha tornou-se um ponto de atração para a meninada. Uma vez à noite fui lá acompanhado de meu tio Minzinho para pescar de linha de mão e não esqueço a quantidade de “corrós”, uma espécie de cascudo muito parecido com helicópteros, até no som que emitem quando são pescados, de casca grossa e sabor especial quando cosidos com coentro, cebola verde e pimenta de cheiro.

A lancha aguardou vários dias e as águas só subindo até cobrir por completo parte da estrada de rodagem que ficava defronte à residência do Senhor Zeca Matos, ali logo depois da ponte no sentido Trizidela. Era tanta água que chegaram até à plataforma da Estação de Trem. Cheguei a ir lá de canoa!

Numa bela manhã correu a notícia de que o capitão da lancha tinha decido tentar atravessar sua embarcação por cima da estrada, considerando que sobre a mesma já havia quase dois metros d’água. Corremos todos para lá e conseguimos mesmo sem permissão subir na lancha para essa aventura.

Ligados os motores em sua potência máxima, era grande a correnteza, a lancha desceu pelo meio do rio até defronte à Rampa Velha e entrou pelo espaço de um igarapé existente na margem oposta até alcançar o espaço de uma lagoa que ali existia e que agora era tudo rio, sob a gritaria da meninada que se encontrava a bordo. A lancha vencia as águas e a vegetação até aproximar-se da estrada que deveria ultrapassar.

Deu mais potência aos motores e avançou sobre as águas revoltas que se precipitavam sobre a estrada! Enganchou no meio do caminho e aí nem prá frente nem prá trás. Tentou várias vezes sob o olhar de uma multidão que se aglomerava sobre a ponte. Numa dessas tentativas, conseguiu sair de ré. O capitão não desistiu e, usando todas as forças das máquinas e suas orações aos deuses das águas, voltou a tentar. Avançou a todo vapor e ... passou! Um grande burburinho se formou com aplausos vindo do pessoal da ponte, do pessoal a bordo, principalmente da meninada estupefata. Até um foguete pipocou lá prós lado da Casa Tupy!

Quando pescava “corrós” com meu tio no convés da lancha, fiquei observando na penumbra aquela distância entre o corrimão do vão central da ponte e a avalanche de água que passava logo abaixo. Entendi que com o rio naquelas alturas era o melhor momento que eu tinha para provar para minha turma que eu até então não tinha pulado por uma questão de respeito às águas do velho rio, mas não por medo ...

No dia seguinte convidei a todos e fomos para o vão central da ponte. Pedi que todos pulassem primeiro e todos o fizeram esmerando-se, talvez para encorajar-me ou por pura maldade ...

Confesso que suava frio quando o amigo “Batonzinho” deu o seu salto. Um “piau” de cabeça e submergiu lá na frente acenando para que eu o acompanhasse. Tinha chegado a hora!

Subi meio trêmulo no corrimão e passei para o outro lado. Meus pés sobre a laje de concreto, que me parecia gelada, e minhas mãos para trás de meu corpo segurando a barra do corrimão. Era só soltar as mãos e pular de pé ... Piau, nunca!
Naqueles segundos que me pareceram eternos passaram pela minha mente todas as histórias que já ouvira sobre o Rio Itapecuru e até as faces das pessoas que conheci e que lá morreram afogados, sendo que o último deles tinha sido “O Velho Cancão”, que dizia não sentir frio, trabalhava como vigia e tomava banho todas as madrugadas na Rampa do Wady ...

Lembrei da cobra que eu tinha visto atravessar o rio nadando sobre a superfície das águas, num malabarismo louco e hiperbólico. Da história de um menino que pulou sobre um tronco de árvore que passava submerso e quebrou-se todo. Da temida cobra “Sucuruju” que morava numa loca que se estendia até a Igreja Matriz. Lembrei até do lendário “Cabeça de Cuia”, que atacava os pescadores ao longo do rio.

Meus olhos miravam os redemoinhos lá embaixo e ouvia ao longe gritos histéricos da meninada que bradava – Pula, Pula, Pula, Pula! ...

Agora não tinha mais jeito. Soltei as mãos que me prendiam ao corrimão, arremessei o corpo para a frente e flutuei no ar como um pacote bêbado, lembrando a música de Chico Buarque. Senti um interminável zumbido nos ouvidos até que meus pés tocaram numa espécie de colchão molhado e meu corpo todo penetrou nas águas e afundou ...

Recobrei os sentidos já fazendo um esforço imenso para voltar à superfície, que não chegava nunca. Quando minha cabeça submergiu a correnteza já tinha me levado para longe da ponte, mas ainda pude ver as mãos de meus amigos que me saudavam. Desci nadando suavemente até à Rampa Velha e tive a sensação de que o rio me abraçava e sorria comigo.  Quando subi nas lajes vermelhas da beirada do rio senti-me como um herói que tivesse absorvido um pouco da força descomunal da natureza, como se subisse às nuvens, mas nunca mais quis repetir a façanha.

Passados muito anos, já com duas filhas pequenas, fui levá-las para conhecer a Rampa Velha e o Rio Itapecuru. Resolvi tomar um banho e atravessar nadando para a outra margem ... Essa história eu deixo para uma outra crônica.    





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