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domingo, 23 de abril de 2017

UMA CASA DE FAZENDA NO CAMPO



Mauro Rego

            As tardes de julho eram mais quentes nesse ano de 1956, embora as noites fossem as mais amenas do ano. O campo refletia a luz de um sol implacável e já se distinguia, entre as moitas de junco, que a terra ia surgindo, prova evidente do abaixamento das águas. 

Os viajantes iam aos poucos substituindo a canoa pelo cavalo, embora a travessia para o         Teso estivesse difícil. Um vento morno soprava constantemente, balançando os pés de algodão do campo com suas flores lilás que davam um aspecto místico à paisagem. 

            A casa, com o alpendre ou varanda, como chamamos, voltada para o campo, estava vazia e silenciosa. As pessoas que ali moravam haviam se afastado: algumas desfrutando a frescura das sombras dos crivirizeiros lá adiante, outras experimentando uma pescaria de lazer no açude próximo ou visitando as casas dos vizinhos distantes cerca de duzentos metros. 

            Era comum que as casas ficassem vazias e, até então, não havia nenhum perigo nisso. Jamais alguém se aproveitara dessas ausências para se apossar de seus bens. 

Viajante do campo, vindo de Arari, eu costumava encostar ali para um dedo de prosa com meu compadre Joaquim, hoje proprietário da casa que fora de seus avós. Sua família sempre ali vivera, segundo me informou, e experimentara nos anos distantes uma situação de riqueza simples, vivendo do gado e do cultivo de arroz, milho, feijão e mandioca. 

            Esse atestado de exuberância passada era dado pelos retratos fixados nas paredes, pelas toalhas que cobriam os móveis antigos e pela conservação do assoalho erguido sobre mourões de madeira de lei. Eram poucas as fazendas que ainda conservavam esse tipo de construção, pois muitas já haviam substituído as paredes de madeira pelas de tijolos ou taipa. 

            Amarrei o cavalo alazão ao lado da casa e subi a pequena escada de dois degraus que conduzia à varanda. O silêncio da casa foi quebrado pelo som dos meus passos e pelo tilintar das esporas presas aos meus pés. 

            Familiarizado com a casa e seus habitantes, atravessei a varanda e penetrei na sala, atraído agora pelo ruído do balanço de uma cadeira preguiçosa. Esse silêncio pareceu-me diferente e o ruído da cadeira de balanço dava à casa um ar misterioso. Parei na porta ao avistar uma senhora de cabelos grisalhos usando uma saia longa e blusa de um amarelo quase ouro. 

            Jamais a havia encontrado naquela casa e o espanto foi tal que não ousei cumprimentá-la. Ela sorriu docemente como se me desse boas vindas. Seus olhos azulados me impressionaram pela vivacidade incomum nas pessoas maduras e eu percebi que usava um lenço da cor da blusa em volta dos cabelos. Em suas mãos havia um livro fechado, como se ela o estivesse lendo antes da minha chegada. 

            Quando me refiz da surpresa, ouvi a voz do compadre que chegava à casa e me saudava calorosamente. 

            - Que surpresa ver você aqui, compadre. Vi o seu cavalo e imaginei que já estava de volta. A Joana já está chegando para preparar o café. 

            Abraçamo-nos e nos dirigimos para a sala sem que eu tivesse tempo de perguntar acerca da senhora que eu vira momentos antes. Mas quando ali chegamos, não havia ninguém e apenas uma brisa suave balançava o pano da cadeira de embalo e não pude disfarçar a expressão de surpresa que isso me causava. Meu compadre percebeu o meu embaraço e, colocando as mãos sobre meus ombros, perguntou em voz baixa: 

            - Você a viu, não foi?

            Não pronunciei nenhuma palavra, apenas assenti com a cabeça. Meu compadre me conduziu para a varanda e me fez sentar em uma cadeira de vime antiga, sentando-se diante de mim. Sua expressão era serena e percebi que não desejava que outras pessoas chegassem antes dessa conversa. 

            - Era minha avó. Viveu muitos anos nesta casa após a morte de meu avô e parece que jamais se desligou deste lugar. Muitas pessoas já a viram andando pelos quartos ou se balançando naquela cadeira. Nunca disse uma palavra e desaparece como por encanto. Falei do assunto com o Padre Possidônio e ele recomendou que mandasse celebrar uma missa para ela, aqui mesmo na casa, mas sempre eu estou adiando a providência. Mas, depois conversaremos sobre isso. O pessoal está chegando. 

Com efeito, ouvi vozes se aproximando e subindo a escada e vi minha comadre Joana surgir no alpendre e dirigindo-se a mim com seu peculiar sorriso. 

            - Compadre, desculpe eu ter saído. Você sempre é bem vindo nesta casa. Deixe que eu passe um cafezinho para ouvir as suas novidades. Entre, venha para dentro porque enquanto eu passo o café você vai conversando e eu posso ouvir o que diz. Não vai demorar, pois o fogo já está aceso. 

            Entramos e eu, naturalmente, evitei sentar-me na cadeira onde eu vira, antes, a figura daquela senhora. Busquei os retratos da parede e encontrei o de uma mulher, cujas feições mais se aproximavam da pessoa que eu vira antes. Parei para melhor observar a semelhança dos traços e minha comadre Joana foi logo me explicando: 

- Era a dona desta casa, avó de Joaquim. Eu não conheci, mas dizem que era uma grande dama. O pessoal aqui diz que ela já apareceu algumas vezes, mas eu nunca vi e acho que é só invenção.
            Os olhos de meu compadre me recomendaram silêncio e, com certo esforço, procurei um assunto para atender seu apelo. 

            - Comadre, estão dizendo que o Getúlio Vargas quer voltar para ser Presidente.
- Virgem! Eu gosto dele. Mas o que é que vão fazer com o Eurico Dutra? Meu Deus, que não seja agouro e não aconteça com ele o que aconteceu com o Waldemar, coitado, que nem esquentou a cadeira de Prefeito e morreu! 

            - Não, comadre. É daqui a quatro anos quando vier outra eleição.
- Ainda bem. Esse negócio de política é ruim. Saulzinho vai ser candidato a Vice junto com Salu. Tomara que não aconteça de novo aquela rixa antiga de Maniquinho com Saul Velho. Aquilo foi uma coisa muito feia. 

            - Não, comadre. As coisas agora estão diferentes; embora os Rodrigues continuem adversários dos Mendonça, agora tudo é pacífico. 

- Ainda bem! Eu não votei no Brigadeiro, mas tenho uma consideração muito grande com João Guanaré, que não foi eleito Vereador. Ele é filho de meu padrinho Antonio Félix e de minha madrinha Janoca. Coitada! Morreu tão cedo... 

            A conversa se estendia durante um bom tempo e, com o adiantado da hora, resolvi me despedir. Antes, porém, o compadre disse que teria de ir à vila no sábado seguinte, quando iria me visitar. Adivinhei que era para me relatar fatos acerca da pessoa que eu vira quando cheguei.


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