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terça-feira, 17 de outubro de 2023

A SAGRAÇÃO DO PRÍNCIPE JACARANDÁ

Theotonio Fonseca

I

E por circundar mares sonâmbulos

o principesco curumim pincelou no horizonte

as contas de juçara de seu rosário de cânticos

na fumaça dos petanguás de taquara

dos tamoios aldeães da nobreza tupi

previu a face da morte no dorso de caravelas

no colorido infante da multicor infância

 

entre o vaticínio do rouxinol e o sortilégio do mocho

navegação de cabotagem no ensanguentado litoral

sargaços e círculos de fadas dos oceanos infindos

elevando ao altar da pedra da memória

a rapsódia ancestre de quem o precedera

com as artes divinatórias da realeza

interpelou o deus oniromante que o visitava:

 

 – O que virá no alaúde ambíguo do mar?

O que se ouvirá? O baldio som do desatino?

A nau bojuda no funil do ser para a morte?

O anafilático desespero da esperança

dos que aguardando divindades receberiam

pães malignos com miolos de rosas

a espada do colonizador sob o véu da rude cruz

dizei-me vós, oniromante Senhor dos sonhos

se os andrajos do fim habitarão nossos corpos?

se o odor de sangue povoará nosso ar?

E é de indizível opróbrio a nave que vem do mar?

II

O dobre do fim nos sinos de um viajor insano?

E por conhecer recônditos segredos das linhas

das mãos de Tupã, e por saber o sabor do leite

que jorra dos verdes seios de Pachamama

o estranhamento com a chama divina do infante

fizera com que o enviassem às estranhas terras

 

para conviver com feras e pajés de anhangá

e se vivo regressasse após esse retiro espiritual

confirmar-se-ia sua vocação para liderar os mil povos

e até que com o cetro de ibirapitanga regesse

a sinfonia de todos os filhos de Nhanderuvuçú

aperfeiçoaria os talentos no templo azulado-lilás

para além do bojador de sua tribo e território

na inóspita senda dos anosos jacarandás.

III

O pajé da tribo acreditando que o príncipe

era apenas um artista que descobria a vocação

e antes que o jovenzinho partisse em pessoal missão

segredou-lhe no ouvido um poema esquecido

que ouvira de um homem branco em tempos idos:

 

  – Segue tingindo o rubro espanto do verso

aquarelas haverão para contagiar de alabastro

os cântaros de cores que te habitam o godê da alma

e quando naufragar a nau bojuda

da espátula ébria de nuances

como menina travessa no trapézio do encanto

abandona teu sonho no íntimo do arco íris

se esta galeria oca não te satisfaz

a sede de escreviver sonhos                     

 

adentra a rosa dos ventos que criaste

e deixando o convívio da vida vazia

dos vivos que não veem o infinito

possas coabitar com os seres de tinta

que em teu ser criaste, habitarás mundos

infindos e lindos cosmos coloridos

IV

 – Dizei-me vós, feiticeiros de anhanguera

se estas águas que beijam as folhas mortas

de jacarandá-mimoso, este regato pútrido

que lambe as chagas do chão maculado

pelos pés dos colonizadores, dizei-me

se nascerei novamente deste charco

se me batizarão os miasmas que habitam

este alagadiço? Sei que aqui sou um proscrito

mas ao nascer banharam-me no rio amazonas

alimentei minha alma com cristalinas fontes

saciei minha sede com a chuva de água pura

 como posso submeter-me a embebedar-me

com o córrego fétido de Anhangabaú?

 

 – O que será nobre príncipe, do diamante

sem a rudeza da rocha, o ouro sem o chão

o tesouro não germina na angelitude das nuvens

ou o angélico legado dos deuses se esconde

para além do humano, em seráficos horizontes?

 

É necessário descer às catacumbas do ser

navegar o lodo onde a rosa esconde a pétala

no estômago telúrico do barro indigesto

nas entranhas de areia, urna de valiosos minérios

 

como regressar ao lar sem conhecer os mistérios

da decomposição, de ínferos reinos esquecidos?

Como conduzir com cetro que não verga

com coroa que o sol e a chuva não desdouram

os mil povos que habitam o berçário de Pachamama?

Sem conhecer a aluvião de limo e o borbotão de lama?

V

Assim, vencendo os desafios que o impuseram

empunhando a coragem que tentavam subtrair-lhe

o príncipe superou as provas fogo e coragem

andou sob as brasas, lutou contra uma onça

derrotando a rude fera cortara - lhe a cabeça

 

no desafio dos magos afugentara demônios

ao fim das provas recebera uma cabaça

contendo a força dos primevos espíritos

e quando a madrugada prenunciava a manhã

adentrou os pórticos da aldeia e quebrando o coité

respirou o pó mágico sorvendo encantamentos

 

do magnetismo que energizara sua alma

teceu as vestes talares de seu reinado

fundindo na forja de fogos fátuos a invisível coroa

 

e o uirapuru anunciou aos mil povos da terra

que o Príncipe Jacarandá havia regressado

sentar-se-ia no trono de Tupã, liderando com vigor

todas as etnias na batalha contra o vil colonizador.



THEOTONIO FONSECA DE SOUSA é Poeta, Professor e Advogado. Autor das obras: Poemas Itapecuruenses e Outros Poemas (Ética, 2014), O Batucajé das Iaras ( Ética, 2016), As Bodas de Sapequara ( Ponto a Ponto, 2021), Recital do Sol na Sagração da Aurora (Ponto a Ponto, 2022), Autobiografia de um Sabugueiro (Ponto a Ponto, 2022), Prelúdio da Lua na Dormição da Noite (Ponto a Ponto, 2022) e A Madona Vestida de Arame Farpado (Ponto a Ponto, 2023)

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