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sábado, 2 de abril de 2016

UMA FONTE CHAMADA SAUDADES...

    


Por: Josemar Lima                                          Série de  Crônicas – ANO III/nº 28/2016

            Conheci a Fonte da Miquilina de forma inédita e casual. Tinha saído num domingo dos anos 60 para colher cajui, murici e goiaba araçá lá nos campos cerrados nas proximidades da fazenda do senhor Santos Lima, um militar reformado, mas que não deixava de envergar sua farda verde oliva e uma espada de bainha enferrujada nas solenidades de 7 de setembro em frente ao prédio majestoso da Prefeitura Municipal. Possuía uma barriga proeminente e a cada ano sobrava barriga e faltava farda para cobri-la. Ele não abria mão dessa indumentária e os meninos do Grupo Escolar Gomes de Sousa passaram a apelidá-lo de “Caju Verde”. Claro que ele nunca soube dessa afronta contra o exército brasileiro. 
            Nessa viagem pelos campos estava acompanhado do meu irmão Natinho e de um amigo de infância e vizinho chamado Domingos, um az no uso de baladeiras, elaboradas com cabos de forquilhas de goiabeira e ligas de câmara de ar usadas de pneus de bicicletas. Eram assim as baladeiras antigas! Nos cabos marcavam-se com talhos o total de aves abatidas, sem nenhuma preocupação com os danos ao meio ambiente, pois esse assunto não era tratado na escola e nem nas rodas de amigos. Para nós a natureza era inesgotável.
            Sim, voltemos à Fonte da Miquilina!
            Nessa tarde de domingo chovia muito e terminamos nos perdendo no campo. Meu irmão teve então a ideia de subir em uma árvore para ver se conseguia divisar a chaminé da Construpan. Nesse tempo toda a construção ainda estava de pé - a chaminé, que nunca cumpriu o seu papel de transportar fumaça das fornalhas à atmosfera (graças a Deus!), uma torre de sete pavimentos, vários galpões, dezenas de bangalôs para funcionários e todos os equipamentos também ainda estavam lá. Máquinas imensas, serpentinas e caldeiras. Estas, no segundo pavimento dos galpões.
 Ele conseguiu avistar parte da chaminé e aí saímos correndo na direção indicada por ele até que encontramos um caminho de areia branca por onde corria água da chuva e o seguimos...
Terminamos chegando a uma casinha de taipa, tapada de barro, onde uma velhinha com a cabeça protegida por uma toalha bordada nos informou que ali em frente ficava a Fonte da Miquilina, que todos nós já tínhamos ouvido falar, pela qualidade de sua água cristalina que brotava da terra e que era vendida para as famílias de posses pelo “Seu Broca”, que usava duas latas de querosene jacaré penduradas em uma haste de madeira para transportá-las pelas ruas arenosas da cidade Nós chegamos à fonte por trás, pelo caminho inverso.
            Seu Broca era também quem carregava o grande crucifixo nas procissões que encerravam os festejos religiosos. Já velho e adoentado, perseguia os moleques que a título de provocação gritavam para ele - “Seu Broca o Mundo Vai se Acabar”!
            Ali nas proximidades existia um mangal imenso e uma densa floresta com diversas espécies de árvores nativas, como bacuri, pau d’arco, jatobá, ingá e tantas outras entremeadas de arbustos e palmeiras variadas.
            Daquele dia resolvemos descer com dificuldade as ribanceiras e chegar até às bicas. Era um verdadeiro santuário!
Duas bicas d’água afloravam de uma barreira coberta de pequenas plantas e algumas flores visitadas permanentemente por borboletas de cores variadas e eram conduzidas por uma calha de flandres com um fluxo ininterrupto de um líquido transluzente que, ao chocarem-se contra o solo, juntava-se ao cântico dos pássaros e produzia um som melodioso e tranquilizante. Quando olhei para cima vi apenas raios de sol filtrados pelos galhos e folhas de grandes árvores que se entrelaçavam e formavam um manto mágico para aquele quase altar da natureza. Assim era a Fonte da Miquilina que ainda hoje conservo na retina de minha memória!
            Posteriormente, isso já nos anos 70, após concluir o curso de edificações na Escola Técnica Federal do Maranhão, hoje IFMA, e como Chefe de Gabinete da Prefeitura Municipal de Itapecuru Mirim, pude ter uma ação mais concreta com a fonte. Sabedor de que ali tinha havido ações de vandalismo e que a fonte parara de funcionar, convoquei o experiente pedreiro da prefeitura, conhecido como Lourival Pedreiro ou Lourivalzinho, elaborei um pequeno projeto e o executamos.
            Os minadouros foram desobstruídos e canalizados até um tanque hermeticamente fechado que coletava a água vinda das bicas; dois bicos de ferro foram adaptados ao tanque e, assim, a água podia ser colhida sem contato humano. Por muitos anos esse sistema funcionou com alguns poucos melhoramentos realizados.
            Voltei à Fonte da Miquilina na manhã do dia 12 de março de 2016, quando fui a Itapecuru Mirim para participar da reunião da AICLA. É um cenário constrangedor para aquele menino que viu a explosão de vida ali existente naquela tarde do final dos anos 60. Mas a Fonte da Miquilina, pelas graças de Deus, de todos os Deuses, das Mães D’água que ali residem, ainda pulsa e continua lá oferecendo suas últimas gotas de sangue a quem precisar matar a sede ou, como eu, apenas provar daquela água quase sagrada.
            Prometi a mim mesmo e à velha fonte buscar todos os apoios possíveis, públicos e/ou privados, para ressuscitar o paraíso que que ali existia!  Creio que a indústria cerâmica poderia fazer essa compensação ao meio ambiente já que o poder público em nossa terra se faz de moco e cego para as causas nobres. A Associação Comercial e Industrial de Itapecuru Mirim será com certeza o meu primeiro porto!

E não é difícil: Basta reservar pelo menos um hectare de terras em volta da fonte, cercá-lo adequadamente, buscar um especialista em formação de mudas de espécies nativas e começar a reflorestar a área. A água voltará com toda sua força e a beleza será restabelecida para orgulho de todos nós itapecuruenses, principalmente para os jovens, atualmente tão sensíveis às questões ecológicas. Ali poderia ser um berçário para a produção de mudas de espécies nativas regionais, inclusive para revitalização das matas ciliares do Rio Itapecuru e seus afluentes.
            Quando o pessoal do Projeto Rondon esteve em Itapecuru Mirim, em 1972, realizaram, em parceria com o Clube de Jovens, o 1º Festival de Música e Poesia de Itapecuru Mirim – 1º FEMPI.
            Escrevi uma música, dominado à época também por outras paixões, mas como cantar em público nunca foi meu forte, a canção denominada “Miquilina” foi defendida pelo meu irmão Natinho, com calça de boca de sino e cabelos compridos, e se classificou em segundo lugar, recebendo como prêmio um violão novinho em folha. A primeira colocada foi uma canção interpretada pelo amigo Raimundo Garcia, denominada “Integração”, e em terceiro lugar classificou-se uma canção defendida pelo saudoso Renato Oliveira, que em tempos passados, tinha sido ator de teatro e também locutor da Voz Marília, serviço de alto-falante vinculado ao antigo Cine Marília
            Há registros da existência dessa fonte desde o século XIX, período imperial, conforme registra a escritora Jucey Santana, no livro “Mariana Luz Vida e Obra e Coisas do Itapecuru Mirim”. A área pertencia à Maria Miquilina, mulata, descendente de escravos que a mantinha devidamente conservada e servia à população da povoação principalmente no período invernoso, quando a água do rio se torna turva e barrenta para consumo humano. O nome da mulata deve ter sido originado pela devoção à Santa Miquelina de Pesaro, uma cidade italiana. Miquelina era uma jovem lindíssima e casou-se aos doze anos, teve um filho e posteriormente ficou viúva. Dedicou-se, então, à vida religiosa e aos cuidados aos leprosos, tendo seu culto sido autorizado em 1737.
            Acredito que, como as borboletas daquela tarde de inverno, a Fonte da Miquilina pode rebrotar de seu casulo apodrecido, ganhar asas multicores e voar rumo à esperança.



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