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segunda-feira, 9 de abril de 2018

CANECA - crônica de abril


  

 
Josemar Lima                                      SÉRIE CRÔNICAS – ANO V/nº 52/2018


Eram os primeiros anos da década de 70! Itapecuru Mirim vivia um tempo de efervescência cultural que não percebíamos a real dimensão naquele momento.

A Escola Normal Regional Gomes de Sousa, hoje Colégio Leonel Amorim; e o Colégio Bandeirantes, ambos de nível ginasial, possuíam quadros de professores com grande acervo intelectual, verdadeiras referências para seus alunos.

O Clube de Jovens de Itapecuru Mirim, por outro lado, mobilizava a juventude itapecuruense para eventos de aprimoramento de suas vidas, tanto no campo social como político. A atuação de formação política era tão intensa que o Clube de Jovens de Itapecuru Mirim chegou a ter dois vereadores de seu quadro de sócios eleitos numa mesma legislatura – Nato Lopes e o saudoso Toninho do Bispo.

Foi num desses eventos, festa de premiação dos vencedores dos 1ºs Jogos Estudantis Itapecuruenses, que uma moça alta, morena, cabelos lisos, negros e de olhos grandes, arredondados como um fruto verde de macaúba, declamava no palco do Itapecuru Social Clube, lotado de alunos eufóricos dos dois colégios concorrentes, um poema escrito por um desses aprendizes de feiticeiro, que achavam que podia virar poeta mesmo.

O professor Raimundo Nonato Ferraz, exímio conhecedor da língua pátria e meu professor no quarto ano do curso ginasial na antiga Escola Normal Regional Gomes de Sousa, sempre dizia que toda pessoa nascida em Itapecuru Mirim tem a sina de escrever pelo menos um poema nas diversas e múltiplas etapas de suas vidas, mesmo que nunca tenha a coragem de apresentá-lo para alguém ou em público. E ele tinha lá suas razões!

 O poema, que se intitulava “Caneca”, começava sua primeira estrofe com os seguintes versos:

“Caneca nasceu em cama de pau com defumador e foguetes
Teve camisinha bordada e bebeu angu de farinha
Batizou-se em capela com padrinho sério
De dinheiro, coronel
Foi menino
Traquina
E sem mimo
Foi mais – rapaz inteligente
Prá frente
Decente
Mas não foi inocente
Bebeu
Fumou
E pela cachaça se apaixonou (...)”

Era um poema livre e longo que contava em versos toda a trajetória tortuosa de um jovem alcoólatra, desde o seu modesto nascimento, até sua trágica e quase despercebida morte. Esse personagem realmente existia e vagava diuturnamente pelas ruas da cidade.

Durante o dia era encontrado frequentemente na Casa São Pedro, um comércio de secos e molhados como se dizia à época, localizado na Avenida Brasil e de propriedade do conhecido comerciante e amante da arte de recitar poemas de Bilac, Jamil Mubarak. Jamil é um dos remanescentes das famílias do mundo árabe que se instalaram em Itapecuru Mirim a partir do século XIX, contribuindo para o desenvolvimento econômico da região e, quase sem exceções, todas fizeram fortuna.

Fiquei sabendo nessa semana que esse prédio, juntamewnte com a sua casa redidencial serão demolidos para que no local seja edificado um moderno prédio comercial. É a cidade se renovando e fica em nossa memória uma referência do chamado comercio de secos e molhados de Itapecuru Mirim, o útimo de tantos e tão importantes mantidos pelos sírios e libaneses - os carcamanos! Quem não já ouviu falar da famosa Rua do Egito?

Mais que isso: A Casa São Pedro, por localizar-se no coração da cidade, na esquina mais viva da Avenida Brasil com a Avenida Gomes de Sousa, foi testumunha de quase todos os fatos e eventos relevantes que aconteceram na cidade desde meados do século XX.

Era também um local preferido para as conversas de final de tarde entre seu proprietário e pessoas de vários segmentos sociais e, ainda, guardava em si vários objetos antigos que contam um pouco de nossa história. Ele – o Jamil - sempre foi conhecido por gostar de comprar quinquilharias!

Caneca, eu nunca soube o seu verdadeiro nome, era um jovem de estatura mediana, pele morena, cabelos lisos, não tinha mais que trinta anos, mas aparentava ter cinquenta ou mais. Seu rosto de pela amarelada e sempre opado dava uma impressão de velhice precoce.

Certa ocasião, quando me dirigia pela manhã de casa para o meu posto de trabalho na Prefeitura Municipal, tive a oportunidade de encontrá-lo em um dos bancos da praça Gomes de Sousa, logo à frente do prédio da Prefeitura.

Ele, pela expressão, acabara de acordar e já se preparava para sair para a Casa São Pedro, quando o abordei. Eu sempre tive curiosidade em saber detalhes sobre as poesias que ele recitava quando a embriaguez lhe roubava toda a cerimônia. Ele, quando sóbrio, situação pouco usual, praticamente não falava com ninguém.

Mostrou-se arredio e não quis alongar aquela incômoda conversa, que se reduziu a uma simples e singela saudação.

Eu desejava apenas saber a origem do apelido “Caneca” e, se fosse possível, extrair dele alguma informação adicional sobre os poemas que ele declamava.

 Colegas meus do quarto ano ginasial da Escola Normal Regional Gomes de Sousa, numa oportunidade em que não houve a aula programada e nos reunimos para contar lorotas, protegidos pela sombra de um grande pé de azeitona existente no pátio interno do colégio, comentaram jocosamente sobre as declamações feitas por Caneca lá na esquina da casa do Seu Jamil.

Era um poema dedicado a uma sua musa da adolescência, chamada “Maria”, residente em um povoado do interior do município de Presidente Vargas.

 Mas os versos, enigmáticos, não diziam muito. Indicavam, entretanto, para uma desilusão amorosa que ainda sangrava:

“Maria!, Maria!, Mariaaa! ...
És a luz das minhas noites
E escuridão dos meus dias”.

Sobre o seu apelido, as informações foram de que ele crescera em um engenho de cana onde seu pai trabalhava na produção de cachaça e rapadura. Mesmo com tenra idade ajudava-o em todas as atividades diárias.

Tinha, entretanto, uma predileção que se tornou um vício incontrolável: Ficar com uma caneca branca esmaltada, já agora amarelada pelo tempo e creia de cicatrizes arroxedas, esperando para aparar e beber o “caxixi”, resíduo final de processo de destilação da cachaça, expelido pelos alambiques e com pouco teor de álcool.

Ele foi crescendo e a caneca sempre recebendo aguardente de cana cada vez mais forte.

Antes de fugir do engenho já era consumidor assíduo da cachaça inicial do alambique, chamada de “cabeça”, quase álcool puro!

E sempre usando sua caneca de estimação!

A moça linda e de traços árabes, que declamava a poesia, era conhecida e querida demais na cidade pelas suas vinculações com as artes e de trato alegre e afável. Refiro-me à Cidinha Buzar, falecida precocemente há alguns anos atrás. Que Deus a Tenha!

E ela, desapercebida de todo aquele burburinho juvenil, com a voz rouca que que lhe era peculiar, concluía assim o longo poema:

“Caneca deitou, cochilou
E a morte o levou
Sem padre, sem vela, sem fita amarela
Sem deixar herança que gera trapaça
Não precisou caixão
Um buraco no chão e pronto
Caneca está pronto
Pode viajar
Prá outro lugar
Sua vida acabou
Sua sede também
Caneca? Caneca?
Partiu pró além
Fez bem!

                 


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