A SAGRAÇÃO DO PRÍNCIPE JACARANDÁ
Theotonio Fonseca
I
E
por circundar mares sonâmbulos
o
principesco curumim pincelou no horizonte
as
contas de juçara de seu rosário de cânticos
na
fumaça dos petanguás de taquara
dos
tamoios aldeães da nobreza tupi
previu
a face da morte no dorso de caravelas
no
colorido infante da multicor infância
entre
o vaticínio do rouxinol e o sortilégio do mocho
navegação
de cabotagem no ensanguentado litoral
sargaços
e círculos de fadas dos oceanos infindos
elevando
ao altar da pedra da memória
a
rapsódia ancestre de quem o precedera
com
as artes divinatórias da realeza
interpelou
o deus oniromante que o visitava:
– O que
virá no alaúde ambíguo do mar?
O que se ouvirá? O
baldio som do desatino?
A nau bojuda no funil
do ser para a morte?
O anafilático desespero
da esperança
dos que aguardando
divindades receberiam
pães malignos com
miolos de rosas
a espada do colonizador
sob o véu da rude cruz
dizei-me vós,
oniromante Senhor dos sonhos
se os andrajos do fim habitarão
nossos corpos?
se o odor de sangue
povoará nosso ar?
E é de indizível
opróbrio a nave que vem do mar?
II
O
dobre do fim nos sinos de um viajor insano?
E
por conhecer recônditos segredos das linhas
das
mãos de Tupã, e por saber o sabor do leite
que
jorra dos verdes seios de Pachamama
o
estranhamento com a chama divina do infante
fizera
com que o enviassem às estranhas terras
para
conviver com feras e pajés de anhangá
e
se vivo regressasse após esse retiro espiritual
confirmar-se-ia
sua vocação para liderar os mil povos
e
até que com o cetro de ibirapitanga regesse
a
sinfonia de todos os filhos de Nhanderuvuçú
aperfeiçoaria
os talentos no templo azulado-lilás
para
além do bojador de sua tribo e território
na
inóspita senda dos anosos jacarandás.
III
O
pajé da tribo acreditando que o príncipe
era
apenas um artista que descobria a vocação
e
antes que o jovenzinho partisse em pessoal missão
segredou-lhe
no ouvido um poema esquecido
que
ouvira de um homem branco em tempos idos:
– Segue tingindo o rubro espanto do verso
aquarelas haverão para
contagiar de alabastro
os cântaros de cores
que te habitam o godê da alma
e quando naufragar a
nau bojuda
da espátula ébria de
nuances
como menina travessa no
trapézio do encanto
abandona teu sonho no íntimo
do arco íris
se esta galeria oca não
te satisfaz
a sede de
escreviver sonhos
adentra a rosa dos
ventos que criaste
e deixando o convívio
da vida vazia
dos vivos que não veem
o infinito
possas coabitar com os
seres de tinta
que em teu ser criaste,
habitarás mundos
infindos e lindos
cosmos coloridos
IV
– Dizei-me vós, feiticeiros de anhanguera
se
estas águas que beijam as folhas mortas
de
jacarandá-mimoso, este regato pútrido
que
lambe as chagas do chão maculado
pelos
pés dos colonizadores, dizei-me
se
nascerei novamente deste charco
se
me batizarão os miasmas que habitam
este
alagadiço? Sei que aqui sou um proscrito
mas
ao nascer banharam-me no rio amazonas
alimentei
minha alma com cristalinas fontes
saciei
minha sede com a chuva de água pura
como posso submeter-me a embebedar-me
com
o córrego fétido de Anhangabaú?
– O que será nobre príncipe, do diamante
sem
a rudeza da rocha, o ouro sem o chão
o
tesouro não germina na angelitude das nuvens
ou
o angélico legado dos deuses se esconde
para
além do humano, em seráficos horizontes?
É
necessário descer às catacumbas do ser
navegar
o lodo onde a rosa esconde a pétala
no
estômago telúrico do barro indigesto
nas
entranhas de areia, urna de valiosos minérios
como
regressar ao lar sem conhecer os mistérios
da
decomposição, de ínferos reinos esquecidos?
Como
conduzir com cetro que não verga
com
coroa que o sol e a chuva não desdouram
os
mil povos que habitam o berçário de Pachamama?
Sem
conhecer a aluvião de limo e o borbotão de lama?
V
Assim,
vencendo os desafios que o impuseram
empunhando
a coragem que tentavam subtrair-lhe
o
príncipe superou as provas fogo e coragem
andou
sob as brasas, lutou contra uma onça
derrotando
a rude fera cortara - lhe a cabeça
no
desafio dos magos afugentara demônios
ao
fim das provas recebera uma cabaça
contendo
a força dos primevos espíritos
e
quando a madrugada prenunciava a manhã
adentrou
os pórticos da aldeia e quebrando o coité
respirou
o pó mágico sorvendo encantamentos
do
magnetismo que energizara sua alma
teceu
as vestes talares de seu reinado
fundindo
na forja de fogos fátuos a invisível coroa
e
o uirapuru anunciou aos mil povos da terra
que
o Príncipe Jacarandá havia regressado
sentar-se-ia
no trono de Tupã, liderando com vigor
todas
as etnias na batalha contra o vil colonizador.
THEOTONIO FONSECA DE SOUSA é Poeta, Professor e
Advogado. Autor das obras: Poemas Itapecuruenses e Outros Poemas (Ética, 2014),
O Batucajé das Iaras ( Ética, 2016), As Bodas de Sapequara ( Ponto a Ponto,
2021), Recital do Sol na Sagração da Aurora (Ponto a Ponto, 2022),
Autobiografia de um Sabugueiro (Ponto a Ponto, 2022), Prelúdio da Lua na
Dormição da Noite (Ponto a Ponto, 2022) e A Madona Vestida de Arame Farpado (Ponto
a Ponto, 2023)
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