5 Poemas em homenagem ao bicentenário de Gonçalves Dias.
*Theotonio Fonseca
Juracema dos Ventos
O sol a iluminava com a leveza do colibri
que oscula a flor. O peplo cróceo da alvorada
como véu que veste a fronte da musa amada
cobriu-lhe o desnudo corpo antes de partir
tão logo o argênteo dia partira, a noite surgira
e do oceano irromperam flâmulas de morticínio
famintos de ouro e sedentos de extermínio
adentraram o seio virginal das florestas
Tupã vendo o fim de seus filhos entre frestas
da divina visão sob a fumaça de vil pressago
dos arcabuzes a cravar pólvora no triste fado
em cada caravela escancarava-se uma janela
para a sangria que dizimaria os filhos da floresta
em cada ranhura do tempo a face de lamentos
a planger dos mil povos o desaparecimento
Juracema nadava entre vitórias-régias e iaras
quando ouvira o clangor dos primeiros estampidos
afugentando das árvores o azul das araras
ressoando dos curumins o lancinante gemido
Vendo-lhe a dolente lâmina a abrir sem pejo
a alma lacerada pela vergasta da dor infinda
Tupã aprouve de encantar a jovem tupinambá
na eólica forma de um vento benfazejo
e hoje quando nas aldeias uma menina
sente os lábios da aragem suas madeixar roçar
é Juracema dos Ventos que a parente abençoa
recordando que o ancestre uirapuru ainda ecoa
e em Pindorama este canto não haverá de calar.
O ancião e o tamoio
As cãs são as mesmas na neve que as define
o pranto é o mesmo no sal que lhes habita
e o sangue que singra-lhes o alquebrado corpo
tem o mesmo rubro eivado do divino sopro
mas o caminhar é distinto nas sendas da vida
o navegar é diverso nas águas do destino
o ancião vê passado, presente e futuro
como temporalidades divisíveis
o tamoio compreende a unidade do tempo
vida e morte como faces do mesmo dracma
corpo e alma como pergaminho unívoco
sem as ambiguidades do maniqueísmo
para além das semânticas individuais
do rol de crenças e da mó de certezas
os moleiros dos ciclos do existir
vão triturando impiedosamente a natureza
servindo fealdade em baixelas de antiga beleza
e o que unifica ancião e tamoio é a lápide
do porto onde todas as âncoras são fincadas
ilha sonâmbula onde sonhos exilados
gestam a putrefação entre o cipreste a áspide
é a morte, nada pode desdourar seu escuro
ou silenciar o sonoro címbalo de seu chamado
nada equaciona a lógica de seu absurdo
ou pode aterrissar seu pleno voo alado
e ao fim da navegação em derredor do existir
não existirão jardins além do bojador
apenas vermes a sacramentar o fim
entre raízes e ossos, areia, larvas e odor.
Flauta de taquara
Em Pindorama todo som emudecia
o maracá do pajé, da jaguatirica a cria
o estridor dos trovões, o rugido das feras
o crocitar do corvo e o sibilo de áspide velha
até mesmo a voz encantada da iara
silenciava diante da flauta de taquara.
Quem a executava? Ninguém o sabia.
Quem a manejava? Desconheciam.
Uns dizia ser Tupã em sua moradia
outros ser Pã na distante Hélade
a rústica flauta paralisava o toré do dia
e dilatava o quarup noturno de Hécate
Pachamama ao ouvir o instrumento
na alfombra do universo a fronte reclinava
a celeste música singrava mares de ventos
doce sinfonia que a criação embriagava.
Ainda hoje ninguém decifrara a autoria
da jubilosa flauta de ancestral magia.
Canoa de ossos à beira nau
Singrando rios de coagulado sangue
navegando a terra em transe e exangue
para desaguar em um golfo de lágrimas
no leme a sombra do Princípe Jacarandá
remando dores em busca de algum mar.
O que restara da queda do céu?
O que sobrara dos mil povos de Tupã?
Estrelas moribundas e astros ao léu
tingindo de luto o peplo cróceo da manhã
na proa fantasmática ressoa o grito do urutau
réquiem para a canoa de ossos à beira nau.
O discurso de sumé
Peregrinando o chão em busca de vestígios
do dilúvio que Tupã enviara à humana barca
indícios do heroísmo do nauta Tamandaré
e da canoa que abrigara nossos ancestrais
o Princípe Jacarandá achara Sumé a rezar
levitando sob uma touceira de mato
o santo descerrara as pálpebras e a falar
reuniram-se feras, áspides e bojudos sapos:
– Queima a pele e os ossos da alma sofrida
ver os homens caminharem sem direção
como quem desconhece chegada e partida
e caminha em círculos à deriva na solidão.
Ensinei-os a lavrar o solo de Tupã
o cultivo da mandioca, da banana e do milho
a invocar a chuva nas tórridas manhãs
a cura dos curumins livrando da morte os filhos.
O que hoje vejo no triste chão de Pindorama
são florestas ardendo em incontrolável chama
são meus filhos a morrer como indigentes
e a peçonha colonial, veneno de vil serpente
inocula o fim do imenso jardim de Nhamandú
regressa ao lar antes da queda do firmamento
antes que se desdoure o que restou do azul
e à flauta de taquara compõe teu último lamento.
*THEOTONIO FONSECA DE SOUSA é Poeta, Professor e Advogado. Autor das obras: Poemas Itapecuruenses e Outros Poemas (Ética, 2014), O Batucajé das Iaras ( Ética, 2016), As Bodas de Sapequara ( Ponto a Ponto, 2021), Recital do Sol na Sagração da Aurora (Ponto a Ponto, 2022), Autobiografia de um Sabugueiro (Ponto a Ponto, 2022), Prelúdio da Lua na Dormição da Noite (Ponto a Ponto, 2022) e A Madona Vestida de Arame Farpado (Ponto a Ponto, 2023)
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