AVERNO
Theotonio Fonseca
I
Que ourífico tesouro ou estercorário nada
habita a reentrância da desnuda calçada?
Pés que a tocaram, pranto que a osculara
sangue que clama da fresta do esquecimento
outrora derramado sob o bafo de gélido vento.
Quem decifrará cada linha tortuosa escrita
nas páginas de cimento destas memórias
hermenêutica dos transeuntes na arena da vida
semântica do desenlace de humanas histórias.
As vísceras putrefatas e o bico do corvo
carrancas da mesmíssima moeda
a sanha insana do sicário e o corpo
da vítima, funesto afã, infausta meta
paradoxos de humana expressão
miolo de rosas no útero de maligno pão.
assim caminha o humano caminhar
pés céleres de anjo a sustentar
a medonha forma de monstro inominável
adaga ébria de sangue, ventre aberto no pátio
auréola de morte sob asas de angelitude
Missa de Palestrina no grito gutural e rude
assim singra o barco bêbado a barlaventejar
oceanos ocos na desolada terra do nada
a iracunda ira na amorosa face do amar
voo do colibri roçando o cadáver na calçada.
II
Coruscantes raios colhiam pétalas de suor
ao rés do chão de defuntas estrelas
nos minutos sem sombra em sua mó
o moleiro moía dogmas e certezas
plurisofridas ninfas no plenilúnio
carpiam o derradeiro recital do alaúde
inebriantes chuvas de ácido semeavam
sépalas de palor no jardim incendiado
Babel era morta, Sião pálida paisagem.
Limiar de nascentes óvulos
sementes de ossos e óbolos
obscuros espantos
cálice vazio de sangue
roçando íntimos antros
ante o menstruo arrebol exangue
escoadouro de esgotos e rios de tesouros
lux in tenebris, cadência de ínferos balafons
cozendo ecos na túnica de calões indigestos
cobrindo as peludas vergonhas de Babalon
boca de peçonha no dorso de degolados mochos.
Sonâmbulos bestiários pessoais
escarnece o cururu bojudo, e ri-se Satanás!
III
Chegamos ao fundo da côncava gruta
urna telúrica de primevos segredos
onde o pó dos crânios aduba doces frutas
e o sangue fertiliza flores de asco e medo
são ínferas regiões de ardentes chamas
rios de fétido lodo, jardins de esterco e lama
o óbolo só nos permitira aqui aportar
argonautas sem nau e remo, como regressar?
Sem zéfiro ou éolo como barlaventejar?
É tão infinito o oceano que circunda o inferno
quanto a parafina que já ardeu em um cemitério.
Sentemos neste litoral de esquecimento
como outrora às margens do babilônico rio
cantaram os cativos suas odes de lamento
entoemos nosso réquiem sob o bafejo do vento frio.
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