sexta-feira, 3 de novembro de 2023

AVERNO

Theotonio Fonseca


I

Que ourífico tesouro ou estercorário nada

habita a reentrância da desnuda calçada?

Pés que a tocaram, pranto que a osculara

sangue que clama da fresta do esquecimento

outrora derramado sob o bafo de gélido vento.


Quem decifrará cada linha tortuosa escrita  

nas páginas de cimento destas memórias

hermenêutica dos transeuntes na arena da vida

semântica do desenlace de humanas histórias.  


As vísceras putrefatas e o bico do corvo

carrancas da mesmíssima moeda

a sanha insana do sicário e o corpo

da vítima, funesto afã, infausta meta

paradoxos de humana expressão

miolo de rosas no útero de maligno pão.


assim caminha o humano caminhar

pés céleres de anjo a sustentar

a medonha forma de monstro inominável

adaga ébria de sangue, ventre aberto no pátio

auréola de morte sob asas de angelitude

Missa de Palestrina no grito gutural e rude

assim singra o barco bêbado a barlaventejar

oceanos ocos na desolada terra do nada

a iracunda ira na amorosa face do amar

voo do colibri roçando o cadáver na calçada.


II

Coruscantes raios colhiam pétalas de suor

ao rés do chão de defuntas estrelas

nos minutos sem sombra em sua mó

o moleiro moía dogmas e certezas


plurisofridas ninfas no plenilúnio

carpiam o derradeiro recital do alaúde

inebriantes chuvas de ácido semeavam

sépalas de palor no jardim incendiado

Babel era morta, Sião pálida paisagem.


Limiar de nascentes óvulos

sementes de ossos e óbolos 

obscuros espantos

cálice vazio de sangue

roçando íntimos antros

ante o menstruo arrebol exangue


escoadouro de esgotos e rios de tesouros

lux in tenebris, cadência de ínferos balafons

cozendo ecos na túnica de calões indigestos

cobrindo as peludas vergonhas de Babalon


boca de peçonha no dorso de degolados mochos.

Sonâmbulos bestiários pessoais

escarnece o cururu bojudo, e ri-se Satanás!


III

Chegamos ao fundo da côncava gruta

urna telúrica de primevos segredos

onde o pó dos crânios aduba doces frutas

e o sangue fertiliza flores de asco e medo

são ínferas regiões de ardentes chamas

rios de fétido lodo, jardins de esterco e lama

o óbolo só nos permitira aqui aportar

argonautas sem nau e remo, como regressar?


Sem zéfiro ou éolo como barlaventejar?

É tão infinito o oceano que circunda o inferno

quanto a parafina que já ardeu em um cemitério.

Sentemos neste litoral de esquecimento

como outrora às margens do babilônico rio

cantaram os cativos suas odes de lamento

entoemos nosso réquiem sob o bafejo do vento frio.




 

Um comentário:


  1. Este poema é um retrato de um escritor notável que sabe que só será reconhecido de verdade depois de morto. Desde os primeiros versos, há essa consciência trágica, típica das grandes figuras literárias, que percebem sua glória como algo póstumo, talvez inalcançável em vida. É como se ele estivesse condenado à marginalidade no presente, mas vislumbrasse uma possível eternidade na posteridade.

    Ele se vê solitário entre as pessoas vivas, uma espécie de estrangeiro no próprio solo, e por isso tenta se apegar aos gênios mortos — aqueles que, como ele, também não foram reconhecidos plenamente em vida, mas que hoje fazem parte do panteão intelectual. Essa busca aparece nas imagens complexas do poema, como na “hermenêutica dos transeuntes”, que sugere a tentativa de interpretar os gestos banais e transformá-los em significado profundo. É o gesto típico de quem está em busca de um sentido maior, mas não o encontra entre os vivos e contemporâneos.

    O poema desenha uma cidade com uma riqueza intelectual indizível, mas ao mesmo tempo marcada por esgotos — metáfora que evidencia como os habitantes se preocupam mais com a lama da rua do que com a própria inteligência. Essa oposição entre o sublime e o grotesco está presente em versos como:

    “escoadouro de esgotos e rios de tesouros”;

    ou na clássica imagem “lux in tenebris” (luz nas trevas).


    A cidade é, simultaneamente, uma guardiã de saberes e um lugar negligente, onde essa riqueza se perde, afogada na sujeira, no esquecimento e na falta de cuidado cultural, ou melhor dizendo, de zelo e reconhecimento do povo.

    Há também um leve tom de que é uma terra de atmosfera ritualística , que, ao invés de libertar, amaldiçoa a si mesma, prende o artista e o engessa no tempo. Essa dimensão ritualística é reforçada pelo uso de imagens profundamente simbólicas e místicas:

    “sementes de ossos e óbolos”;

    “boca de peçonha no dorso de degolados mochos”;

    “Sonâmbulos bestiários pessoais”.


    O ambiente do poema é pesado, quase sobrenatural, como se a cidade estivesse sob uma maldição que a impede de progredir e, pior, que arrasta consigo quem tenta elevá-la — o poeta, o artista.

    O poema soa, portanto, como um grito desesperado de quem vê profundidade, de quem quer ver sua cidade no topo do mundo, mas a vê apenas cair em ruínas. A percepção é de que a cidade está fadada a ser enterrada na história, soterrada como as ossadas e as imagens que o poema evoca, sem que ninguém — nem mesmo o próprio poeta — consiga fazer o trabalho de engrandecê-la ou salvá-la.

    Essa tragédia pessoal e coletiva se condensa de modo sublime nos versos finais:

    > “Sentemos neste litoral de esquecimento
    como outrora às margens do babilônico rio
    cantaram os cativos suas odes de lamento”



    O poeta sabe que talvez não passe de um desses cativos, que canta não para ser ouvido, mas para marcar a própria dor e resistir ao esquecimento.

    Essa é uma das poesias mais difíceis e densas que já li— e com razão: o autor maneja imagens complexas, entrelaça o erudito e o grotesco, o sagrado e o profano, criando um tecido poético denso, desafiador, mas profundamente belo e trágico.

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