Wanda Cunha
Ilha Rebelde, talvez eu devesse dizer que te amo,
ainda que eu nunca tivesse podido te amar. Talvez eu devesse calar o passado,
os anos, nos quais te amei, sem poder usufruir - como usufruíram piratas e
poetas - do teu corpo inteiro. Talvez eu devesse, sim, instigar as lembranças
do mare clausum em que me transformaram e
do mare liberum que passei a ser, quando, dentro de mim mesmo, eu te
perdi, ao propiciar a navegantes sedutores o direito de te conquistar com um
amor que sempre fora meu.
Ilha dos Azulejos e Vitrais, no teu próximo aniversário – já sei -
receberás parabéns, receberás homenagens, receberás declarações de amor de
todos os amantes que nunca, em momento algum, te amaram tanto quanto eu te
amei. Nem Huig van Groot que, no “De Jure Predoe”, defendeu a tese da liberdade
dos mares, seria capaz de contestar o cárcere de amor a que me sujeitei por tua
causa.
Ilha dos Amores, que amores me deste naqueles
tempos longínquos em que te livrei das garras portuguesas? Ou não sabes que eu,
somente eu fiz fracassar a expedição de Aires da Cunha, em 1535? Por te amar
demais, tentei evitar a povoação de Nossa Senhora de Nazaré, ainda que debalde.
Senti ciúmes de Luís de Melo e Silva,
quando ele quis te conquistar, de Luís de Gamboa e de tantos outros que não sabiam
que eu sempre fora o teu primeiro donatário, entre a letargia da minha
baixa-mar e o frenesi da minha preamar.
Ilha da Trindade, em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, escuta a minha voz!... Deixa que eu te confesse o ciúme que
senti nos tempos em que todos os corsários
te seduziram. Como eu quis ser
Guérard e Roussel, em 1524, quando adentraram o teu corpo!... Quanta
inveja senti de Jacques Riffault, quando
em ti estabeleceu uma feitoria!... Inveja de Charles de Vaux que abocanhou tua
língua!... Quão idiota fui ouvindo as histórias de Claude d’Abbeville e Yves
d’Evreux!.... As declarações de amor que eles te fizeram eram minhas: “suas
árvores cheias de pássaro gorjeando entre frutos e flores...” e o “clima é
são e salubre... desperta muito apetite... belo e magnífico o céu porque nele
há estrelas maiores e brilhantes e mais luzentes do que em França...”.
Ó França Equinocial, até Gonçalves Dias, em sua
“Canção do Exílio”, feita em Coimbra, invejou Abbeville e Evreux, sem saber que
me invejava. E, em razão disso - confesso -
deixei que o poeta fosse um náufrago em minhas águas e morresse entre a
fúria das minhas ondas, para não mais
poder te amar em palavras, como eu te amei em silêncio. Sua Canção do Exílio
deveria ser minha. Eu, sim, sempre estive no exílio, na solidão do cais do
porto, trazendo e levando gente para os abraços das tuas ladeiras, sem poder
desfrutar dos teus carinhos, sem poder molhar teus vitrais e debruçar-me sobre
as sacadas dos teus casarões!...
Ilha Grande, que pequeno amor me deste ante tão
grande amor que te dei!.... Talvez não saibas, mas ainda tentei evitar que
Charlotte, Saint’Anne e Regente chegassem aqui!... Fui um mar tenebroso. Mas
Ravardière e Razilly me venceram no decurso de cento e dezesseis dias de minha
agonia. Eles não queriam apenas a Ilha Pequena a que Razilly batizou com o nome
de Sant’Ana. Eles te queriam, Upaon-açu. Queriam teus tupinambás e conquistar tuas vinte e sete
aldeias. E eu era apenas um mar, vassalo de Jeviré.
Upaon-Açu, teu nome originário dissolveu na boca
dos nativos naquele oito de setembro de 1612... De onde eu estava, vi e ouvi o
vento balançar tuas palmeiras, enquanto elas alardeavam que Razilly deu ao
Forte, construído por Laravàrdiere, o nome de Saint-Louis. Aquela que eu tanto amara
já não podia ser minha; era de um menino: Luiz XIII...
Atenas Brasileira,
foste dos franceses, sem nunca ter sido minha. E eu, mare liberum,
desde aquele tempo, nunca mais amei ninguém...
WANDA Cristina da CUNHA e Silva, filha do escritor, professor e jornalista maranhense Carlos Cunha e da professora Plácida Cunha, é poetisa, cronista, radialista, compositora, professora. Nascida em São Luís/MA, graduada em Jornalismo e Letras, pós-graduada em Língua Portuguesa e em Comunicação e Reportagem, pós-graduanda em Música e Artes e Teoria da Literatura. Já publicou sete livros, nos quais reúne poesias, crônicas, conto infantil e teatro juvenil. Integra várias antologias nacionais e já ganhou vários prêmios nas áreas de Literatura e Música
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