João Carlos Pimentel Cantanhede*
Dico estava arrumando a sua roupa na maleta quando ouviu alguém gritar lá fora:
– Vambora pra Vargem, Tinoca! – era Neusa Pimentel e mais alguns outros romeiros indo a pé da localidade Boca do Campo, Cantanhede até Vargem Grande para participarem do Festejo de São Raimundo Nonato dos Mulundus. Numa jornada de aproximadamente 9 léguas.
– Vão indo que eu alcanço vocês lá adiante! – Respondeu Tinoca.
– Tá certo! – respondeu Neusa e tocou pro rumo da Vargem com o seu grupo. Tinoca já havia fritado o frango no azeite; misturou com farinha de puba e colocou na lata. Enquanto isso, Dico pegou os sapatos e botou num saco. As roupas já estavam todas engomadas no ferro de brasa. As melhores brasas eram as de casca de sapucaia, pois quase não tinham cinza.
– Já tá tudo pronto, meu filho? – indagou Tinoca.
– Sim, mamãe! – respondeu Dico.
– Então, sebo nas canelas, porque eu não quero ficar para trás!
Já passava das 16h, Dico e Tinoca pegaram suas coisas e saíram da Boca do Campo no rastro de Neusa. Andaram, andaram e nada. Não viram nem o vulto dela. E se não alcançaram logo, não alcançariam mais, pois tinham que encostar na Fazenda Guaribas para encontrar Louzinha e Dedé, primas de Dico pelo lado paterno, que iam com eles para Vargem.
Quando chegaram em Guaribas já ia dar seisorinhas da tarde, as cigarras já começavam a cantar. Como a casa de Dedé ficava fora do rumo da viagem, ela foi esperar na casa de Louzinha. Ao avistarem Dico e Tinoca, elas logo se avexaram.
– Vamos simbora! – disse Tinoca.
– Bença, tia! – falaram as meninas, prontamente com as trouxas na cabeça. E todos seguiram viagem.
Quando a noite chegou, eles já iam passando na casa do Alzemir Pereira, na localidade Buriti, aproximadamente uma légua depois de Guaribas. A viagem toda era feita por meio de veredas pelo mato ou campo. Não era pelas estradas de rodagem ou ramal.
Caminharam léguas e léguas durante a noite, correndo o risco de aparecer alguma onça, cobra, um desertor ou serem assombrados por alguma visagem. Por via das dúvidas, como o caminho era estreito, viajavam em fila, Tinoca era a primeira e Dico o último. Desse modo, as meninas iam protegidas no meio.
Pisaram chão, pisaram chão e nada de alcançarem dona Neusa. Já estavam fadigados.
– Vamos comer o frito. Eu já não aguento mais! Já tô com fome! – disse Tinoca quando avistou uma casa na beira do caminho.
Pararam na frente da casa; arriaram a bagagem; pegaram o frito e comeram.
– Eita, comemos o frito e agora não temos nem uma gota d’água para beber! Como é que nós vamos aguentar o resto da viagem?! – falou Dedé.
Ao ouvir sua prima se reclamar, Louzinha olhou para um lado e para outro, não viu nem sinal de água, resolveu apelar para o dono da casa. Mas só por ilusão, pois nesse momento, ele deveria estar em sono profundo, visto que era tarde da noite. – Moço, me dê um pouquinho de água! – falou ela olhando para a casa. De repente, ouviram um barulho na porta.
– Olha, parece que mexeram na porta! – exclamou Louzinha. Pois não é que o homem abriu a porta já com a vasilha com água na mão!
– Tá aqui a água para vocês beberem! – disse o homem. Era uma pessoa de coração bom, que se compadeceu daquele pequeno grupo de romeiros. Todos beberam água, agradeceram ao dono da casa, se despediram e seguiram viagem.
Foram dormir já perto da meia-noite, num lugar quase campo, mas com boas árvores para armar redes. Acordaram com a cantiga dos galos ao longe. Se espreguiçaram, colocaram as redes nos sacos e ainda de madrugada tiraram pra Vargem Grande, antes das 9h chegaram lá.
Chegando na cidade, se dirigiram à casa de dona Raimunda (Dica), uma senhora negra, alta, muito gentil e acolhedora. Na sua residência ficavam abancados dezenas de romeiros espalhados pelos cômodos e também no enorme quintal cheio de árvores nas quais muitos armavam suas redes. Dona Dica era casada, o seu esposo era um senhor calmo, igualmente gentil e atencioso com todos. Eles tinham uma filha também chamada Dica.
– Bom dia, dona Dica. Podemos ficar aqui na sua casa? – falou Tinoca.
– Podem ir entrando, a casa é de vocês. Vão se abancando! – respondeu dona Dica.
A senhora viu dona Neusa Pimentel? – perguntou Tinoca.
– Não. Aqui ela ainda não chegou! – disse dona Dica.
Tinoca ficou muito feliz por ter chegado antes de dona Neusa, que provavelmente parou mais vezes durante a viagem e talvez tenha dormido em alguma casa no caminho.
O certo é que quando dona Neusa chegou lá, já passava das 11h. Ela então olhou meio envergonhada para Tinoca, por ter saído antes e ter chegado depois.
Como a casa já estava cheia, tanto o grupo de Tinoca quanto o de dona Neusa se abrigaram no quintal.
Três dias depois, com o encerramento do festejo, era a hora da despedida. Voltavam para suas casas cheios de saudades. Assim também ficavam dona Dica e sua família. Mas sempre com esperança e expectativa que o ano passasse rapidamente e logo chegasse agosto do ano seguinte para estarem todos juntos ali, no Festejo de São Raimundo Nonato dos Mulundus, pelo tempo que Deus permitisse.
* Adaptação livre de uma narrativa oral de meu pai Raimundo Arcêncio Cantanhede (Dico de Cipriano).