Quem – ou o quê –
festejar?
*LEOPOLDO GIL DULCIO VAZ
O Dia do Vaqueiro é 29 de agosto
(Lei Federal 11.797/2008). No terceiro domingo de julho é comemorado o Dia Nacional do Vaqueiro Nordestino. O vaqueiro é
responsável por realizar o tratamento de pastos e outras plantações para ração
que alimentam o gado, também realiza ordenha e mantém todos os cuidados com o
animal. Dia Nacional do Vaqueiro - 29 de
Agosto - Calendário 2023 (calendario.online)
Já no Maranhão, o festejo de São Raimundo Nonato dos Mulundus, o santo
vaqueiro, protetor e padroeiro dos vaqueiros, é um novenário – de 22 a 31 de
agosto, dia em que ele faleceu (ou foi encontrado morto?), na antiga fazenda,
hoje povoado, Mulundus, a 30 km de Vargem Grande (MA).
A ORIGEM DOS MULUNDUNS
Para o austríaco Ludovico
Schwennhagen, o Maranhão existia, como a república dos tupinambás, já antes
da fundação de Tupaón. Os sete povos tupis, que tomaram posse do norte do
Brasil, cerca de 1500 anos A.C., entram pela foz do rio Parnaíba, procurando as
serras em ambos os lados desse rio. Do lado oriental ficam os tabajaras, do
lado ocidental os tupinambás; os outros cinco povos estenderam-se para o sul e
sudeste. Todos os sete povos formaram uma confederação e as Sete Cidades
(no Piauí) eram a capital federal, isto é, o lugar, onde se reunia todos os
anos o Congresso dos Sete Povos.
(Schwennhagen, 1925).
Mas a harmonia não ficou sempre intacta; por
quaisquer motivo desligaram-se os tupinambás da confederação e constituíram seu
próprio congresso, ao lado ocidental do Parnaíba, em Mulundús.
Os tupinambás já eram grandes senhores, tinham
ocupado a maior parte do interior do Maranhão, tinham fundado mais de cem
colônias no Grão Para, Amazonas e Mato Grosso e precisavam dum centro nacional
para conservar a unidade da nação dos tupinambás.
Esse centro era Mulundús, onde se reuniam todo os
anos os delegados de todas as regiões, ocupadas pelos tupinambás. Nas cartas e
relatórios do padre Antonio Vieira encontram-se muitos indícios desses factos.
Ele relata que alguns dos seus amigos tupinambás lhe contaram que no interior
do Maranhão se reúnem os delegados de todas as aldeias que falam a mesma língua
geral, e pediram ao padre mandasse para lá um sacerdote católico para celebrar
missa, dentro da grande reunião do povo. Assim o antigo congresso de Mulundús
ficou transformado numa festa cristã, dedicada à memória de São Raimundo, como
ainda agora se faz. Sempre, porém, essa festa conservou o caráter dum congresso
popular, para onde veem de longe, de Goiás, Mato Grosso e Pará amigos, parentes
e comerciantes daquelas regiões que pertenciam antigamente ao grande domínio
dos tupinambás. Ludovico Schwennhagen
A região que compreendia Itapecuru Mirim, Vargem Grande, Chapadinha,
Brejo, Anajatuba, Manga do Iguará (Nina Rodrigues), Araioses, Cantanhede e
outras existia grandes fazendas de gados o que justifica
as centenas de vaqueiros devotos do Santo
espanhol, que segundo a lenda, enquanto fazia suas orações a Virgem
Maria esta enviava um anjo para guardar os rebanhos sob os seus cuidados, daí a
ter um “representante” conterrâneo melhor ainda.
Muito propícia a criação de gado, comercializados no Arraial
da Feira, atual Itapecuru Mirim ou transportada para São Luís via rio Munim. As
crianças desde muito cedo começavam a aprender o mister de vaqueiro, que era a
função de maior status entre os escravos. A profissão de vaqueiro passava
dos pais para os filhos.
O festejo de São Raimundo Nonato
dos Mulundus
Mas, qual ‘Raimundo Nonato’??? O Vaqueiro, morto, e reverenciado como
santificado? O filho da fazendeira, curado por intercessão do Santo (vaqueiro)?
Ou o santo espanhol?
RAIMUNDO NINA RODRIGUES, O FILHO DA PROMESSA
O filho da promessa, Raimundo Nina Rodrigues o
mais ilustre filho da terra, foi médico legista, psiquiatra, professor e antropólogo. Faleceu em 1906.
O pequeno Raimundo nasceu no dia 4 de dezembro de 1862, porém foi uma
criança com a saúde frágil e mais uma vez Dona Luiza recorreu ao Santo pedindo
proteção e saúde ao filho e em troca prometeu fazer vir da
Espanha uma imagem autêntica confeccionada na oficina sacra
da terra natal de São Raimundo. Quando o filho atingiu a juventude a
imagem foi encomendada. A trajetória da imagem foi difícil. Ela foi
enviada à Portugal de lá foi feito o translado de navio para a
capital, São Luís, depois foi levada de barco a vapor até Itapecuru
–Mirim quando as autoridades locais e eclesiásticas a transportaram até a
igreja de São Sebastião e depois à Mulundus. A chegada da imagem
ocorreu no penúltimo quartel do século XIX. Blog da Jucey Santana: SÃO RAIMUNDO
DOS MULUNDUS
Por volta dos anos 30 do século XIX, o tenente-coronel
Antonio Bernardino Ferreira Coelho adquiriu o Engenho Primavera que
outrora pertencera a madrinha do vaqueiro Raimundo Nonato. Na constância do
cargo de Deputado Provincial Antonio Bernardino transferiu a Vila de
Olho d’Agua para Vargem Grande em 1845. No final dos anos cinquenta
o deputado vendeu o Engenho Primavera ao coronel Francisco Solano Rodrigues. Ao
comprar as terras adquiriu também a escravatura dos antigos
proprietários com todos seus costumes e crendices. No local se estabeleceu com
a família depois do casamento com a senhora Luíza Roza Nina Rodrigues, onde
tiveram sete filhos: Djalma, Joaquim, Raimundo, Themístocles, Antônio, Saul, e
Maria da Glória. Blog da Jucey Santana: SÃO RAIMUNDO
DOS MULUNDUS
Dona Luíza figurou como responsável pela festa durante muitos
anos sendo seguida por seu filho o capitão Saul Nina Rodrigues que
mesmo residindo no Engenho São Roque em Anajatuba, gerindo os negócios da
família mantinha negócios em Vargem Grande tendo continuado como Mordomo da
festa. Dona Luiza faleceu em 17.12.1911.
O tenente- coronel Francisco Solano Rodrigues, foi juiz de direito,
Comandante Superior da Guarda Nacional, da Vila de Vargem
Grande, deputado constituinte, Presidente da Câmara de Anajatuba e
grande benfeitor de Vargem Grande, tendo cedido uma das suas casas para servir
de cadeia pública à Vila.
Desde o início do Século XX, começaram as campanhas pela
imprensa, pelos moradores e principalmente pelos comerciantes para a
transferência da festa para a sede de Vila de Vargem Grande. O
povoado de Mulundus, era desprovido de estrutura adequada para a celebração da
festa que havia se tornado muito grande.
Porém os tradicionalistas resistiam, por achar que a festa deveria
permanecer no local onde iniciou. Foram anos de negociações para solucionar o
impasse. Somente em 1953, na gestão do arcebispo Dom José Medeiros
Delgado, houve a transferência da festa para Vargem Grande, passando
a ter uma maior projeção. Os conservadores, no entanto, inconformados
continuaram celebrar São Raimundo Nonato em Mulundus, que em consenso a igreja
fixou a data do evento no povoado para o mês de outubro e assim respeitando a
religiosidade popular. A festa reúne féis de todo o Maranhão também
de outros Estados, em pagamentos de promessas.
O Santo Espanhol, São Raimundo
Nonato
Foi um doutor da igreja, um grande Bispo e mártir da fé católica. Roga
por nós, São Raimundo! (em catalão: Ramon Nonat, em castelhano: Ramón Nonato) é um santo católico romano que viveu no século XIII e se rebelou
contra a escravidão, que na época era tida como
natural. Raimundo recebeu a alcunha de Nonato ("não
nascido") porque foi extraído do ventre de sua mãe, já morta antes de
dar-lhe à luz, ou seja, não nasceu de uma mãe viva, mas foi retirado de seu
útero, algo raríssimo à época. São Raimundo Nonato - Diocese de São José do Rio Preto/SP
(bispado.org.br)
Por isso é festejado, no dia 31 de agosto, como o patrono das parteiras
e obstetras. Em 1224 entrou na Ordem de Nossa
Senhora das Mercês, que era dedicada a resgatar os cristãos
capturados pelos muçulmanos levados para prisões
na Argélia. Mas ele não queria apenas libertar os escravos,
lutava também para manter viva a fé cristã dentro deles. Capturado e preso
na Argélia, converteu presos e guardas, mas teve a boca perfurada
e fechada por um cadeado para não pregar mais. Após sua libertação, foi nomeado
em 1239 cardeal pelo papa Gregório IX, todavia no início de seu
caminho a Roma padeceu
violentas febres pela qual morreu. Servilio Conti. O santo do dia.- 10. ed
revisada e atual - Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. Raimundo Nonato – Wikipédia, a enciclopédia livre
(wikipedia.org)
Em “A história de São Raimundo Nonato dos Mulundus”, a professora
Dolores Mesquita diz que Mulundus era uma fazenda de “umas brancas da família
Faca Curta”, ricas e donas de muitos escravos. O racismo é impedimento à
santificação de negros no Brasil (geledes.org.br)
O fato: Raimundo Nonato, com outros vaqueiros, caçava uma rês desgarrada
e sumiu. Dois dias depois foi encontrado morto: o corpo conservado e exalando
um perfume! O povo entendeu que virara um santo. Não houve enterro. O corpo
sumiu! É um mistério! Segundo os escravos Raimundo, Secundio, Quirino,
Martiniano, Macário, Zé Firino, Militão e José Cabral, os padres levaram o
corpo para Roma. Mistérios e farsas sobre são
Raimundo Nonato dos Mulundus | O TEMPO
No local do acidente foi feita uma capela de palha (depois o santuário
de são Raimundo dos Mulundus, hoje em ruínas), e, chefiados por Macário
Ferreira da Silva, criaram um novenário, que se encerrava no dia de sua morte,
31 de agosto. “Isso pelos anos de 1858, mais ou menos” (Dolores
Mesquita).
Em 1858, já era rezada a novena,
e havia uma capela de palha para o santo vaqueiro, a partir da qual foi erguido
o Santuário de são Raimundo Nonato dos Mulundus, de rara beleza; e entre 1901 e
1908, o padre Custódio José da Silva Santos, de Vargem Grande, celebrava a
festa em Mulundus “Apesar do abandono em que vive,
o altar onde celebram as solenidades religiosas permanece firme, sendo
resistente ao sol e à chuva; diz o povo que não cai porque são Raimundo protege
aquele santo lugar”. O racismo é impedimento à
santificação de negros no Brasil (geledes.org.br)
Muito religiosa Dona Luiza, quando chegou já encontrou a capelinha em
Mulundus que fazia parte da propriedade da família. Passou a fazer
a manutenção e incentivar o culto a São
Raimundo Nonato. Em 1862, enquanto gestava um dos seus filhos se sentiu muito
doente então fez promessa, que se tivesse um bom parto, o filho receberia o
nome do Santo, porque além de protetor dos vaqueiros é invocado como patrono e
protetor das parturientes e das parteiras, porque durante o seu nascimento a
sua mãe faleceu e ele foi extraído vivo.
Após a Proclamação da República (1889), Mulundus foi comprada pelo
coronel Solano Rodrigues, cuja mulher, dona Luíza, em pagamento a uma promessa
ao santo vaqueiro, mandou fazer em Portugal uma imagem dele que custou 1 conto
e 700 réis, pela cura da pneumonia de seu filho Saul Nina Rodrigues, advogado,
irmão do médico Nina Rodrigues.
Até 1908, os padres celebravam missa no santuário de Mulundus. Em 1930, o
arcebispo de São Luís proibiu o festejo, alegando ser profano! As perseguições
do oficialato católico ao santo vaqueiro beiram a insanidade e a ganância. O
povo manteve a devoção, sem padre e sem missa.
Em 1954, o arcebispo dom José Delgado, acoitado pela polícia, “mudou”,
como se fosse dono de uma obra popular, o Santuário de Mulundus para Vargem Grande,
dando-lhe novo nome: Santuário de São Raimundo Nonato, bispo espanhol da ordem
dos mercedários (1204-1240), santificado! Os romeiros não arredaram de
Mulundus!
A arquidiocese decidiu disputar com Mulundus e
dividir a fé do povo: “Comprou 180 hectares da fazenda
Paulica, a 7 km de Vargem Grande, e fez uma
capela para onde os romeiros em procissão conduzem a imagem
de São Raimundo Nonato (o bispo espanhol) no
dia 22 e a trazem de de volta para igreja no
final do dia” (professora Dolores Mesquita).
O VAQUEIRO RAIMUNDO NONATO
Para Marcus Ramusyo de Almeida Brasil, A história de São Raimundo Nonato
dos Mulundus está envolta em narrativas de mistério, fé e devoção, no contexto
das crenças populares e das práticas performáticas socio-culturais que as
engendram. São Raimundo Nonato dos Mulundus, o
santo vaqueiro: travessias da religiosidade em movimento | Domínios da Imagem
(uel.br):
Raimundo Nonato Soares Cangaçu nasceu em 31 de
outubro de 1700, no povoado de Vargem Grande. Veio a falecer no dia 31 de
agosto de 1732. Revela a memória coletiva que o vaqueiro Raimundo Nonato estava
cavalgando em velocidade pelas matas quando bateu com seu cavalo em uma árvore.
Tanto ele quanto seu cavalo ficaram combalidos, ali pereceram e morreram. No
entanto, ao entrar em estado de decomposição, em vez de feder e ser comido
pelos vermes, o corpo de Raimundo Nonato se santificara, emanava, então, perfume
de flores. Nasceu, ali, linda vegetação. O local de sua morte tornou-se lugar
de peregrinação com o passar do tempo. Seu nome se manteve forte no imaginário
popular do sertanejo da região, vindo a se tornar o santo protetor dos
vaqueiros e daqueles que vivem nos rincões do Maranhão profundo, através de
quase 300 anos de tradição. (MELO, 2016, Nágela Mila de. São Raimundo Nonato
dos Mulundus em Vargem Grande – MA: uma experiência estética. Licenciatura em
Artes Visuais – Departamento da Licenciatura em Artes Visuais do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão – Campus Centro
Histórico, 2016. Monografia em Artes Visuais.)
*Leopoldo Gil Dulcio Vaz, nasceu em Curitiba (Pr), especializado em Educação Física, mestre em Ciências da Informação, especialista em Metodologia de Ensino e em Lazer e Recreação, professor, escritor e pesquisador, faz parte
das seguintes instituições literárias: Academia Poética
Brasileira, Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e Academia Ludovicense de
Letras. Com vários prêmios em pesquisa histórica, estaduais e nacionais. Editor das seguinte revistas: Nova Atenas, de Educação Tecnológica (IFMA) eletrônica: Revista do In stituto Histórico e Geográfico do Maranhão - Edições 29 a 43: ALL em Revista - Eletronica da Academia Ludovicense de Letras: Revista do Léo, Maranha-y e LUDOVICUS: Condutor da Tocha Olímpica - Olimpíada Rio 2016.