Resumo: O presente artigo analisa os poemas
“Quadros” e “Ruínas”, publicados no periódico O Rosariense, em 1904, pela escritora maranhense Mariana Luz
(1871-1960). Os poemas abordam a hierarquização de raça, de gênero e,
sobretudo, de classe, apresentando como estética o simbolismo ao articular
sons, imagens e sentidos para retratar a sociedade brasileira injusta do início
do século XX. Mariana Luz, negra e do interior do Maranhão, rompe o seu local
de pertencimento para levar ao país o sofrimento dos menos afortunados nas
páginas da imprensa maranhense. Em vista disso, este texto, além de revisar a
historiografia literária brasileira, analisa como Mariana Luz foi uma voz de
resistência numa imprensa basicamente conservadora e patriarcal ao
problematizar a relação de classe entre os sujeitos brancos e negros, homens e
mulheres. Em outras palavras, uma autora que merece ser conhecida e valorizada
tanto por sua qualidade estética quanto histórico-social.
Palavras-chave: Mariana Luz. Poesia social. O Rosariense. Imprensa maranhense.
Literatura brasileira.
Abstract: This paper analyzes the poems
“Quadros [Paintings]” and “Ruínas [Ruins]”, published in the newspaper O Rosariense, in 1904, by Mariana Luz
(1871-1960), a writer from the State of Maranhão, Brazil. The poems address the
hierarchization of race, gender and, above all, class, presenting as aesthetics
symbolism when articulating sounds, images and senses to portray the unjust
Brazilian society of the early twentieth century. Mariana Luz, an afro descent
from the interior of Maranhão, breaks her place of belonging to bring to the
country the suffering of the less fortunate in the pages of the Maranhão press.
In view of this, this text, besides reviewing the Brazilian literary
historiography, analyzes how Mariana Luz was a voice of resistance in a
basically conservative and patriarchal press in problematizing the class
relationship between white and non-white, men and women subjects. In other
words, an author who deserves to be known and valued for both her aesthetic and
historical-social quality.
Keywords: Mariana Luz. Social poetry. O Rosariense. Maranhão press. Brazilian
literature.
1. No campo dos estudos literários mais recentes está
ocorrendo um movimento de revisão do cânone e da historiografia literária do
Brasil, a qual passa a abandonar um entendimento monolítico do passado
literário para dar lugar a um entendimento múltiplo, possibilitando
reavaliações de autores e obras.
A historiografia literária brasileira, habitualmente,
registra a produção dos escritores reconhecidos e elogiados em sua época. Os
casos dos esquecidos no seu tempo e depois dele tornam-se objeto de descaso,
não sendo contemplados por parte dos manuais de literatura brasileira, os quais
foram construídos, a partir do século XIX, com base nos mecanismos
estabelecidos pelo cânone eurocêntrico hegemônico, isto é, branco e masculino,
resultando em uma presença rarefeita de autoria negra[2],
sobretudo, autoria negra feminina.
A prática colonial do patriarcado enraizou no Brasil uma
ideologia de hierarquização de gênero, de raça e de classe, a qual naturalizou
as relações desiguais de força e poder, responsável, inclusive, por determinar
quem está dentro ou fora do cânone literário nacional. Se para alguns homens
brancos essa missão já era difícil, para algumas mulheres brancas era ainda
mais complicado; para o homem negro quase impossível, quem dera a sorte, então,
de uma mulher negra ser, ao menos, reconhecida no seu local de pertencimento,
uma vez que estavam ausentes da historiografia literária. Sem comentar a
relação de classe também embutida por trás disso.
A literatura de autoria feminina no Brasil tem um
significativo histórico de apagamento que, independentemente da qualidade
estética, era marginalizada por fatores raciais, sociais e de gênero. Desse
modo, todo e qualquer revisionismo feminino é a “desconstrução de parâmetros,
estratégias e ideologias antigos, inclusive literários, para que se forme um
novo sistema de relacionamento social, baseado em uma nova mentalidade, sem
hierarquização, dominação e binarismo” (BONNICI, 2007, p. 231).
Em sua maioria, a literatura de autoria feminina era
colocada de lado, já que era considerada inadequada aos princípios fundamentais
do cânone literário, marcados pelo preconceito de cor, de raça e de classe
social. Se tomarmos como ilustração desse fato as histórias literárias de José
Veríssimo e Sílvio Romero, o retrato é alarmante, já que a literatura
brasileira estava somente constituída por homens. E, aos poucos, a literatura
de autoria feminina foi sendo introduzida, desde Lúcia Miguel Pereira, na
década de 1950, às mais recentes historiografias literárias publicadas no país
(Candido, Bosi, Castello etc.), porém ainda de forma insuficiente.
A escrita de autoria feminina, já no século XIX, surge com
outros interesses, além do mundo doméstico e das relações amorosas, ganhando
espaço na imprensa e na sociedade. Mesmo assim, embora a produção escrita por
mulheres tenha qualidade, historicamente, o cânone literário universal sempre
privilegiou a produção escrita pelo homem ocidental, branco, de classe média
alta, formalizando uma ideologia que exclui os escritos das mulheres,
especialmente, das mulheres das etnias não-brancas, das chamadas minorias
sexuais, das menos abastadas.
E, mesmo nessa condição de subalternidade, as mulheres
(brancas e negras, ricas e pobres) passaram a ganhar e/ou conquistar os espaços
até então destinados aos homens, como o jornalismo no século XIX e início do
século XX no país.
Elas escreviam em jornais
destinados somente para mulheres ou atuavam junto aos periódicos voltados ao
público geral, publicando editoriais, ensaios, informes, charadas, músicas,
poemas, crônicas, contos, novelas, romances e críticas em torno de diferentes
assuntos: desde a maternidade, a defesa da família e do lar, da moda europeia e
etiqueta, até ao que podemos chamar de um movimento proto-feminista na luta
pela libertação dos sujeitos escravizados, pelo direito à educação, à profissão
e ao voto (TOLOMEI, 2019, p. 155).
Por exemplo, o caso da escritora negra Maria Firmina dos
Reis, que fez parte daquele grupo seleto de mulheres que, durante o século XIX,
no Brasil. A autora conseguiu ser ouvida ou por meio de sua carreira de
professora ou por sua literatura, rompendo com todos os preconceitos de raça,
de gênero e de classe, mas, depois do seu tempo, caiu no esquecimento, sendo
revisitada somente em 1975, por José Nascimento Morais Filho, com o estudo Maria Firmina dos Reis: fragmentos de uma
vida, o qual reconstitui a vida e a obra da escritora maranhense. Desde
então, a obra firminiana foi ganhando espaço e passando a ser reeditada
constantemente e sendo objeto de diversos estudos analíticos em diferentes
áreas do conhecimento (ZIN, 2018). Em vista disso, Firmina é um exemplo
importante de resgate das obras de autoras brasileiras negras deixadas à
margem, relegadas ao esquecimento pelo cânone literário sob o pretexto possível
de uma produção de baixo valor estético em face da chamada alta literatura de
autoria masculina e branca.
Com Maria Firmina dos Reis, outras vozes desconhecidas saem
do ostracismo, sendo descobertas e divulgadas ao público atual, como é o caso
da escritora maranhense Mariana Luz (1871-1960), que teve importante papel na
imprensa periódica do Maranhão do final do século XIX e início do século XX,
com diversas publicações, sobretudo, poética, porém esquecida dos compêndios
literários. A autora negra Mariana Luz, tal qual sua conterrânea mais ilustre,
rompeu as correntes do preconceito e não se retraiu, sendo escritora, teatróloga,
professora, artesã e oradora em meio à plena dominação social do patriarcado
branco. Mariana, apesar de aclamada na época, faleceu antes de ver as páginas
de seu único livro – uma coletânea de seus principais poemas divulgados em
diversos jornais do Maranhão e de outros estados brasileiros no fim do século
XIX e início do XX –, intitulado Murmúrios
(1960).
Ressaltamos que a obra de Mariana Luz está sendo recuperada
por seus conterrâneos maranhenses, como no estudo de Jucey Santana, denominado Marianna Luz: vida e obra (2014); Os murmúrios de Mariana (2017), de José
Neres; Mariana Luz: jornalismo literário
na imprensa maranhense no início do século XX (2019), de Luiza Natalia
Macedo Marinho; além de pesquisas realizadas por membros do “Grupo de Estudos e
Pesquisa em Lírica de Língua Portuguesa” (UFMA/CNPq), liderado pelo professor e
pesquisador Rafael Campos
Quevedo, e o “Grupo de Estudos e de
Pesquisa Literatura, História e Imprensa” (UFMA/CNPq), liderado pela professora
e pesquisadora Cristiane Navarrete Tolomei.
Logo, neste texto, com intuito de recuperar e divulgar a
poesia de Mariana Luz, revisitamos as publicações da autora no periódico O Rosariense, em 1904, da cidade de
Rosário, interior do Maranhão, que contemplam, poeticamente, questões sociais,
demonstrando o engajamento da autora. Assim, após catalogação dos poemas
publicados por Mariana Luz no jornal em questão, notamos duas linhas de força
de sua escrita poética: uma poesia intimista e outra engajada. Em geral, os
poucos trabalhos que tratam da poesia de Mariana Luz optam por analisar a
primeira linha de força; entretanto, para este estudo, trazemos uma leitura
desobrigada dos aspectos mais introspectivos e íntimos dos poemas, para
centrar-se em uma análise contextual, focalizando questões coletivas, que
questionam a hierarquia de raça, de gênero e de classe, compreendendo o local
de enunciação de Mariana Luz e a complexa malha social à que pertence e se
propõe a discutir em sua poesia engajada. Assim, de forma pontual, analisamos
os poemas “Quadros” e “Ruínas”, verificando como a escritora foi militante nas
páginas da imprensa maranhense no início do século XX, questionando a prática
colonial do patriarcado e da patronagem.
2. Com o novo regime republicano instaurado em 1889 e sem
colaboração das massas, o Brasil, na virada do século XIX para o XX, permanecia
amarrado ao sistema de clientela e patronagem do tempo colonial, intensificando
as tensões de raça, de gênero e de classe. Sobre as elites políticas desse
período, Silvio Romero (1893, p. 56) foi categórico:
E depois este sistemático
desdém pelo povo, declarando incompetente para fazer a escolha de seus
representantes políticos e acoimado de vícios no manejo desse direito... é nada
menos do que a pretensão desairosa e extravagante de dividir ainda e sempre a
maioria válida de uma nação em dois grupos – de um lado os privilegiados, os
possuidores sem monopólio das luzes e da dignidade moral, e de outro lado, os
ineptos e viciados, os incapazes de qualquer ação política acertada! Àqueles, o
governo, a direção, o mando, aos outros a eterna tutela, a minoridade, a
incompetência perpétua. É o regime do privilégio na sua mais recente edição,
porém sempre o privilégio, queremos dizer o abuso e a compressão.
As relações
econômicas e sociais no Brasil sempre estiveram embasadas no sistema de poder e
representação, fortalecendo, no país, uma ideologia de hierarquização de raça,
de gênero e de classe, isto é, às elites destinam-se os benefícios, e, ao povo,
a subalternidade. E no âmbito da história da literatura nacional, o mesmo
princípio organizador daqueles que estavam no topo da hierarquia social
determinava a construção de sua historiografia literária.
Tanto a narrativa
histórica quanto literária têm sido instrumentos de dominação e exclusão,
sobremaneira, da figura da mulher que, cerceada pelo sistema patriarcal
brasileiro, ficou oculta por muito tempo nos manuais históricos e literários.
Segundo a historiadora Emília Viotti da Costa (2010, p. 497):
Até a segunda metade do
século XX, a história pouco valorizou as mulheres que, um século antes, criaram
sociedades abolicionistas e literárias, escreveram livros e artigos criticando
o sistema patriarcal, publicaram revistas em favor da emancipação da mulher,
apoiaram o movimento republicano, associaram-se aos primeiros grupos
socialistas e anarquistas e exigiram o direito à educação e ao voto. Na
penumbra também permaneceram as mulheres que, à testa de negócios e de
fazendas, conseguiram sustentar suas famílias depois da morte dos maridos,
assim como as mulheres das camadas subalternas, escravas ou livres.
Mulheres de
diferentes classes sociais, durante o momento de “democratização” do país,
conquistaram posicionamentos em espaços diversos, embora essa suposta
independência da mulher estivesse ainda atrelada à teia patriarcal. Muitas que
conseguiram uma educação adequada tornaram-se colaboradoras de jornais e
revistas por todo o Brasil, em geral, mulheres brancas e da elite; entretanto,
mesmo aquelas que não estavam no topo da hierarquia social, tornaram-se, por
meio de vários fatores familiares e externos que não convém detalhar aqui,
professoras e escritoras, como os dois casos citados anteriormente de Maria
Firmina dos Reis e Mariana Luz, as quais, pertencentes às camadas subalternas e
negras do interior do Maranhão, conseguiram em vida o privilégio da escrita
jornalística e literária na imprensa da segunda metade do século XIX e primeira
do XX.
Gênero, raça e classe sempre estão em conflito no Brasil,
marcando historicamente essas relações, em virtude do patriarcalismo e
patronagem que estabeleciam barreiras entre ricos e pobres, negros e brancos,
citadinos e campesinos, homens e mulheres. Até mesmo dentro do próprio gênero
há divergências:
[...] a experiência das
mulheres das camadas subalternas e das classes média e alta diferia. Para a
escrava, a principal preocupação era a liberdade, para as mulheres livres e
pobres, a sobrevivência era a questão fundamental, e para as mulheres de elite,
o alvo a ser alcançado era a independência e a autonomia (COSTA, 2010, p. 515).
Mariana Luz, mulher negra, nascida em 1871 em
Itapecuru-Mirim, interior do Maranhão, em plena escravidão, foi uma das poucas
mulheres que usufruíram de um relativo grau de liberdade, sendo elas brancas ou
negras. Filha de uma negra, Fortunata Gonçalves da Luz, e de um descente de
portugueses, João Francisco da Luz, a escritora teve todo o apoio familiar para
conseguir uma ótima educação na capital do estado, São Luís, e desejar muito
mais do que mera sobrevivência.
Na contramão da sociedade e do cânone da exclusão, foi uma
das escritoras maranhenses mais proativas na última década do século XIX e
primeira década do século XX na imprensa periódica do Maranhão (MARINHO, 2019).
Ela superou o preconceito de raça, de gênero e de classe em uma sociedade
extremamente patriarcal do interior do estado para destacar-se como uma voz de
desconstrução das posições conservadoras.
Professora e colaboradora de jornais desde a adolescência,
já aparecia nas décadas de 1880 e 1890 nos periódicos da capital, como Diário do Maranhão, Paiz e Pacotilha. Além
disso, também contribuiu, na primeira década do século XX, em jornais do
interior do estado, como O Rosariense e
Gazeta do Codó, e, eventualmente,
publicando em jornais de fora do estado, como na Gazeta de Petrópolis, do Rio de Janeiro. De acordo com Jucey
Santana (2014), além desses periódicos, Luz publicou no Jornal do Ceará, na revista literária feminina O Lyrio, de Recife, na Gazeta
de Notícias e Correio da Manhã,
do Rio de Janeiro.
A produção de Mariana Luz é variada, incluindo poesia,
crônicas, hinos e cantos litúrgicos, orações a santos e peças teatrais,
distribuídos por temas diversificados. Assim, em decorrência dessa vasta obra,
foi eleita em 28 de julho de 1948 para tomar posse da cadeira de número 32, da
Academia Maranhense de Letras. Sobre isso, Santana (2014, p. 75) ressalta:
Foi muito noticiada, em
todos os jornais da época, a eleição de Mariana Luz à Academia, por vários
fatores: era um fato inédito porque era mulher, negra, muito pobre e residente
no interior do Estado, antes dela só uma mulher havia chegado àquela Casa, a
poetisa Laura Rosa, e a Academia Brasileira de Letras, era ainda uma
instituição exclusivamente masculina.
Em seu discurso de posse, Mariana Luz, impossibilitada de
ler, com visão já limitada, pediu permissão para que ele fosse lido pelo
acadêmico Mata Roma. Dos trechos principais do seu discurso, podem ser
destacados estes:
A doce convivência que tenho
tido com as musas, só vem mais do meu espírito contemplativo, da necessidade de
verter em rimas (por ser a modalidade que mais me convém ao temperamento) os
anseios, os pensamentos, as reações que me vem do coração, originadas, talvez
pelo ambiente calmo e nostálgico do meu torrão natal, da sua vida para mim tão
bela, na sua encantadora simplicidade, tão propícia, assim, aos devaneios
espirituais e a meditação, do que propriamente ao cultivo das letras. A poesia é para mim, um sentimento que habita
em todos nós; mais profundamente em uns que em outros, que nos torna, assim,
como que poetas em potencial, à espera somente da centelha divina da inspiração
ou da diligência acurada [...] (LUZ, 1949, apud
SANTANA, 2014, p. 112).
Mesmo pertencendo à Academia Maranhense de Letras, a autora
lutou por vários anos pela publicação de seu único livro, Murmúrios, o qual foi publicado em 1960, em pequena tiragem, por
iniciativa dos jovens do “Centro Acadêmico Clodomir Cardoso”, da Faculdade de
Direito do Maranhão, em conjunto com a
“Orbis Clube”, de São Luís. Mesmo com o esforço dos jovens acadêmicos, Mariana
Luz falece antes de conseguir folhear as páginas do seu livro. E, 30 anos
depois, com o objetivo de resgatar a produção literária de sua antiga mestra,
Benedito Buzar, ex-aluno da autora e membro da AML, reedita Murmúrios pela oficina do Serviço de
Imprensa e Obras Gráficas do Estado, no ano de 1990 (MARINHO, 2019).
Grande parte da obra
de Mariana Luz, devido à falta de boas condições de acondicionamento, acabou
perdendo-se no acervo que ficou aos cuidados de Francisco Félix, filho adotivo
dela, sendo depois repassado ao seu irmão, Absai Siqueira Sousa. Em vista
disso, a pesquisa documental no acervo da Biblioteca Benedito Leite, de São
Luís, foi o principal meio para recuperar os textos de Mariana Luz nos diversos
periódicos que escreveu.
Em uma vida de plena atividade jornalística e literária,
nem tudo foram flores para Mariana Luz e, em alguns momentos, ela sofreu
preconceito de gênero e de raça nas páginas dos jornais maranhenses. Por
exemplo, um dos casos ocorreu no dia 27
de outubro de 1934, quando ela foi vítima de comentário racista feito por um
homem branco, sem identificação, em depoimento ao Pacotilha: “e uma pretinha que se diz delegada do Pé-Rapado”
(PACOTILHA, 1934, p. 3) Outro caso ocorreu em 1947, e, além do preconceito de
gênero e de raça, Mariana Luz sofreu também com o preconceito de classe, dessa
vez pelo jornalista, também itapecurense, Raimundo Cardoso, em um artigo
publicado a 13 de abril, em O Imparcial,
no qual ele ridicularizou os aspectos físicos de Mariana, na época já com seus
75 anos, com adjetivos preconceituosos do tipo “mulata”, “pedante”, “duvidosa
na cor, quase nada de encantos, quase nada de mulher”, “cara machucada de
velhice”, “feia, pobre e sozinha”. Foi perseguida por incomodar a sociedade
maranhense, sendo uma voz política ativa em sua cidade, pois trazia para debate
críticas à desigualdade, como relata Jucey Santana (2014, p. 48-49):
Nos anos 20 e 30 se envolveu
em questões políticas defendendo as classes menos favorecidas, principalmente a
dos professores, questionando os baixos salários e atrasos nos pagamentos que
muitas vezes chegavam a dois anos.
Em represália passou a ser
alvo de perseguição tendo sua subvenção cortada ocasionando-lhes grandes
transtornos financeiros, obrigando-a a fechar a escola e ir para São Luís
procurar outro meio de vida e ajuda de amigos e familiares.
A autora sempre esteve à frente de seu tempo e conseguiu
ultrapassar a barreira do racismo e do sexismo para pensar as relações
econômicas e sociais do país em sua obra, sobretudo, na poesia engajada que
produziu no início do século XX. Em uma espécie de poesia de conscientização,
que surge como uma proposta interartística e de engajamento para contestar o
poder hegemônico da aristocracia branca brasileira, Mariana Luz propõe refletir
a dominação político-social e econômica dessa esfera social e seu descaso para
com os pobres e negros.
Em sua poesia engajada, Luz cria um sujeito lírico que
observa e se contrapõe à forte herança patriarcal e da elite branca,
questionando os limites étnico-sociais e destacando a existência dos
subalternizados. Esse posicionamento fica bem claro em suas publicações no
periódico O Rosariense, entre os anos 1903 e 1905, que, mesmo
sendo um periódico do interior do Maranhão, trazia, nos poemas de Luz, uma
atitude progressista e alinhada à luta por melhores condições da população.
No jornal O
Rosariense, Mariana Luz traz uma poesia de confronto, denunciando as
injustiças sociais e alargando o horizonte dos leitores para a realidade cruel
em nível local do Maranhão e nacional do início do século XX. De acordo com
Alfredo Bosi (2000, p. 169):
A poesia resiste à falsa
ordem, que é, a rigor, barbárie e caos [...]. Resiste ao contínuo “harmonioso”
pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo
harmoniosa. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste
imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia.
A escrita engajada de Luz na imprensa maranhense funcionou
como terreno fértil para contestações, e recuperar a sua escrita junto da
imprensa é compreender como a poesia dela é um espaço de politização social,
questionando as desigualdades que marcaram o Brasil no século passado. O mais
interessante é que Mariana Luz é mais reconhecida por sua poesia líricoamorosa,
conservadora de formas fixas passadas e defensora de uma literatura mais “arte
pela arte”; todavia, o que nos interessa mais de perto é essa produção na qual
a autora reivindica o discurso do poder da mulher negra. Salientamos que
Mariana Luz não escreveu em periódicos destinados somente para mulheres como
era de costume no período, mas para o público geral, colocando-se como uma voz
feminina negra dissidente no interior do Maranhão no início da Velha República.
No tocante às estéticas literárias seguidas pela autora,
ela nunca se familiarizou com o movimento modernista, conforme externa em
entrevista ao O Imparcial, em 1949:
“Esta nossa literatura moderna não me agrada muito. Prefiro a escola antiga,
porque me parece agradar mais ao coração. Está mesmo mais condizente com a
minha alma sofredora” (apud MARINHO,
2019, p. 37). Além disso, na mesma
entrevista, revela seu apreço pelo Simbolismo de Cruz e Sousa e o Romantismo de
Castro Alves, que marcam sua produção poética entre uma escrita intimista e
engajada.
Dessa forma, Maria Luz exerce uma prática de escrita de
autoria feminina sociopolítica, descontruindo o discurso dominante e
redirecionando o lugar de enunciação ao documentar, pelo viés literário na
imprensa maranhense, as violências da representação e da opressão, acima de
tudo, sobre os sujeitos negros no Brasil.
3. Abordar a presença das mulheres na imprensa periódica é
compreender como esse espaço é fundamental para o fenômeno literário, e
recuperar a escrita das mulheres junto da imprensa é verificar como elas
tiveram papel importante tanto para a história da literatura quanto da história
da imprensa nacional.
Se, na segunda
metade do século XIX, as mulheres já eram uma presença considerável na
imprensa, no início do século XX, elas ganharam mais visibilidade devido a
questões sociais e econômicas que determinaram a progressiva alfabetização das
mulheres e abertura para o espaço público. De acordo com a pesquisadora
Constância Lima Duarte (2016, p. 26):
[...] o protagonismo
feminino adentra as redações e toma
para si a direção política e
ideológica de muitas das folhas destinadas às mulheres. De leitoras a
redatoras, abrem espaço às vozes femininas antes reclusas às
alcovas, e empreendem
a transformação hoje
perceptível no perfil dessa imprensa: de “revistas de moda” a órgãos de
reflexão.
As colaboradoras dos
jornais abordavam temas diversos, mas o que cabe salientar é a significativa
participação das mulheres em um ambiente dominado pelo homem, independentemente
do tipo de periódico, público leitor, publicação sobre assuntos domésticos ou
sociais. Heloísa Buarque de Hollanda (1993) destaca que a participação das
mulheres na imprensa desde o século XIX teve grande importância na formação de
uma literatura e de um ensaísmo feminino no Brasil. Também, para Maria Amélia
Teles (1993), o papel das mulheres na imprensa passou a estimular e disseminar
novas ideias, comportamentos e práticas sociais que destacassem o protagonismo
feminino e denunciassem qualquer tipo de proposta de desigualdade racial, de
gênero e de classe.
Entre uma imprensa
conservadora e progressista, Mariana Luz transitava pelas duas vertentes, já
que ela escreveu desde textos de modelo romântico e religioso até a mais
avançada crítica social. Logo, para este texto, propomos a análise de dois
poemas de Luz publicados em
1904 no periódico O Rosariense, denominados “Quadros” e “Ruínas”, os quais ilustram
uma preocupação estética do fazer poético, priorizando as imagens do cotidiano
da vida social brasileira nitidamente dividida entre a classe branca abastada e
a população negra pobre, isto é, interessa-nos observar a atuação da escritora
maranhense na imprensa progressista e na poesia de engajamento.
O poema “Quadros” foi publicado no periódico O Rosariense, no número 42, p. 2, de 11
de março de 1904 e, como anunciado no título, é composto por quartetos,
formando um poema em quadras com versos decassílabos e esquema de rimas ABCB,
DEFE, GHIH, JKLK, nas quais “B”, “E”, “H” e “K” são cruzadas, e as demais,
sempre posicionadas nos 1º e 3º versos de cada estrofe, são rimas órfãs.
Quadros
Soa o teclado ebúrneo do
piano
Sob os dedos da bela
aristocrata,
E logo após
escutam-se as estrofes
De uma tocante e doce serenata.
Tudo nesse salão, onde a
riqueza
Reúne da elegância a fina
flor,
Respira do
prazer a pura essência,
Aí não tem entrada a negra dor.
Ouvem-se vozes frescas;
lábios róseos
Soltam
risadas francas, argentinas,
Que vão perder-se em moitas perfumadas
Onde
desabrocham flores peregrinas.
E entretanto a porta,
macilenta,
Triste
mendiga nos degraus sentada
Beija o filhinho nu, adormecido
E estende a mão
pedinte e descarnada.
(LUZ, O ROSARIENSE, 1904, n. 42, p. 2)
O título também sugere, além da estrutura poética, a
aproximação entre literatura e pintura, criando um poema cujo movimento ocorre
entre a expressão poética e a expressão plástica. Segundo Aguinaldo José
Gonçalves (1997, p. 58), “essas duas expressões tão distintas, uma formada
pelos signos artificiais e a outra pelos signos naturais, pareciam comunicar-se
por suas línguas distintas e entrecruzar-se na produção de sentidos”. Assim, Mariana
Luz, nos moldes do poeta simbolista francês Stéphane Mallarmé, já que ela
dominava o francês e era leitora de Mallarmé devido a epígrafes utilizados por
ela em outros momentos de sua publicação, trabalha na linguagem escrita a
linguagem pictural para denunciar a hierarquia de raça, de gênero e de classe
no poema “Quadros”.
O sujeito poético é politizado e pinta o quadro do painel
social brasileiro marcado pela desigualdade no início do século XX, ou seja,
Luz ilustra a dicotomia entre a realidade aristocrata rica e branca e a
população pobre e negra. Assim, de princípio, o poema rompe com o modo
convencional de se observar a sociedade do período, aguçando no leitor de O Rosariense uma consciência mais
profunda e crítica em relação ao cenário social injusto que dominava o Brasil.
As cenas apresentadas no poema ganham vida interpretativa e
chocam ao serem representativas da realidade de muitos brasileiros, assim,
superando o romantismo otimista, amoroso e burguês. Mariana Luz aguça um
desconforto social, tanto para as personagens do poema quanto para os leitores,
uma vez que na casa aristocrata não interessa entrar “a negra dor” (LUZ,
1904).
A fusão das linguagens no poema “Quadros” exige do
leitor/expectador atenção aos vários sentidos que podemos retirar dele. Sobre
esse assunto, Roland Barthes (1984, p. 29) comenta:
Evidentemente não se trata
de restringir a escrita do quadro à crítica profissional de pintura. O quadro,
seja quem for que o escreva, não existe senão na narrativa que eu dou dele; ou ainda: não existe senão na soma e na
organização das leituras que se podem fazer dele: um quadro nunca é mais do que
a sua própria descrição plural.
Em outras palavras, a linguagem verbal/escrita, própria da
mente do receptor, ganha sentidos a respeito do sofrimento da população negra
pobre e abandonada, a qual permaneceu confortavelmente invisível aos olhos da
sociedade por muito tempo. Assim, Mariana Luz destaca dois mundos que causam um
desdobramento conflitante que constitui o corpo do poema, ou seja, do primeiro
ao último verso, a imagem da desigualdade social é reiterada, mas é na última
estrofe que o cenário muda e de “[...] onde a riqueza/Reúne da elegância a fina
flor” passa a retratar, separado pela simbólica “porta” social, a miséria de
mãe e filho negros:
E entretanto a porta,
macilenta,
Triste
mendiga nos degraus sentada
Beija o filhinho nu, adormecido
E estende a mão
pedinte e descarnada.
(LUZ, O Rosariense, 1904, n. 42, p. 2)
Mãe e filho rompem com o paraíso terreno de “pura essência”
e com “doce serenata” ao pedir ajuda frente à porta da aristocracia. Ambos são
retratados na extrema miséria e subnutridos, pois o “filhinho nu, adormecido”
não tem roupas e nem força para estar desperto por falta de alimento; e a mãe
“triste mendiga” tem a mão magra, “descarnada”, pedindo, entre
“risadas francas” e “vozes
frescas”, ajuda para amenizar o sofrimento dela e do filho.
Da pintura para a música, mais uma vez Mariana Luz se
apropria dos instrumentos da estética simbolista para denunciar o preconceito
de raça, de gênero e de classe no poema e, para isso, aos moldes de Paul
Verlaine, ela lança de alguns recursos, como por exemplo a aliteração e a
assonância. Dessa forma, para contrapor os dois universos descritos no poema, o
uso de aliterações dos sons fricativos com os fonemas consonantais /s/, /f/ e
/v/ em alguns versos, especialmente nos da 3ª estrofe, nos quais é descrita a
interação entre as pessoas que estão ali presentes, sugere o ambiente da elite,
calmo, puro e idealizado no sussurrar que suas vozes emitem (“Ouvem-se vozes
frescas; lábios róseos/Soltam risadas francas, argentinas,/Que vão perder-se em
moitas perfumadas/Onde desabrocham flores peregrinas”), e o som da música que
está sendo tocada no piano pela aristocrata que entoa uma melodia quase
celestial, elevando a todos da casa a um nível transcendental. Na contraposição
desse cenário harmonioso, o uso das aliterações dos sons oclusivos /p/, /b/,
/d/, /m/ e /n/, na última estrofe, rompem com a harmonia e pureza da cena
aristocrata para apresentar a cena de abandono governamental, de exclusão e de
marginalidade imposta para a maioria das mulheres negras e pobres do Brasil.
Dentro da casa, convivendo em uma bolha social, o ambiente
elitista festivo é o exemplo da ausência de sensibilidade política e social das
personagens que somente frequentam o espaço da alta sociedade e acreditam que
essa é a verdadeira e única realidade de vivência no Brasil:
(“Tudo nesse salão, onde a riqueza/Reúne da
elegância a fina flor,/Respira do prazer a pura essência,”). Entretanto, a
realidade social que bate à porta (“Aí não tem entrada a negra dor”) é do
descaso da sociedade patriarcal e capitalista, que privilegia a elite branca e
ignora a situação deplorável de famílias negras e pobres.
Para conscientizar o leitor de O Rosariense, Mariana Luz abre, portanto, um debate acerca da
condição dos excluídos sociais, retratando o cenário da desigualdade extrema
entre as classes no país. Segundo Octavio Paz (2012, p. 195):
O poeta fala das coisas que
são suas e do seu mundo [...] O poeta não escapa à história, mesmo quando a
nega ou a ignora. Suas experiências mais secretas ou pessoais se transformam em
palavras sociais, históricas. Ao mesmo tempo, e com essas palavras, o poeta diz
outra coisa: revela o homem. Essa revelação é o significado último de todo
poema e quase nunca é dita de maneira explícita, mas é o fundamento de todo
fazer poético.
Um poema com base interartística como “Quadros” é uma força
estimulante na literatura brasileira do início do século XX ao apontar o atraso
econômico e social do país. Para isso, Luz retoma certos temas e formas do
lirismo simbolista como a indagação sobre a condição do homem e a sociedade.
Assim, no lugar de uma poesia idealista, Mariana Luz apela à consciência
coletiva dos leitores da imprensa maranhense com o poema de engajamento social
“Quadros”, contribuindo para a formação de atitude crítica. Conforme Antonio
Candido (2006, p. 132), “a literatura contribuiu com eficiência maior do que se
supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas
brasileiros”.
Mariana Luz, em uma perspectiva dialética, traz o belo e o
feio, o rico e o pobre, o ideal e o real nas quatros estrofes do poema. Com o
uso dos sons sibilantes e fricativos, sobretudo, na 3ª estrofe, ela conduz,
sinestesicamente, o leitor para dois universos que revelam o Brasil do sonho e
da riqueza, e da exploração, desigualdade e miséria. Enquanto na casa
aristocrata os sentidos se confundem entre o “teclado ebúrneo do piano”, “a
fina flor”, “vozes frescas”,
“lábios róseos”, “moitas perfumadas” e
“flores peregrinas”; do outro lado da porta, a sensação é a da fome, por isso
não há espaço para imagens idealizadas.
Duas mulheres, uma branca e rica e outra negra e pobre,
apesar de compartilharem o mesmo espaço e tempo, carregam experiências
diferentes. O status da mulher
branca, por ser a contrapartida do homem branco, é adquirido pela raça, mas não
pelo gênero, contudo, ela é tratada como sujeito; entretanto, a mulher negra
não é beneficiada nem pela raça e nem pelo gênero, sofrendo abusos da
sociedade, que a enxerga como objeto na hierarquia social, econômica e
política. Sobre isso, María Lugones (2010) ressalta que, devido a essa
hierarquização de raça e de gênero institucionalizada pela colonização,
passou-se a distinguir homens e mulheres dentro desse sistema: o homem branco,
detentor da razão e da inteligência; a mulher branca, reprodutora da dominação
colonial e da mentalidade dominante; e os não humanos, negros e indígenas.
Lugones afirma ainda que negras e indígenas não estão representadas nem na
categoria universal de “mulher”, nem nas categorias índio e negro, logo não
existe “mulher negra” e nem “mulher índia”, sendo necessária outra
classificação que seja especificamente representativa. Assim, no poema, Mariana
Luz projeta, por meio do seu sujeito lírico politizado, a crítica à
invisibilidade destinada à mulher negra que, abaixo de qualquer categoria,
sofre com a inferioridade em relação ao branco dominador. Há, então, no poema,
além da descrição das realidades díspares entre brancos e negros, a
representação da luta de classe, que, no Brasil, é constante. Outrossim, surge
uma luta entre a subjetividade da arte e a objetividade da ciência, a qual situava
o sujeito negro em situação de inferioridade em relação ao branco.
Por fim, em “Quadros”, Mariana Luz intervém, pelo viés
literário, na lógica vertical da sociedade brasileira, apontando as mazelas de
uma sociedade de herança escravocrata, patriarcal e classista. Em outras
palavras, a autora maranhense apresenta um forte posicionamento crítico diante
de questões de envergadura social em uma época extremamente delicada para tal.
O poema “Ruínas” foi publicado também no periódico O Rosariense, no número 63, p. 2, de 11
de outubro de 1904. Ele é um soneto italiano com versos decassílabos e possui
um esquema de rimas nas quadras ABBA/ABBA e nos tercetos CCD/EED, nos quais
ocorre uma transportação das rimas do primeiro para o segundo, tendo rima
interpolada em D, e rimas cruzadas em C e E.
Ruínas
Aqui onde se veem estas
ruínas
Negro
covil de vermes asquerosos,
Era um solar de nobres poderosos
Cheio de coisas
raras, peregrinas.
Crê-se escutar ainda as
cristalinas
Notas de risos francos,
sonorosos,
Soltas por
lábios frescos e formosos
Neste velho salão todo em ruínas.
A
um canto uma guitarra abandonada
Jaz junto a uma estátua mutilada
Representando
uma gentil pagã.
Quantas
vezes, guitarra maviosa,
Tangeu de outrora trêmula, saudosa,
A pequenina mão da
castelã.
(LUZ, O Rosariense, 1904, nº 63, p. 2)
O título sugere
vestígios de uma estrutura que não há mais, como produto e processo da ação
humana e do tempo, expressando a mobilidade histórica do cenário. As ruínas
descritas são o resultado da atitude da sociedade frente ao passado e os
resultados dele no presente e no futuro. Assim, na dupla dimensão espacial e
temporal criada por Mariana Luz, seu sujeito lírico engajado, simbolicamente,
coloca em ruínas a história da nobreza, a qual não existe mais e muito menos se
encaixaria no cenário social do início do século XX.
No poema é possível
notar as marcas dos processos históricos, culturais e sociais que não se
apresentam em transformação, mas em estado de finalização para a dinâmica
social dos novecentos. Desse modo, o construto poético de Mariana Luz conduz o
leitor a caminhar entre destroços, envolvido em som e sentido, para refletir
sobre o passado. Ao longo do poema, um local esfacelado é descrito, que outrora
tinha sido um lugar bonito, com riqueza estrutural e cultural clássicas (“Era
um solar de nobres poderosos/Cheio de peças raras, peregrinas/[...] A um canto uma guitarra
abandonada/Jaz junto a uma estátua mutilada/Representando uma gentil pagã.”) e,
embora um dia tivesse sido ali um lugar de esbanjamento, que representava a
nobreza, tudo acabou se tornando ruína (“Negro covil de vermes asquerosos”).
Desse último verso, podemos retirar dois sentidos, já que ele pode,
superficialmente, fazer referência à degradação do espaço com vermes e bichos
dominando o local, após anos de abandono; e também pode ser interpretado como
uma crítica à elite brasileira do passado, que, naquela morada, mesmo
idealizada pela música angelical, era uma moradia de pessoas sem escrúpulo.
O cenário descrito nos três primeiros versos da 2ª estrofe
do poema lembra aquele visto no poema “Quadros”, no qual as pessoas que
frequentavam aquele lugar e o contentamento que tomava conta delas, criando uma
ambiente de pura harmonia, surge, mais uma vez, na aproximação entre literatura
e música, no uso da aliteração do som sibilante no fonema consonantal /s/ e do
som fricativo no fonema consonantal /f/, que representa o rumor das vozes e
risos das pessoas ali presentes: “Crê-se escutar ainda as cristalinas/Notas de
risos francos, sonorosos,/Soltas por lábios frescos e formosos”. Contudo, a
descrição desse lugar, quase imaginário e paradisíaco, é interrompida pelo
último verso (“Neste velho salão todo em ruínas”), que ilustra um passado
desmoronado, colocando uma espécie de ponto final para aquela realidade.
Ao mencionar a
“guitarra maviosa”, que era usada por uma “castelã” para musicalizar e alegrar
o ambiente, o sujeito lírico cria um espaço ideal, contrastando com o silêncio
grotesco dos vermes e das ruínas. Logo, no poema, a transgressão simbolista
surge no plano da substância, já que, ao buscar no feio e no grotesco novas
matérias-primas poéticas, Mariana Luz retrata a decadência da nobreza
passadista.
Mariana Luz, no
poema “Ruínas”, descreve a realidade mediante a destruição, a perversidade do
tempo e do homem, isto é, entre a glória do passado e a degradação do presente
com “vermes asquerosos”, “velho salão todo em ruínas”, “estátua mutilada”. Além
disso, o poema, que pode ser considerado metalinguístico, valoriza a forma do
passado clássico, contudo, consciente de sua decadência, já que não mais seria
representativa do fazer poético e da realidade no início do século XX. Em vista
disso, Luz resiste e nega o cenário do passado colonial e patriarcal da sociedade
brasileira, colocando em xeque a sua história e, consequentemente, suas marcas
na hierarquização, sobretudo, de classe.
Luz destaca que nem
a nobreza e nem a riqueza, como surgem na primeira estrofe do poema, fazem
escapar os poderosos da degradação e da morte. Assim, em “Ruínas”, por meio da
percepção sensorial da realidade, via imagens sinestésicas, Mariana Luz traz a
lume a reflexão em torno da igualdade, já que nem riqueza e cor da pele
conseguirão enganar a morte.
Enfim, ao construir um poema-simbólico muito particular, a
autora, de forma arquitetônica, constrói em ruínas, vestígios de um cenário
idealizado que contrasta com a realidade presente. Em outras palavras, os
sujeitos da aristocracia, no fim, terão o mesmo destino que a “triste mendiga”
desprezada do poema “Quadros”, o abandono e o apagamento de sua existência.
4. A importância da obra e da pessoa de Mariana Luz
equipara-se à de sua conterrânea e hoje reconhecida Maria Firmina dos Reis.
Ambas mulheres negras, do interior do Maranhão, filhas de mães negras e pais
brancos, as quais não se contraíram diante da sociedade patriarcal e racista,
sendo vozes políticas consideráveis de suas épocas. Ambas dedicaram a vida ao
magistério, à literatura e ao jornalismo, porém, mesmo com toda essa atuação na
sociedade, suas vozes foram silenciadas por muito tempo. Todavia, Maria Firmina
dos Reis é ouvida hoje. Enquanto isso, Mariana Luz começa a ser ouvida, ainda
de forma tímida, na atualidade.
Além disso, Mariana Luz foi uma das oito mulheres que
conseguiram alcançar uma cadeira na Academia Maranhense de Letras, sendo,
dentre elas, a segunda, o que atesta o seu grande prestígio na época e o quanto
a autora acabou contribuindo, em certo grau, para a tomada, por mulheres, de
espaços que, até então, eram quase que exclusivamente masculinos, sem medo de
quebrar regras, apenas cumprindo e defendendo os ideais nos quais
acreditava.
Quanto à sua atuação na imprensa periódica da época, de
modo geral, ficou evidente que sua contribuição foi significativa, com a autora
fazendo parte de modo muito proativo do “surto” de proliferação do
intelectualismo, da cultura e da literatura do século XIX, mais especificamente
em seu fim, e no início do século XX, fazendo parte do cenário de tentativa de
resgate da fama de “Atenas Brasileira” para o estado, participando, de modo
direto ou indireto, das diversas
agremiações daquela época.
Mariana Luz é a voz da mãe negra no poema “Quadros”, a
razão do poema “Ruínas” e consciência crítica da brasileira negra no início do
século passado. Em suma, é inegável, diante do que aqui foi exposto, a
contribuição da obra de Mariana Luz para o enriquecimento de todo o conjunto da
literatura nacional.
Ressaltamos mais uma vez a necessidade de revisão da
historiografia literária brasileira e, sobretudo, o resgate de obras como a de
Mariana Luz, que foram esquecidas pelos manuais por serem possivelmente
mulheres e negras. Contudo, na atualidade, devido a pesquisas de campo e
documental, um material rico e diverso está sendo encontrado por pesquisadores
no Brasil todo, resultando na divulgação para o cenário nacional de autores e
de autoras que estão saindo das ruínas para o público finalmente.
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*Cristiane
Navarrete Tolomei
Pós-doutora em Fontes
Primárias e História Literária pela UNESP, de Assis, e pós-doutora em
Literatura e outras formas de saber pela USP, desenvolvendo pesquisa
interdisciplinar entre literatura, comunicação e história. Doutora em Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP. Mestre em Teoria
Literária pela UNESP, de São José do Rio Preto. Licenciada em Letras (Português-Espanhol)
pela UNESP, de São José do Rio Preto. Atua na Universidade Federal do Maranhão
como professora adjunta da área de Literaturas de Língua Portuguesa, na
Coordenação de Letras, do campus III; é docente permanente do Programa de
Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (PGCult), na linha de pesquisa Expressões
e Processos Socioculturais. É líder do Grupo de Estudos e de Pesquisa
Literatura, História e Imprensa (GEPELHI/UFMA), registrado no Diretório dos
Grupos de Pesquisa do CNPq, desenvolvendo projetos de pesquisa em fontes
primárias, crítica textual e expressões e processos socioculturais. Além disso,
integra o Grupo de Estudos de Paisagem em Literatura (UFMA/CNPq), o Grupo de
Estudo e Pesquisa Interdisciplinar Jean-Jacques Rousseau (UFMA/CNPq) e o grupo
de pesquisa Eça (USP/CNPq). Também é membro da equipe da Edição Crítica da Obra
de Eça de Queirós e da equipe do projeto Dicionário de Personagens da Ficção
Portuguesa, da Universidade de Coimbra. Tem experiência na área de Literatura
Portuguesa, Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, Comunicação
e Estudos Culturais, dando ênfase em recepção crítica, historiografia, crítica
textual, recepção de documentos primitivos, comunicação e cultura. Áreas de Interesse: Área de Literatura Portuguesa e Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa com ênfase em recepção crítica,
historiografia, crítica textual e recepção de documentos primitivos.