A incessante busca pela melhoria do sistema carcerário e o efetivo
cumprimento da lei de execução penal no Brasil, no Maranhão e em Itapecuru Mirim
*Mirella Cezar Freitas
Magistrada, recém-promovida para a 2. Vara da Comarca de Itapecuru Mirim, cidade de mais de 70.000 habitantes, no Maranhão, em 26 de janeiro de 2015. Até aí, só motivos para comemorar. A Vara para a qual fui promovida tem competência privativa de Execução Penal e eu não imaginava o tamanho do desafio que estava por vir.
Na primeira inspeção na então Delegacia Regional de Polícia Civil, realizada em 9 de fevereiro de 2015, pude constatar um cenário que só conhecia da televisão, da literatura e dos relatos dos colegas que já atuavam na Execução Penal em Comarcas maiores.
Deparei-me com mais de 100 (cem) presos, de diversos municípios, amontoados em pequenas celas nas quais deveriam estar custodiados, no máximo, 30 (trinta) presos, segundo informações dos policiais que me acompanhavam.
Jamais esquecerei da sensação e do odor que senti naquele local (odor este que depois fui saber ser de carne humana apodrecendo). Para completar, o local destinado ao banho de sol estava sendo utilizado como cela, onde foi colocada uma lona nas grades superiores para que os custodiados não se molhassem nos dias de chuva e nem fossem submetidos diretamente à luz solar.
Ao deixar o local, tive a noite mais longa da minha vida. Eu não podia ficar inerte diante daquela situação, pois, além de haver sido tocada como ser humano, tenho por dever resguardar o cumprimento das leis e da Constituição Federal que tem em seus pilares o princípio da dignidade da pessoa humana (frontalmente atacado).
Somada a toda essa inquietação, surpreendi-me, numa tarde comum de trabalho, com uma grande mobilização da população, na porta do Fórum da Comarca, pedindo paz e a intercessão do Poder Judiciário para contenção da crescente violência no Município.
Apesar do pouco tempo na Comarca, o índice de reincidência dos egressos da carceragem da então Delegacia Regional e do Complexo Penitenciário de Pedrinhas (para onde eram encaminhados grande parte dos condenados da Comarca, haja vista ausência de vagas na Delegacia local) era assustador.
Não era raro fazer audiência com cidadãos de pouca idade que já tinham sido presos mais de cinco vezes e, o mais chocante, que vinham numa escalada criminosa, cometendo a cada nova prisão delitos mais graves e, muitas vezes com violência ou grave ameaça à pessoa.
Assim, foi necessário pesquisar na tentativa de encontrar uma alternativa ao sistema atual, pois, este era absolutamente falido e incentivador na prática criminosa.
Uma grande força-tarefa reuniu os Poderes Judiciário Executivo e Legislativo, do Estado do Maranhão e do Município de Itapecuru Mirim, além do apoio incondicional da Unidade de Monitoramento Carcerário do TJMA, da Representante do Ministério Público, Dra. Carla Mendes Alencar, e do então Defensor Público Estadual da 2 Vara, Dr. Marcus Patrício Monteiro, no sentido de envidar esforços, cada um em sua pasta, para promover as soluções que foram discutidas em duas audiências públicas, com presença da maçica comunidade.
A antiga Delegacia Regional de Itapecuru Mirim foi entregue à Secretaria de Administração Penitenciária do Estado, onde passou a funcionar a Unidade Prisional de Ressocializaçao-UPR de Itapecuru Mirim.
A Delegacia passou a funcionar em prédio mais central, alugado pela Prefeitura até que a Secretaria de Segurança Pública construa a nova sede da Delegacia.
Houve também a troca do comando da Polícia Civil local, entre outras providências.
Ocorre que, apesar de tantas mudanças, o reflexo destas ainda não aparecia nos processos criminais em trâmite na Segunda Vara. A reincidência ainda era muito alta e uma reclamação era constante. As famílias se distanciavam dos sentenciados e os vínculos eram perdidos basicamente pela dificuldade (logística e financeira) em se deslocar da cidade para visitar os presos na capital, além da interferência das facções criminosas na vida do preso, mesmo após a sua liberdade.
Nesse contexto, resolvi pesquisar sobre um presídio diferente, que havia surgido como alternativa a um sistema carcerário que se especializou em preparar soldados para abastecer o mundo do crime e que buscava despertar valores como disciplina e amor ao próximo. Assim, surgiu a ideia da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados de Itapecuru Mirim.
A Associação de Proteção e Assistência aos Condenados - APAC é uma entidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, que preconiza a recuperação do preso, a proteção da sociedade, o socorro às vítimas e a promoção da justiça.
Tal iniciativa foi desenvolvida pelo advogado Mário Ottoboni há mais de 40 anos, na cidade de São José dos Campos-SP, com a finalidade de preparar o condenado para ser devolvido à sociedade em condições de conviver harmoniosamente e pacificamente em comunidade. Essa preparação tem fundamento no estudo, trabalho, disciplina e espiritualidade.
Na APAC, os recuperandos são também responsáveis pela sua ressocialização e têm todos os direitos assegurados pela Lei de Execução Penal,bem como todos os direitos estabelecidos nas regras mínimas da Organizações das Nações Unidas-ONU. A segurança e a disciplina dentro do Centro de Reintegração Social-CRS são realizadas com a colaboração dos recuperandos (especialmente no Conselho de Sinceridade e Solidariedade-CSS, formado exclusivamente por recuperandos), tendo como suporte funcionários e voluntários. Nos CRS´s, não há a presença de policiais e agentes penitenciários, nem tampouco os inspetores de segurança usam armas de fogo, cacetetes, spray de pimenta ou qualquer objeto similar.
A metodologia APAC é caracterizada pela aplicação de uma disciplina rígida, fundada em elementos concretos como: respeito, ordem, trabalho, capacitação profissional, estudo e envolvimento da família no processo de ressocialização do recuperando.
Para que essa ressocialização se concretize, imprescindível é a observância dos doze elementos fundamentais do Método APAC, a saber: participação da comunidade, recuperando ajudando recuperando, trabalho, espiritualidade, assistência jurídica, assistência à saúde, família, voluntários, Centro de Reintegração Social-CRS, mérito, jornada de libertação com Cristo e valorização humana.
Existem mais de 50 (cinquenta) CRS´s pelo Brasil e pelo mundo e o modelo Apaqueano foi reconhecido pela Prison Fellowship International-PFI, organização não-governamental que atua como órgão consultivo da Organização das Nações Unidas-ONU em assuntos penitenciários, como uma alternativa para humanizar a execução penal e o tratamento penitenciário.
Tudo isso porque é fato que o preso é um problema social que vai muito além da prisão. Costuma resultar de uma família sem estrutura, doente e fragmentada. É também o resultado de ausência de políticas públicas para educação, moradia, saúde e trabalho. No que se refere a ausência de políticas públicas para o sistema de saúde, tem-se um dos maiores problemas que é o crescente número de dependentes químicos dentro das unidades prisionais (este tema será tratado em artigo específico).
Some-se a esses fatores o fato da sociedade ver a prisão como um espaço de vingança, fazendo valer a máxima comum de que "para a prisão, quanto pior, melhor".
A realidade demonstra que a sociedade precisa, o quanto antes, deixar de cometer o grave equívoco de acreditar que tão somente prender resolve o problema da violência, criminalidade ou impunidade. No Brasil, não há prisão perpétua ou pena de morte (salvo em caso de guerra declarada, como preconiza a CR/1988). Assim, após o cumprimento da pena, o preso, que foi abandonado, torturado e desumanizado no cárcere, retornará ao seio da sociedade cheio de sentimentos negativos e, muitas vezes, tomado por um desejo de vingança.
Não é incomum o preso para sobreviver, não sofrer ou para conseguir lidar com a situação de condenado, bloquear a realidade e buscar na justificativa um instrumento de defesa para seus crimes (exemplo: eu roubo, mas todo mundo rouba. Há políticos e governantes que até “roubam” muito mais).
Na APAC, o recuperando é protagonista de sua recuperação, pois, o método procura despertar os sentimentos de responsabilidade, de ajuda mútua, de solidariedade, de fraternidade e da importância de se viver em comunidade. Costuma ser dito que na APAC o recuperando não só tem que deixar de fazer o mal, mas começar a fazer o bem, primeiro dentro do CRS com os demais recuperandos, voluntários e funcionários e, depois, para a comunidade.
Nesse sentido, fica claro ao recuperando que suas histórias de dor e sofrimento podem explicar eventuais escolhas equivocadas, mas jamais, de forma alguma, poderão justificar seus crimes. Quando o recuperando entende isso, entra em um processo de conscientização e responsabilização dos erros e consolida valores e atitudes como arrependimento, reconciliação com as vítimas ou seus familiares e consequentemente libertação, primeiro espiritual e depois, propriamente dita.
O método apaqueano tem transformado os presos em recuperandos e, em seguida, em cidadãos, reduzindo a violência dentro e fora das unidades prisionais, conseqüentemente, diminuindo a criminalidade e oferecendo à sociedade um caminho à pacificação social.
E assim tem sido possível perceber a diferença nos recuperandos que ora cumprem pena no Centro de Reintegração Social da APAC de Itapecuru Mirim. Relatos sobre o resgate da dignidade e o sentimento de valorização pela sociedade são diários. Atitudes simples que, para quem não conhece a realidade do sistema sequer fazem sentido, mas para aqueles seres humanos que vinham sendo submetidos à situação degradante diuturnamente, fazem grande diferença no processo de ressocialização, cito três que me tocaram de modo especial.
O primeiro foi a alegria de um dos recuperandos em me descrever o prazer de ver a luz do sol, da lua e as estrelas todos os dias. O segundo, a alegria dos recuperandos em receber a visita de seus familiares em local digno, limpo, sem uniformes ou esteriótipos e sendo chamados pelo nome. O terceiro, o fato de se alimentarem de uma comida caseira, feita pelos próprios recuperandos e usando talheres.
Poderia enumerar dezenas de histórias e depoimentos tocantes desde 21 de junho de 2016, quando o CRS foi inaugurado e quem sabe não começarei a escrevê-las a partir de agora.
O meu sentimento de gratidão por todos aqueles que contribuem e reconhecem a importância desse projeto é infinito. As boas práticas, a nova diretoria, voluntários motivados, parcerias essenciais e, sobretudo, compromisso e dedicação com a causa que não é dos recuperandos apenas, mas sim, de toda sociedade que vem sendo vítima da crescente onda de criminalidade, estimulam a implantação de mais e mais projetos, como a remição por leitura, exposição dos artesanatos na Feira de Cultura da cidade, entre vários outros que surgem a cada dia, com apoio da Federação Brasileira de Assistência aos Condenados e a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Maranhão.
Porém, apesar de todos os impactos positivos da aplicação do método apaqueano, outro aspecto merece destaque. O tratamento recebido pelos recuperandos dentro dos CRS's Brasil afora nada mais é do que o tratamento definido na Lei de Execução Penal, ou seja, a metodologia é um sucesso porque cumpre exatamente o que determina a Lei 7210 de 1984.
Assim, o objetivo de todo magistrado ao se engajar em um projeto deste jaez é materializar o que determina a Lei de Execução Penal, pois se a pena imposta ao sentenciado é privativa de liberdade, é isso que ela verdadeiramente será na APAC e não, privativa de dignidade e humanidade, como acontece de forma não rara no sistema comum.
Diante de tudo o que foi dito, não julgue sem conhecer. Procure o Centro de Reintegração Social da APAC mais próxima e tenha a experiência de ver homens transformados e decididos a fazer o bem e retribuir a sociedade a oportunidade de ressocialização que tiveram.
*Mirella Cezar Freitas, juíza titular da 2. Vara da Execução Penal da Comarca de Itapecuru Mirim (MA).
Do livro, "Coletânea Púcaro Literário" (2017), Pag. 181, organizado por Jucey Santana e João Carlos Pimentel Cantanhede,
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