Gairo Garreto
O “grito do Ipiranga”,4 mais famoso ato da Independência do Brasil, ocorreu em 7 de setembro de 1822 como consequência de um processo iniciado anos antes com a instalação da Corte Portuguesa no Brasil, em 1808, e o consequente decreto de abertura dos portos às nações amigas do reino de Portugal.5
Com o fim das guerras napoleônicas, o rei Dom João VI teve de retornar a Portugal, mas considerava inevitável a independência de um Brasil que já se acostumara a não ser mais colônia. Na certeza de que disto, fez permanecer no Rio de Janeiro na condição de Príncipe Regente do Brasil seu filho primogênito, o príncipe Dom Pedro. A ideia era de que a independência fosse feita pelo próprio príncipe.
Mas nem todos aceitaram passivamente a declaração de independência. De fato, o Maranhão se constituiu um dos maiores focos de resistência com boa parte de sua elite apoiando a permanência do Brasil no império português. E o maior comandante militar da resistência à independência foi o major João José da Cunha Fidié, governador de armas do Piauí, que comandou as tropas portuguesas e seus aliados no Piauí e Maranhão contra as tropas populares de apoio a dom Pedro I.
Os reforços maranhenses ao major Fidié eram os da região que fazia fronteira com o norte do Piauí.
Toda esta região estava sob jurisdição da Vila de São Bernardo do Brejo dos Anapurus, e no dia 17 de dezembro de 1822 o capitão Severino Alves de Carvalho6, comandante da vila, informa ao governador do Maranhão que Brejo está pronta a defender a “Santa Causa” da união entre Brasil e Portugal.7
4 Em 7 de setembro, retornando ao Rio de Janeiro de uma viagem a São Paulo, o príncipe dom
Pedro foi informado que as Cortes tinham removido seus poderes regenciais. Em sequência voltou-se para os que o acompanhavam e falou: “Amigos, as Cortes Portuguesas querem escravizar- nos e perseguir-nos. A partir de hoje as nossas relações estão quebradas. Nenhum vínculo unir-nos mais. Tirem suas braçadeiras, soldados. Viva independência, à liberdade e à separação do Brasil.” E retirando sua espada da bainha afirmou que “Para o meu sangue, minha honra, meu Deus, eu juro dar ao Brasil a liberdade” e em seguida gritou: “Independência ou morte”. Este evento é lembrado como “Grito do Ipiranga”. Lustosa, Isabel. D. Pedro I. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
5 MALERBA, Jurandir. A corte no Exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000
Nos meses de janeiro e fevereiro de 1823 várias proclamações de fidelidade a foram publicadas, mas a situação estava saindo do controle dos portugueses em toda a província do Piauí e começava a imprimir perigo às povoações maranhenses.
Em março de 1823 acontecia aquela que foi a maior e mais mortal batalha de todo o processo de independência do Brasil, nas margens do rio Jenipapo, no Piauí. Nela pelejaram as tropas da in- dependência com as comandadas por Fidié. Às tropas piauienses se somaram grupos do Ceará, de Pernambuco e da Paraíba, reforçadas por grupos armados das circunvizinhanças8, totalizando aproximadamente 3000 homens.9 As tropas de Fidié contava com 500 e 1000 combatentes.10
Com duração de apenas quatro horas, a batalha foi uma verdadeira carnificina com centenas de mortos e mais outras centenas de feridos. Apesar de terem vencido, as tropas de Fidié tiveram pesadas baixas e saíram muito enfraquecidas. A partir daí as investidas dos partidários da independência contra a vila de Brejo, que se mantinha leal a Portugal, foram cada vez maiores.
6 Severino Alves de Carvalho, natural da província da Bahia, mas casado na vila do Brejo com uma das filhas do capitão-mór Domingos Alves de Souza e de sua mulher D. Euzébia Maria da Conceição. ALMEIDA, João Mendes de. Algumas notas genealógicas. Livro de família. São Paulo: Typographia Baruel, Pauperio & Companhia, 1886. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/ bdsf/handle/id/518647>. Acesso em: 20 fev. 2018.
6 Jornal Conciliador do Maranhão, edição 156, ano 1822.
7 CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. A BATALHA DO JENIPAPO NO CONTEXTO DAS LUTAS PELA EMANCIPAÇÃO POLÍTICA NO NORTE DO BRASIL. Teresina, 2016.
8 CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. A BATALHA DO JENIPAPO NO CONTEXTO DAS LUTAS PELA EMANCIPAÇÃO POLÍTICA NO NORTE DO BRASIL. Teresina, 2016.
9 Jornal Conciliador do Maranhão, edição 173, ano 1823.
10 Não existe um consenso quanto ao número de combatentes de um e de outro lado da batalha.
O Jornal Semanário Mercantil, do Rio de Janeiro e partidário da independência, confirmava a dinâmica da batalha como descrita por Fidié, mas aparentemente exagerava o tamanho das tropas portuguesas. Semanário Mercantil (RJ), edição 00006, ano 1823.
Era necessário reforçar as defesas da vila de Brejo, o que aconteceu entre março abril com o envio de homens da tropa do Rio Iguará. Transportados em uma embarcação do capitão José Nunes através do Rio Preto, desembarcaram nas proximidades das terras do capitão Antônio Raulino Garrett (atual cidade de Mata Roma), onde provavelmente descansaram e foram bem recebidos, em seguida continuaram em marcha pela estrada que levava à vila12. Como parte do esforço de guerra levavam 200.000 réis emprestados por Manoel Rodrigues Nina Neto.13
A Vila do Brejo fornecia alimentação, dinheiro e homens para a defesa. Em fevereiro sua elite já havia emprestado 127 es- cravos e doado 197.200 réis.14 Mas nada disso era suficiente para conter a iminente invasão por parte das tropas brasileiras. Em 25 de abril uma tropa de 200 brasileiros tomou o Porto da Repartição, que era guardado por 10 homens leais aos portugueses, com o saldo total de 7 mortos e 15 feridos.15
Com a vila cercada há semanas, faltavam meios de se de- fender das crescentes tropas brasileiras e sua heroica resistência era louvada na capital maranhense.16 A falta de material e de combatentes estava levando a vila ao limite de suas possibilidades. Todas as esperanças da vila que insistia em resistir ao cerco das tropas brasileiras foram colocadas nas tropas e material de reforço que haviam sido solicitadas ao governo da província, o que acabou por acontecer em 15 de maio com a chegada do destacamento militar do alferes Ponçanilha.17
11 GARRETO, Gairo. Garrett, traficante de escravos. Rio de Janeiro: Ed. Jaguatirica, 2018.
12 Jornal Conciliador do Maranhão, edição 183, ano 1823.
13 Jornal Conciliador do Maranhão, edição 193, ano 1823.
14 Jornal Conciliador do Maranhão, edição 190, ano 1823.
15 Jornal Conciliador do Maranhão, edição 193, ano 1823.
16 Jornal Conciliador do Maranhão, edição 194, ano 1823.
Mas a alegria da chegada dos reforços durou pouco, o contingente de homens era muito pequeno ante ao volume de com- batentes brasileiros, o de armamentos era igualmente reduzido. A iminência da derrota acabou por amolecer os ânimos de muitos dos defensores, que no dia seguinte acabaram por exigir a rendição ao comandante capitão Severino Alves, o que não foi aceito.
Entretanto, os defensores da vila de Brejo tinham muito a perder. A maior parte destes eram de alguma forma ligados às fazendas da região, sejam proprietários, sejam parentes destes proprietários ou agregados. A possibilidade de ter suas terras invadidas e de serem assassinados era muito grande, era assim que estavam fazendo com os europeus no Piauí e em tantos outros lugares. O ódio dos brasileiros para com os europeus que os exploravam há séculos foi o grande motor da independência do Brasil.18
Acabaram então por acertar com as tropas brasileiras que passariam a apoiar incondicionalmente a independência em troca da preservação de seus bens e famílias.19 Ao comandante Severino Alves de Carvalho, ao alferes Ponçanilha e a mais 84 militares que se recusaram a aderir à causa brasileira20 foi concedido sair da vila, mas com a condição de que não poderiam pegar em armas contra a independência.21
por uma solução política entre este e seu filho Dom Pedro para pôr fim à caçada aos europeus. Página 539. Jornal Império do Brasil: Diário do Governo (CE), edição 00002, ano 1823.
18 Jornal Conciliador do Maranhão, edição 196, ano 1823.
19 Severino Alves de Carvalho viria a ser demitido em 7 de setembro de 1823, por conta de sua
atuação na defesa da causa portuguesa. Dois anos depois, no dia 10 de setembro de 1825, seria perdoado e reconduzido ao comando do 2º Batalhão de Milícias da vila de São Bernardo do Brejo dos Anapurús. Jornal Astrea (RJ), ano 1832, edição 00042.
20 ALMEIDA, João Mendes de. Algumas notas genealógicas. Livro de família. São Paulo: Typographia Baruel, Pauperio & Companhia, 1886. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/518647>. Acesso em: 20 fev. 2018.
de Itapecuru-Mirim, a população ia percebendo o largo avanço das tropas brasileiras. A estrada tomada na retirada passava por lugares como os povoados Chapadinha e Manga do Iguará. A notícia se espalhou rapidamente.
Um dos que recebeu esta notícia com muito entusiasmo foi o negro João Ferreira do Couto. Conhecido pela alcunha de João Bunda, ele era capitão do mato da região do Rio Iguará que ganhava a vida capturando escravos fugidos das fazendas vizinhas.22
No caminho para a Vila de Itapecuru-Mirim, após um acampamento de alguns dias às margens do Rio Mocambo em que conseguiram reunir outras tropas defensoras da “Santa Causa”, a força militar que havia se retirado do Brejo destacou algumas praças para tomar o lugar Iguará, sob o comando do capitão João Isidoro Bezerra.23 Porém, este capitão foi preso em confronto com o grupo armado de João Ferreira do Couto, que acabou por apoderar-se do comando das tropas do capitão e partiu para a tomada da Manga do Iguará, o que acabou se executando na madrugada do dia 23 de maio.
Ao contrário dos soldados que guardavam a vila de Brejo, os da Manga do Iguará aderiram imediatamente ao comando de João Couto e partiram contra os leais a Portugal. Mataram oficiais, suas famílias e saquearam suas casas, mesmo sem que estes tivessem possibilidades de reação. Foi uma chacina contra europeus e suas famílias.24
A violência do capitão do mato contrastou com o acordo da vila de Brejo, mas esta foi uma prática bastante comum nas vitórias insurgentes. Foi concedido apenas um salvo conduto na Manga, ao coronel comandante local para se retirar para São Luís.25
21 O verdadeiro nome do capitão do mato conhecido pela alcunha de João Bunda era João Ferreira
do Couto. Assunção, Mathias R. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, p 345-377, 2005.
22 ALMEIDA, João Mendes de. Algumas notas genealógicas. Livro de família. São Paulo: Typographia Baruel, Pauperio & Companhia, 1886. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/518647>. Acesso em: 20 fev. 2018.
23 Jornal Conciliador do Maranhão, edição 198, ano 1823.
Alguns dias após a da tomada da vila de Brejo as tropas brasileiras seguiram rumo à vila de Itapecuru Mirim, a maior da região. Acamparam nas proximidades da fazenda de Antonio Raulino Garrett ao fim de uma jornada (aproximadamente 40 km) para no dia seguinte chegar a Chapadinha26, onde não encontra- ram resistência. Alguns dias depois as tropas comandadas por Salvador Cardoso de Oliveira chegaram a Manga do Iguará, onde foram recepcionados pelo capitão do mato João Couto. Posterior- mente, após a adesão do comandante do destacamento de Cantanhede, seguiram para a tomada da vila de Itapecuru-Mirim.27
Após violentas batalhas iniciadas em 10 de junho, as tropas brasileiras que haviam vencido na vila de Brejo tomam Itapecuru-Mirim28 e o capitão Miguel Ignácio dos Santos Freire e Bruce adere a causa brasileira e toma a iniciativa de formar um governo provisório.29 No final do mês seguinte seria a vez da capital São Luís ser vencida pela esquadra do mercenário inglês Lord Cochrane, futuro Marquês do Maranhão.30
O último reduto dos defensores da “Santa Causa” a ser vencido foi a vila de Caxias, comandada pelo major Fidié desde março, após a batalha do Jenipapo. A queda de Caxias e prisão de Fidié ocorreu em agosto de 1823. O Maranhão agora fazia parte do recém criado Império do Brasil.31
24 Jornal Conciliador do Maranhão, edição 198, ano 1823.
25 GARRETO, Gairo. Garrett, traficante de escravos. Rio de Janeiro: Ed. Jaguatirica, 2018.
26 Jornal Conciliador do Maranhão, edição 206, ano 1823.
27 Jornal Império do Brasil: Diário do Governo (CE), edição00002, ano 1823.
28 Assunção, Mathias R. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, p 345-377, 2005.
29 Jornal Compilador Mineiro, edição 00005, ano 1823.
30 Jornal Império do Brasil: Diário do Governo (CE), edição 00002, ano 1823.
*Gairo Oliveira Garreto é Doutorando em Segurança e Saúde Ocupacionais pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP). Possui Mestrado Acadêmico em Turismo e Hotelaria pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), Especialização Lato Senso em Engenha- ria de Segurança do Trabalho pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e Graduação em Engenharia Mecânica pelo Centro Federal de Educação Tecnológica do Maranhão (CEFET-MA). Tem atuação profissional como Engenheiro de Segurança do Trabalho efetivo da Prefeitura de São Luís, MA e como Perito em Engenharia de Segurança do Trabalho da Justiça do Trabalho TRT-16ª REGIÃO. É Professor efetivo do Instituto Federal do Maranhão na área de Engenharia/Higiene e Segurança do Trabalho, tendo sido Diretor Geral do Campus Alcântara entre 2011 e 2015. É autor do livro “Garrett: traficante de escravos” (Ed. Jaguatirica), de artigos e capítulos de livros, entre outras produções científicas.
Do livro, O Iguaraense, 175 anos de Vargem Grande (2020), organizado por Jucey Santana.
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