quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

SANTUÁRIOS DO POVO MARANHENSE

                   A propósito de uma crítica

   Gomes Meireles

Santuários do Povo Maranhense, o título já desperta para uma questão: por que “do povo maranhense”?

Ao fazermos a leitura sobre a história dos dois santuários, fruto de uma pesquisa acurada e, na medida do possível, esclarecedora, podemos obter a resposta para a questão acima. Ambos os santuários se originam de uma fé inabalável e incontestável. Ao longo de todo o texto nos deparamos com os testemunhos dessa fé nascida na simplicidade de um povo acostumado com as agruras de uma vida difícil e cercada de percalços e que acredita que os santos de sua devoção realizam milagres e atendem seus pedidos, não importando se ele usava botas ou sandálias; se era um simples vaqueiro de Mulunduns ou um mercenário espanhol; se era o colonizador ou fruto do imaginário. E quanto ao imaginário, é outra questão que não cabe aqui.

Louvável, entretanto, foi a idéia de fazer com que essa história seja conhecida de uma forma simples e sem preâmbulos. Ressaltando a origem popular tanto de São José de Ribamar, quanto de São Raimundo de Mulunduns, não se esquecendo de fazer a devida referência ao pensamento da Igreja Oficial.

Ora, não pensemos que o povo maranhense teve a intenção de fazer santuários para os santos de sua maior devoção. O povo simplesmente tem fé e, mesmo que pensem que seja uma “fé fraca”, peregrinar todos os anos para os locais onde acreditam firmemente que houve algo de extraordinário ali e que esses locais são santificados, principalmente para agradecer pelas graças recebidas, demonstra o contrário. Logicamente que a Igreja não pode ignorar tantos devotos, tantos fiéis, assim como não pode ir de encontro ao que povo acredita. Eis então essa pesquisa que revela, ainda que de modo sutil, o que a Igreja pensa sobre a origem de São José de Ribamar e também de São Raimundo de Mulunduns, além de ser uma forma de contribuir como registro histórico do catolicismo popular no Maranhão. Um catolicismo “que sempre foi assumido pelos pobres”.

Que essa pesquisa sirva não somente para se conhecer um pouco mais sobre os santuários de devoção do povo maranhense, mas que sirva de reflexão sobre a fé que é uma força interna que ninguém pára; que quando se exterioriza torna-se ainda mais forte.      Não falamos de uma fé cega e nem de fanatismos, mas de uma fé que nasceu entre os mais humildes, sem manipulações e nem direcionamentos outros.

A cada ano o número de devotos de São José de Ribamar e de São Raimundo dos Mulunduns cresce. Hoje se pode dizer que os santuários já não são mais apenas do povo maranhense, pois que os romeiros vêm de outras partes desse imenso Brasil. Apesar de todo avanço tecnológico e científico, de todo racionalismo, de todo positivismo, é entre o povo simples e humilde que os milagres surgem.

                                                            Ana Paula Borges

                                                                 Jornalista

                                                               

                                                             

 

 

1.       Santuário de São José de Ribamar

             No meado do século XVI, um navio oriundo de Portugal, que viajava para São Luís, por um pequeno descuido do comandante, penetrou na atual bacia de São José, em vez da bacia de São Marcos. Contudo, a embarcação entrou em um labirinto de bancos de areia e toda a tripulação ficou enormemente assustada. Muitos já se direcionavam aos mergulhos para a vida ou para a morte. Um determinado tripulante lembrou-se de São José de Ribamar e clamou em alta voz: “Meu glorioso São José, ajudai-nos!”. Imediatamente uma enorme onda removeu para um canal. O navio, podendo ele este prosseguir tranquilamente.

            Depois de um longo período, o comandante do navio retornou de Portugal, e em oferta ao santo, que os salvara, trouxe uma linda imagem de São José de 40 cm e colocou-a em uma ermida que a mesma tripulação, outrora salva do perigo, construiu em frente ao local onde aconteceu o milagre.

            Os moradores da ilha de São Luís, ao tomarem conhecimento da existência do Santo, que se encontrava em São José dos Índios (ex-nome de São José de Ribamar, pois lá só habitavam indígenas), foram durante a noite às escondidas e carregaram-no para a Igreja Matriz de São Luís. Depois de certo tempo, o Santo voltou para sua Igrejinha.

            Por diversas vezes este fato se repetiu: o povo trazia a imagem para a igreja e ela tornava a voltar para seu antigo lugar. Por final, os índios Gamelas, donos do lugar, ao tomar conhecimento do fato e da existência da imagem, diziam que a mesma lhes pertencia, pois falavam que o santo tinha vindo do “Riba do Mar”. Carregaram a imagem para sua aldeia e só com muita súplica os missionários conseguiram convence-los a trocar a imagem do “barbudinho” (“um termo carinhoso como é tratado) com a do Senhor morto: uma imagem de maior porte com a qual os indígenas ficaram satisfeitos.

            Esta é uma versão popular do surgimento da imagem de São José de Ribamar. Os mais velhos da cidade sabem desta história do aparecimento do Santo com todos os detalhes, o que não é o nosso caso, aqui.

            O Santo teria realizado depois deste episódio, inúmeros milagres.

            Nós entrevistamos varias pessoas, porém, a informação é sempre que esta é a verdadeira história de São José, e nesta história eles acreditam: “São José é o Santo mais milagroso do Maranhão; esta história dele aconteceu mesmo, foi tudo verdade”, dizia-nos um devoto na festa do Santo, em setembro do ano de 1990.

            Contudo, quando a Igreja Oficial trata sobre a origem do Santo, considera tudo uma lenda, algo que o povo inventou. Os padres lazaristas, os responsáveis pelo santuário, não afirmam ter existido milagre nenhum; apenas acham que a permanência do Santo em Ribamar, ajuda a fé do povo católico, mas que “não se pode acreditar muito em tudo que o povo fala”. A esse respeito, assim nos falou Pe. Lino, atual vigário do santuário:

Tudo é uma lenda, eu não posso comprovar que isso seja verdade. Foi mais ou menos assim, um navio português... Esta imagem sempre foi um lugar de devoção e veneração para o povo maranhense... depois de construída a capela, ela permaneceu uns duzentos anos. Cem anos atrás, aqui, em São José só havia 19 casas. Depois resolveram construir a Igreja; então o povo construiu a Igreja...

Dizem que é um santo milagroso, pode ser que seja, eu não posso também afirmar, porque é muito difícil dizer, não é? Porque um milagre, se a gente diz que aconteceu, mas não acredita, não aconteceu milagre nenhum.

            A celebração da festa do santo acontece todo terceiro domingo de setembro de cada ano, terminando com uma grandiosa procissão. No inicio do mês, os carroceiros pobres realizam, como é conhecida, “a procissão das carroças”. São os carroceiros que saem de São Luís, e muitos outros que vêm dos interiores. A intenção é única: agradecer pelo ano de trabalho e pela ajuda que muitas vezes o Santo lhes deu, livrando-os dos perigos pelas ruas e fazendo-os trafegar incólumes por entre os carros da cidade grande.

            Um senhor nos disse na procissão: “São José tinha animal, ele dava duro como nós...”. O povo faz então a ligação imediata com o José, o carpinteiro.

            Já a visão do padre não é muito otimista, o Pe. Lino por exemplo afirma:

No ano passado a gente celebrou o centenário da Igreja. Muito bem, bom, sempre foi um lugar de devoção para o povo do Maranhão, por que razão também não sabe dizer.

Mas o fato é que o povo do Maranhão sempre vem aqui, e posso dizer que o povo de quase todo o Brasil. No verão sempre a igreja é lotada. Vem gente do Pará, Ceará, Piauí, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro...

Isto é o que preserva a fé do povo. Mas a fé dele é, sei lá, muito pouca, pouca coisa assim. Mas com essas pequenas devoções o povo guarda a fé e ajuda o povo a não criar protestante...

Muitas vezes a gente ri dessas coisas, a gente acha engraçado... Mas esta forma desse povo preservar a fé é muito importante, isto é considerado até um milagre. Porque se fosse comigo, eu seja sincero, se eu vivesse lá por aquelas comunidades de Icatu, Morros e Humberto de Campos, sem nenhuma assistência, eu já tinha perdido a fé há muito tempo...

 

            O padre não sabe dizer pó que São José de Ribamar é um lugar de devoção. Fala que a fé do povo é muito fraca. Ora, como podemos afirmar que é fraca a fé do devoto de São José? Quais  critérios devemos alegar para sustentarmos tal afirmação? Se nós ficarmos dentro do santuário de São José, observando as expressões de fé do povo, não saberemos nem como traduzir. A união mística do devoto com Deus, é tão grande que raríssimos consagrados externam uma união semelhante. Percebemos isso quando estivemos no santuário pela ultima vez: “Você tem fé em Jesus Cristo, que ele morreu por nós e ressuscitou dos mortos? Oh! Moço, por favor, não me faça uma pergunta dessa!... Eu creio que Jesus é o nosso único salvador, com a ajuda de São José de Ribamar, é claro...”, dizia-nos uma senhora de 42 anos.

            A imagem de São José de Ribamar é estilo do português colonizador, de botas, pois “os santos funcionavam como guerreiros ou defensores da família patriarcal, segundo as circunstâncias”[1]. Os santos pertenciam a uma só família. Vários benditos da época traduziam esta realidade. No bendito, colocavam os nomes dos santos e os juntavam ao nome do senhor da “Casa Grande”. As imagens significavam a sacralização da convivência da “Casa Grande” e fizeram com que os oprimidos respeitassem as ordens enviadas do céu, do mundo dos santos.

            Aliás, ainda hoje esta mentalidade se encontra confusa.

            O povo maranhense aos poucos está conseguindo distinguir entre o santo colonizador, e o São José de Nazaré. No entanto constata-se ainda certa confusão, segundo nos falou um senhor de 50 anos de idade, no santuário:

Na imaginação dos portugueses... Eu não sei se São José daquela época, usava botas, porque a gente vê que tem aquela sandalinha diferente, aí pro sul eles chamam é São José de botas, acho que é do estilo português.

   Eu não faço distinção, é só um santo.

   Não existe dois santos, um de botas e outro de sandálias.

             Porém, esta imagem do colonizador foi tão forte na vida do povo maranhense que hoje, mesmo sendo uma imagem da sagrada família e não somente São José, restou a devoção do povo só por São José. A veneração pela sagrada família ficou esquecida.

            São inúmeras as promessas que o povo faz a São José durante o ano. Porém, quando está próximo do dia do Santo, este número aumenta, consideravelmente, conforme alguns relatos:

“minha filha quebrou o dedo, aí eu prometi pra São José um dedinho de cera...”

(Lindalva R. França – 41 anos – Rosário-MA

“Meu marido bebia demais. Fui na casa de muitos curador, fui até em Codó, e senti que não tinha melhora. Aí eu me peguei com São José!...”

(Maria do Carmo–32 anos – São José de Ribamar-MA)

              “Eu estava tão dolorido, passando mal, aí minha esposa fez esta promessa que durante toda procissão eu carregasse essa pedra de 3 kg.

(Gregório dos Santos Silva – Paço do Lumiar-MA)

            Não iremos aqui relatar todas as inúmeras graças que São José tem proporcionado a seu povo maranhense. Com certeza não saberíamos enumerá-las.

            O povo acredita piamente nos poderes do Santo como algo que pode até derrubar um templo:

    A primeira capela que construíram foi pra frente pra São Luís, caiu.

A segunda pra frente da praia do Barbosa, caiu. Finalmente fizeram com a frente pro mar, aí segurou em pé.

     (Ana da Silva – 40 anos – São José de Ribamar-MA)

 

                                       Às vezes alguma pessoa tem dois santos de sua devoção. Quando ocorre fazer uma promessa, mesmo que seja para ser paga em outro Estado, o devoto faz questão de pagar sua promessa, tal como ele prometeu ao Santo:

Teve um senhor que veio do Maranhão trazendo boi vivo amarrado na corda, andando do Maranhão aqui. Ele passou um mês e cinco dias. Disse que queria entregar este boi para os filhos de São Francisco na Basílica.

Ele falou que era devoto de São José de Ribamar, mas que este ano perdera alguma cabeça de gado. Aí se apegou com São Francisco. O Frei Raimundo, que é superior do convento, recebeu. Todos nós do convento achamos uma coisa incrível[2].

 

2.       Santuário de São Raimundo de Mulunduns

            O santuário de São Raimundo está localizado na região do alto do Munim, à margem da BR 222, a 170 km da capital do Estado. Anualmente Vargem Grande é da comarca de entrância e alcançou a categoria de cidade pelo decreto-lei Estadual nº. 45 de 29 de março de 1938, com distritos de Vargem Grande e São Benedito, criado pelo decreto nº. 156 de 06 de dezembro de 1937. Com a nova divisão administrativa do Estado, o município passou a ser constituído de um único distrito desde 1942.

            No dia 1º. de maio de 1805, Dom Luís de Brito Homem, constituiu a paróquia Vicário Perpétua, sob a invocação de Nossa Senhora das Dores. A Igreja devia ser construída no lugar Vargem Grande, e enquanto sua construção não se realizava, o pároco servia-se da capelinha de São Raimundo, localizada da fazenda Mulunduns.

Em primeira análise, gostaríamos de ressaltar que existe um ponto muito importante para se compreender a existência da veneração a São Raimundo. Com efeito, sabe-se que a Igreja Católica Oficial venera São Raimundo Nonato, o santo mercenário da Espanha, ao passo que o povo da região do Alto Munim venera São Raimundo, o vaqueiro da fazenda Mulunduns. É bem claro nos dois depoimentos que encontramos:

 

Esse santo que eles falam isso é lenda. A gente não tem nada escrito que possa comprovar a existência desse São Raimundo.

O povo inventa muita coisa. Entre o povo é muito constante essa veneração de   almas de pessoas que já morreram. A Igreja só acredita no santo que ela canonizou.

Eu falo é São Raimundo Nonato da Espanha...

            (Pe. Mamede Fernandes – Vigário do Santuário)

... Olha, São Raimundo quando morava em Mulunduns, todos gostavam dele, ele era amigo de todos. Depois que ele se santificou aí os padres trouxeram ele pra cá. Mas tem muita gente que fala que ele voltava muita vez lá pra seu lugar onde morava. Ele nasceu da fazenda daqui de Mulunduns. A gente vem aqui é pro causa do São Raimundo daqui de Mulunduns.

São Raimundo nunca foi de outro país, isto é história pra enganar o povo.

            (Francisca da Silva Gomes 41 anos-Vargem Grande-MA).

            A seguir iremos apresentar a história de São Raimundo, porém, não pretendemos afirma-la como única e verdadeira, uma vez que não encontramos fontes históricas suficientes para aprofundarmos nossos conhecimentos. Só conseguimos ter em mãos um único documento escrito[3] e o restante das informações colhemos junto ao povo. É uma história transmitida pela tradição oral, popular. Longe de nós a possibilidade de a história de São Raimundo contada pelo povo não ter valor ou que seja apenas lenda sem nenhum significado: muito pelo contrário, cremos que se o povo dá testemunho de um Raimundo de Mulunduns e se ele existiu como o próprio povo professa, nada nos impede de acreditarmos que assim como o povo o declarou santo, para nós o seja também. Concordamos com Antonio Haddad, quando dizia:

No entanto, nos primeiros séculos da Igreja, era o próprio povo quem declarara alguém santo. Também hoje em dia, o nosso povo simples, guiado pelo Espírito Santo, sabe canonizar as pessoas que tiveram uma vida digna de ser lembrada e venerada[4].

             O Maranhão não é o único Estado que possui um vaqueiro canonizado pelo povo. Encontramos um outro Raimundo, vaqueiro, em Serrita, no sertão pernambucano. Antes era só o povo que rezava em honra do vaqueiro, hoje a Igreja Oficial celebra missas todos os anos no aniversario de seu falecimento. Vejamos como nos fala a revista Ícaro:

 Filho de vaqueiro, Manoel Neto Filho, desde os seis anos enfrentava gado bravo nas  caatingas do agreste pernambucano, e até hoje nunca perdeu uma missa do vaqueiro.

                 ...         ...         ...         ...         ...         ...            ...         ...

Todos os anos o ritual se repete, Manoel Neto sai na sexta, passa pela casa de outro vaqueiro, o compadre Joaquim Porfírio, de 95 anos, e juntos vão rezar em memória de Raimundo Jacó, vaqueiro e mártir[5].

            Antigamente a fazenda Mulunduns pertencia à família Faca Curta. Era muito rica, possuía um grande numero de vaqueiros, entre eles Raimundo, o qual trabalhava na função de ajudante de vaqueiro.

            Contam os mais antigos que Raimundo ao chegar dos campos, e após todos dormirem em casa, saía devagar e ia a um determinado lugar, de onde não demorava voltar. Certo dia, seus pais descobriram o que ele fazia. Sem que fossem vistos, ficaram espantados quando olharam o vaqueiro ajoelhado junto a uma enorme pedra, rezando. Seus pais voltaram perplexos.

            Como era de praxe, todos os dias os vaqueiros iam vaquejar e ao anoitecer cantavam o lindo cântico dos boiadeiros. Havia um lugar onde eles se encontravam. Em um determinado dia, quando estavam reunidos, sentiram falta de Raimundo. Procuraram-no por todos os lugares possíveis. Quando já estava escurecendo, o pai lembrou-se das saídas do filho à noite, e foram todos para aquele local, enquanto sua mãe suplicava a Deus que nada acontecesse ao filho. Vejamos como o povo nos fala do acontecido:

          Ele foi pegar um boi pra madrinha dele, lá tinha uma carnaúba torta e         nisto ele botou o cavalo por cima do boi. Aí ele bateu com o pescoço na carnaúba, quebrou o pescoço, aí se santificou. Lá eles fizeram a Igreja dele. Mas eles acharam melhor construir a Igreja num alto, mas quando tava pra terminar, cais todinha... e resolveram fazer onde ele quebrou o pescoço, aí fizeram. Nunca mais caiu.

         (Jovenal dos Santos – 43 anos – Vargem Grande-MA)

 

         Quando foi numa sexta-feira, o dono da fazenda disse: cadê o boi, seu vagabundo? Aí ele foi pra casa e disse: mamãe eu vou procurar o boi do moço. Benção minha mãezinha... Aí nunca mais. Depois acharam ele caído debaixo de uma carnaúba. Aí o cavalo dele assim de lado. Ah! Isso faz muito tempo...

           (Maria Elidia de Melo–104 anos–Vargem Grande-MA)

            Levaram o corpo de Raimundo, colocaram-no numa capelinha, onde os padres celebravam as missas nas desobrigas e o sepultaram.

            Certo dia sua mãe foi depositar flores sobre o túmulo. Lá chegando, viu que este tinha desaparecido, não se encontrava mais naquele lugar. Onde ele tinha sido sepultado nasceu uma carnaubeira. Por outro lado, dizem que esta carnaubeira foi a mesma, na qual ele bateu a cabeça e portanto já existia.

            A noticia da santificação se espalhou por toda a fazenda de Mulunduns. Aquele local passou a ser freqüentado por gente de todos os lugares, e cada pessoa que por lá passava, tirava um pedaço de palha da carnaubeira para fazer chá. Muitos ficaram curados.

            Cada dia, o numero de pessoas crescia mais, tanto que a retirada das folhas, do tronco e até mesmo da terra, fez com que a planta morresse. Mesmo assim a caminhada para lá continuou.

    Era um homem de Mulunduns, seu pai conheceu a carnaubeira que ele se santificou. E a pedra donde ele caiu o povo quebrou todinha para fazer remédio. Aí trouxeram ele pra cá, o lugar da pedra foi lugar onde ele se santificou. Aí fizeram a capela. Mas seu pai de 88 anos, nós não vimos, mas o retrato dele não era daquele jeito. Ele tinha o chapeuzinho caído assim pra trás...

                                                            (Maria Raimunda de Sousa-56 anos–Vargem Grande-MA).   

      

                             O dia 13 de agosto é o dia em que o vaqueiro milagroso teria morrido e teria se santificado.

              Muitos contam que o corpo santificado, os padres levaram para Roma:

  O santo verdadeiro está em Roma, o verdadeiro não está aqui...

    .               ...           ...           ...

   O santo não ficava aqui, esse santo aí. Procuravam  a batida dele, aí tava o rastro dele. Eu não sei como o São Raimundo ia, só sei que ele não ficava aqui.

   Aí os padres levaram pra Roma, de lá trouxeram esse aí...

                    ...           ...           ...           ...

   A gente faz promessa pra esse santo que tá aqui, mas com intenção no que tá em Roma, que é de Mulunduns, viu?...

                       A festa continuava com amor e muita devoção, dirigida pelos negros, que animavam as novenas, ladainhas e as orações.

              Antes, com a queda da monarquia, os donos da fazenda e dos escravos, tiveram que vender suas terras, passando por vários donos até chegar às mãos do Coronel Francisco Solano Rodrigues.

             Certo dia, Dona Luiza, esposa do proprietário que morava numa fazenda bem próxima, em Primavera, encontrava-se aflita, pois Saul, um de seus filhos, irmão de Nina Rodrigues, encontrava-se enfermo. Esta lembrou-se de Raimundo, e pediu-lhe que intercedesse junto a Deus, para que seu filho fosse curado, prometendo que se isso acontecesse, trabalharia a punho, embora fosse rica, para com o dinheiro arrecadado conseguir uma imagem. Com a restituição da saúde de seu filho, a mesma começou a trabalhar, juntou a quantia de 100$700 (um cento e setenta réis). Então mandou buscar em Portugal uma linda imagem, Dona Luzia organizou uma grande romaria que saia de Vargem Grande, a 21 de agosto, pernoitando em Nova Olinda e chegando à tardinha em Mulunduns, onde havia um novenário, que se encerram no dia 31 com uma procissão.

             No dia seguinte, levaram a imagem de volta para Vargem Grande devendo ficar guardada na Igreja de São Sebastião.

             O povo diz que o santo voltava para seu lugar (Mulunduns), não aceitando ficar na sede de Vargem Grande:

Trouxeram ele pra cá a primeira vez, aí ele fugiu daqui pra um lugar, que ele era de Mulunduns. Aí eles trouxeram pra cá, mas ele fugiu daqui, foi bater lá de novo. De manhã eles saíram na batida dele, no rastro...

             Em 1954, a Igreja Oficial, pelo intermédio de Dom José Medeiros Delgado, resolveu transferir a festa para Vargem Grande[6].

             O povo continuou dizendo que o santo não aceitava ser transferido de Mulunduns. Contudo, mesmo depois que a Igreja o transferiu, ainda houve vários anos de resistência por parte dos devotos, pela permanência da festa em Mulunduns. Finalmente foi transferido, mas somente com a ajuda da policia, como nos conta Eunice Janet Barros:

                                                     Quando a Igreja mudou a festa pra cá, o Dr. Mohana, que hoje é padre, dava palestra para                  crianças... Enquanto isso, a maioria do povo ia para Mulunduns e ficavam pra lá, foi preciso o             padre     mandar... Isso aí durou muito tempo, não só um e nem dois anos. Foi preciso a policia ir         lá; o padre tirar o quadro, porque lá existia um quadro. A imagem ia pra lá e voltava, mas morava         aqui.

             A Igreja Oficial não faz referência a este São Raimundo de Mulunduns. Isto constatamos pelo depoimento do Pe. Possínio que trabalhou muitos anos em Vargem Grande: “Eu falava de assunto de santidade, de oração, mas nunca tocava nesse assunto de São Raimundo de Mulunduns.

             Pelos relatos do povo, conforme vimos acima, notamos que existia outra imagem. Uns falavam da existência de um quadro, outros falavam que ele tinha um chapéu... Porém, a Igreja Oficial fez a troca das imagens, como nos relata padre Gotardo, irmão do atual bispo da diocese de Coroatá, Dom Reinaldo Pünder:

   Depois da morte dele em Mulunduns, o povo rezava e muitas pessoas pediam graças pela intercessão dele. Mas claro que a Igreja não pode aceitar a oração pública de uma pessoa que não é canonizada, que não é santa, também.

  Em Mulunduns aconteceram muitos abusos nas festas.

  Também na mesma época os padres e o bispo de são Luís descobriram esse santo, esse vaqueiro... e depois se descobriram muitas coisa semelhantes. Esse São Raimundo Nonato, que já vivei muitos séculos, também foi filho de pequenos proprietários, trabalhava na roça, cuidava do gado, foi vaqueiro e sobretudo, ele depois entrava em uma congregação religiosa e se ocupava da libertação dos escravos.

              O catolicismo popular sempre foi assumido pelos pobres. Este exemplo de São Raimundo é mais uma demonstração da ação dessas pessoas humildes, que constantemente viveram à margem do Catolicismo Oficial. Neste sentido, sem a história de São Raimundo de Mulunduns, o vaqueiro do Maranhão, o santuário não teria a sua grandeza, que hoje possui. Tiremos a história de Mulunduns, e a história sagrada do santuário esvaziar-se-á. Essa é mais uma prova de que o catolicismo popular maranhense é ainda uma força de expressão religiosa muito forte e que continua resistindo às forças de dominação, advindas tanto da Igreja Oficial, quanto da própria sociedade como um todo. A Igreja Oficial, indicando sua forma própria de devoção e escolhendo seus santos de devoção. Na sociedade, o povo, com suas promessas, rezas e benzições, como meios de que se utilizam para livrar-se de uma medicina que não reconhece os pobres como gente merecedora de continuar vivendo. Esses pobres, porém, são colocados à margem dos tratamentos de custos milionários, aos quais são impossibilitados de se submeter.

             Uma prática bem visível que encontramos no catolicismo popular maranhense, é a realização das festas do seu próprio calendário. Entendemos, no entanto, que isso representa uma fuga dos padrões da Igreja Oficial.


[1] HOORNAERT, Eduardo. Histórias da Igreja no Brasil: Ensaio de interpretação a partir do povo. Primeira época, 3. ed. Petrópolis: Vozes. 1983. p. 351.

 [2] Frei Manoel é um dos assistentes responsáveis pela celebração da Eucaristia na Basílica de São Francisco de Canidé, no Ceará. 1990    

 [3] Quando de nossa pesquisa, de junho a setembro de 1990, só encontramos algumas folhas datilografadas da monografia da cidade de Vargem Grande, que se estavam nos arquivos da prefeitura daquela cidade.

[4] HADDAD, Antonio. Testemunhas de Cristo. O domingo, São Paulo, Pia Sociedade de São Paulo, 24 fev. 1991. nº. 10. p. 4, c.4.

 [5] ******

[6] Circular nº. 14 de 08.07.1954. Livro de Tombo do Santuário de São José de Ribamar. Marc. 1924-1979

 

GOMES MEIRELES

   


  Raimundo Gomes Meireles
é    itapecuruense, professor, graduado em   pela UFMA e em Direit    pelo UNICEUMA, mestre e doutor em Direito Canônico pela Universitas A S. Thomas de Aquino, pós-graduado em Direito Internacional pela Uni- versitas Lateranensis, Chanceler da Cúria Metropolitana de São Luis, Coronel Capelão do Corpo de Bombeiros Militar do Maranhão - CBMMA,      membro fundador   da Academia Itapecuruense   de Ciências, Letras e Artes - Aicla,  Academia Ludovicense de Letras - ALL, Academia Maranhense de Letras e Artes Militares e União dos Juristas Católicos/MA. Participou, em Itapecuru/MA, das edições Púcaros Literários I (2017) e Púcaro II (2018).

 

Do livro, O Iguaraense, 175 anos de Vargem Grande (2020), pag. 278. Organizado por, Jucey Santana.

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto. Ao Prof. Dr. CEL Pe Raimundo G Mereiles minha admiração pelo trabalho que presta a igreja e a literatura do Maranhão.

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