quarta-feira, 29 de novembro de 2023

O POÇO DE JERICÓ

De que vale a boca aberta do poço

e água a transbordar pelas bordas

se o deserto cálido e o sol a pino

fermentam na estática fonte

o gosto salobro que afugenta o sedento

quem amaldiçoara a subterrânea reserva?

Quem tingira de maldição rios e campos?

 

Os filhos de Jericó morrem lentamente

órfãos e viúvas desemparados ao léu

a fome galopa o dorso de cada corpo

a sede cavalga o lombo de cada alma

e até o andarilho e sua moribunda sombra

não possuem um damasqueiro para a fronte

repousar, não possuem um poço para aplacar

a sequidão que clama por ser saciada

 

de que vale o sândalo do corpo em chamas

da musa cananeia com seu cântaro e flama

se não pode o aedo cortejar-lhe o encanto?

A cidade sucumbe sem leite e pão

e o povo abandona o lar em procissão

ao passarem pelo poço não podem aproximar

o cálice de sua secura para a sede saciar

e o destino tritura cada cananeu em sua mó

moendo sonhos e seres na infausta Jericó.



segunda-feira, 20 de novembro de 2023

 

A MECÂNICA DAS FÚRIAS

Existe lógica na maquinaria da força?

Os pósteros louvarão um herói brutal?

Fenecer como homem ou permanecer

na boca dos rapsodos como semideus

ter os feitos exaltados para além do agora

ter os feitos insculpidos nos anais da história

as finalidades são grandiosas, mas os meios?

Conseguirá com força bruta ou pura astúcia?

 

Aquiles empunha a espada, eleva o escudo

quer a imortalidade no canto dos aedos

um busto insculpido com mármore de Carrara

uma epopeia composta em sua memória

não possui a estratégia arguta de Odisseu

apenas a mecânica das fúrias em seu corpo

animando a insaciável sede de imortalidade

 

com armas forjadas na furna de Hefesto

não lutará pela glória helênica, mas somente

para talhar seu nome nos umbrais do Olimpo

e a serena razão interpela a apaixonada cólera

bastará a relojoaria iracunda das fúrias

a mecânica da força bruta a animar a ação?

 

Ou será necessário o engenho da astúcia

para que o herói não seja esquecimento

singrando ausências em mares de solidão

o nome tatuado apenas nos lábios do vento?



sexta-feira, 3 de novembro de 2023

AVERNO

Theotonio Fonseca


I

Que ourífico tesouro ou estercorário nada

habita a reentrância da desnuda calçada?

Pés que a tocaram, pranto que a osculara

sangue que clama da fresta do esquecimento

outrora derramado sob o bafo de gélido vento.


Quem decifrará cada linha tortuosa escrita  

nas páginas de cimento destas memórias

hermenêutica dos transeuntes na arena da vida

semântica do desenlace de humanas histórias.  


As vísceras putrefatas e o bico do corvo

carrancas da mesmíssima moeda

a sanha insana do sicário e o corpo

da vítima, funesto afã, infausta meta

paradoxos de humana expressão

miolo de rosas no útero de maligno pão.


assim caminha o humano caminhar

pés céleres de anjo a sustentar

a medonha forma de monstro inominável

adaga ébria de sangue, ventre aberto no pátio

auréola de morte sob asas de angelitude

Missa de Palestrina no grito gutural e rude

assim singra o barco bêbado a barlaventejar

oceanos ocos na desolada terra do nada

a iracunda ira na amorosa face do amar

voo do colibri roçando o cadáver na calçada.


II

Coruscantes raios colhiam pétalas de suor

ao rés do chão de defuntas estrelas

nos minutos sem sombra em sua mó

o moleiro moía dogmas e certezas


plurisofridas ninfas no plenilúnio

carpiam o derradeiro recital do alaúde

inebriantes chuvas de ácido semeavam

sépalas de palor no jardim incendiado

Babel era morta, Sião pálida paisagem.


Limiar de nascentes óvulos

sementes de ossos e óbolos 

obscuros espantos

cálice vazio de sangue

roçando íntimos antros

ante o menstruo arrebol exangue


escoadouro de esgotos e rios de tesouros

lux in tenebris, cadência de ínferos balafons

cozendo ecos na túnica de calões indigestos

cobrindo as peludas vergonhas de Babalon


boca de peçonha no dorso de degolados mochos.

Sonâmbulos bestiários pessoais

escarnece o cururu bojudo, e ri-se Satanás!


III

Chegamos ao fundo da côncava gruta

urna telúrica de primevos segredos

onde o pó dos crânios aduba doces frutas

e o sangue fertiliza flores de asco e medo

são ínferas regiões de ardentes chamas

rios de fétido lodo, jardins de esterco e lama

o óbolo só nos permitira aqui aportar

argonautas sem nau e remo, como regressar?


Sem zéfiro ou éolo como barlaventejar?

É tão infinito o oceano que circunda o inferno

quanto a parafina que já ardeu em um cemitério.

Sentemos neste litoral de esquecimento

como outrora às margens do babilônico rio

cantaram os cativos suas odes de lamento

entoemos nosso réquiem sob o bafejo do vento frio.




 

terça-feira, 31 de outubro de 2023

LOVECRAFT: A CRIAÇÃO DO TERROR CÓSMICO E A ASCENÇÃO DO TERROR PSICODÉLICO

Christian Fonseca

H.P. Lovecraft é reconhecido como o mestre do terror cósmico. Seu estilo único e perturbador de escrita estabeleceu as bases para um subgênero literário que ficou conhecido como "terror cósmico" ou "horror cósmico".

Lovecraft criou um universo fictício chamado "Mitos de Cthulhu", onde entidades cósmicas antigas e poderosas governam o cosmos. As entidades do universo deste aclamado autor, como Cthulhu, Nyarlathotep e Azathoth, estão além da compreensão humana, e sua mera existência é capaz de enlouquecer as mentes mais racionais.

Embora a os gêneros cósmico e psicodélico sejam distintos, eles compartilham elementos temáticos e estilísticos que se entrelaçam em certos contextos.

O terror cósmico de Lovecraft se baseia na ideia de que a humanidade é insignificante e impotente diante das forças do universo. Seus personagens são confrontados com a vastidão do cosmos e a descoberta de que a realidade é muito mais complexa e aterrorizante do que se pode imaginar.

Embora Lovecraft não tenha devotado sua escrita especificamente ao terror psicodélico, pode-se afirmar que alguns elementos de suas histórias estão ligados a esta dimensão estética. Seus contos apresentam descrições vívidas e alucinatórias de seres e paisagens cósmicas, evocando uma sensação de estranheza e maravilhamento.

Além disso, a experiência de seus personagens ao testemunhar a verdadeira natureza do universo muitas vezes é descrita como uma experiência de horror e êxtase, elementos que também são encontrados no terror psicodélico.

A conexão entre Lovecraft e o terror psicodélico é explorada por alguns escritores contemporâneos, que buscam combinar os temas e conceitos do terror cósmico com os elementos alucinatórios e psicodélicos.



sábado, 28 de outubro de 2023

HOMENAGENS À GONCALVES DIAS

       5 Poemas em homenagem ao bicentenário de Gonçalves Dias.

 

  *Theotonio Fonseca

 

Juracema dos Ventos

 

O sol a iluminava com a leveza do colibri

que oscula a flor. O peplo cróceo da alvorada

como véu que veste a fronte da musa amada

cobriu-lhe o desnudo corpo antes de partir

 

tão logo o argênteo dia partira, a noite surgira

e do oceano irromperam flâmulas de morticínio

famintos de ouro e sedentos de extermínio

adentraram o seio virginal das florestas

 

Tupã vendo o fim de seus filhos entre frestas

da divina visão sob a fumaça de vil pressago

dos arcabuzes a cravar pólvora no triste fado

em cada caravela escancarava-se uma janela

para a sangria que dizimaria os filhos da floresta

em cada ranhura do tempo a face de lamentos

a planger dos mil povos o desaparecimento

 

Juracema nadava entre vitórias-régias e iaras

quando ouvira o clangor dos primeiros estampidos

afugentando das árvores o azul das araras

ressoando dos curumins o lancinante gemido

 

Vendo-lhe a dolente lâmina a abrir sem pejo

a alma lacerada pela vergasta da dor infinda

Tupã aprouve de encantar a jovem tupinambá

na eólica forma de um vento benfazejo

 

e hoje quando nas aldeias uma menina

sente os lábios da aragem suas madeixar roçar

é Juracema dos Ventos que a parente abençoa

recordando que o ancestre uirapuru ainda ecoa

e em Pindorama este canto não haverá de calar.

 

O ancião e o tamoio

 

As cãs são as mesmas na neve que as define

o pranto é o mesmo no sal que lhes habita

e o sangue que singra-lhes o alquebrado corpo

tem o mesmo rubro eivado do divino sopro

 

mas o caminhar é distinto nas sendas da vida

o navegar é diverso nas águas do destino

o ancião vê passado, presente e futuro

como temporalidades divisíveis

o tamoio compreende a unidade do tempo

vida e morte como faces do mesmo dracma

corpo e alma como pergaminho unívoco

sem as ambiguidades do maniqueísmo

 

para além das semânticas individuais

do rol de crenças e da mó de certezas

os moleiros dos ciclos do existir

vão triturando impiedosamente a natureza

servindo fealdade em baixelas de antiga beleza

 

e o que unifica ancião e tamoio é a lápide

do porto onde todas as âncoras são fincadas

ilha sonâmbula onde sonhos exilados

gestam a putrefação entre o cipreste a áspide

 

é a morte, nada pode desdourar seu escuro

ou silenciar o sonoro címbalo de seu chamado

nada equaciona a lógica de seu absurdo

ou pode aterrissar seu pleno voo alado

 

e ao fim da navegação em derredor do existir

não existirão jardins além do bojador

apenas vermes a sacramentar o fim

entre raízes e ossos, areia, larvas e odor.

 

Flauta de taquara

 

Em Pindorama todo som emudecia

o maracá do pajé, da jaguatirica a cria

o estridor dos trovões, o rugido das feras

o crocitar do corvo e o sibilo de áspide velha

 

até mesmo a voz encantada da iara

silenciava diante da flauta de taquara.

Quem a executava? Ninguém o sabia.

Quem a manejava? Desconheciam.

 

Uns dizia ser Tupã em sua moradia

outros ser Pã na distante Hélade

a rústica flauta paralisava o toré do dia

e dilatava o quarup noturno de Hécate

 

Pachamama ao ouvir o instrumento

na alfombra do universo a fronte reclinava

a celeste música singrava mares de ventos

doce sinfonia que a criação embriagava.

Ainda hoje ninguém decifrara a autoria

da jubilosa flauta de ancestral magia.

 

Canoa de ossos à beira nau

 

Singrando rios de coagulado sangue

navegando a terra em transe e exangue

para desaguar em um golfo de lágrimas

no leme a sombra do Princípe Jacarandá

remando dores em busca de algum mar.

 

O que restara da queda do céu?

O que sobrara dos mil povos de Tupã?

Estrelas moribundas e astros ao léu

tingindo de luto o peplo cróceo da manhã

na proa fantasmática ressoa o grito do urutau

réquiem para a canoa de ossos à beira nau.

 

O discurso de sumé

 

Peregrinando o chão em busca de vestígios

do dilúvio que Tupã enviara à humana barca

indícios do heroísmo do nauta Tamandaré

e da canoa que abrigara nossos ancestrais

o Princípe Jacarandá achara Sumé a rezar

levitando sob uma touceira de mato

o santo descerrara as pálpebras e a falar

reuniram-se feras, áspides e bojudos sapos:

 

 – Queima a pele e os ossos da alma sofrida

ver os homens caminharem sem direção

como quem desconhece chegada e partida

e caminha em círculos à deriva na solidão.

 

Ensinei-os a lavrar o solo de Tupã

o cultivo da mandioca, da banana e do milho

a invocar a chuva nas tórridas manhãs

a cura dos curumins livrando da morte os filhos.

 

O que hoje vejo no triste chão de Pindorama

são florestas ardendo em incontrolável chama

são meus filhos a morrer como indigentes

e a peçonha colonial, veneno de vil serpente

inocula o fim do imenso jardim de Nhamandú

 

regressa ao lar antes da queda do firmamento

antes que se desdoure o que restou do azul

e à flauta de taquara compõe teu último lamento.

 


*THEOTONIO FONSECA DE SOUSA é Poeta, Professor e Advogado. Autor das obras: Poemas Itapecuruenses e Outros Poemas (Ética, 2014), O Batucajé das Iaras ( Ética, 2016), As Bodas de Sapequara ( Ponto a Ponto, 2021), Recital do Sol na Sagração da Aurora (Ponto a Ponto, 2022), Autobiografia de um Sabugueiro (Ponto a Ponto, 2022), Prelúdio da Lua na Dormição da Noite (Ponto a Ponto, 2022) e A Madona Vestida de Arame Farpado (Ponto a Ponto, 2023)

 

terça-feira, 17 de outubro de 2023

A SAGRAÇÃO DO PRÍNCIPE JACARANDÁ

Theotonio Fonseca

I

E por circundar mares sonâmbulos

o principesco curumim pincelou no horizonte

as contas de juçara de seu rosário de cânticos

na fumaça dos petanguás de taquara

dos tamoios aldeães da nobreza tupi

previu a face da morte no dorso de caravelas

no colorido infante da multicor infância

 

entre o vaticínio do rouxinol e o sortilégio do mocho

navegação de cabotagem no ensanguentado litoral

sargaços e círculos de fadas dos oceanos infindos

elevando ao altar da pedra da memória

a rapsódia ancestre de quem o precedera

com as artes divinatórias da realeza

interpelou o deus oniromante que o visitava:

 

 – O que virá no alaúde ambíguo do mar?

O que se ouvirá? O baldio som do desatino?

A nau bojuda no funil do ser para a morte?

O anafilático desespero da esperança

dos que aguardando divindades receberiam

pães malignos com miolos de rosas

a espada do colonizador sob o véu da rude cruz

dizei-me vós, oniromante Senhor dos sonhos

se os andrajos do fim habitarão nossos corpos?

se o odor de sangue povoará nosso ar?

E é de indizível opróbrio a nave que vem do mar?

II

O dobre do fim nos sinos de um viajor insano?

E por conhecer recônditos segredos das linhas

das mãos de Tupã, e por saber o sabor do leite

que jorra dos verdes seios de Pachamama

o estranhamento com a chama divina do infante

fizera com que o enviassem às estranhas terras

 

para conviver com feras e pajés de anhangá

e se vivo regressasse após esse retiro espiritual

confirmar-se-ia sua vocação para liderar os mil povos

e até que com o cetro de ibirapitanga regesse

a sinfonia de todos os filhos de Nhanderuvuçú

aperfeiçoaria os talentos no templo azulado-lilás

para além do bojador de sua tribo e território

na inóspita senda dos anosos jacarandás.

III

O pajé da tribo acreditando que o príncipe

era apenas um artista que descobria a vocação

e antes que o jovenzinho partisse em pessoal missão

segredou-lhe no ouvido um poema esquecido

que ouvira de um homem branco em tempos idos:

 

  – Segue tingindo o rubro espanto do verso

aquarelas haverão para contagiar de alabastro

os cântaros de cores que te habitam o godê da alma

e quando naufragar a nau bojuda

da espátula ébria de nuances

como menina travessa no trapézio do encanto

abandona teu sonho no íntimo do arco íris

se esta galeria oca não te satisfaz

a sede de escreviver sonhos                     

 

adentra a rosa dos ventos que criaste

e deixando o convívio da vida vazia

dos vivos que não veem o infinito

possas coabitar com os seres de tinta

que em teu ser criaste, habitarás mundos

infindos e lindos cosmos coloridos

IV

 – Dizei-me vós, feiticeiros de anhanguera

se estas águas que beijam as folhas mortas

de jacarandá-mimoso, este regato pútrido

que lambe as chagas do chão maculado

pelos pés dos colonizadores, dizei-me

se nascerei novamente deste charco

se me batizarão os miasmas que habitam

este alagadiço? Sei que aqui sou um proscrito

mas ao nascer banharam-me no rio amazonas

alimentei minha alma com cristalinas fontes

saciei minha sede com a chuva de água pura

 como posso submeter-me a embebedar-me

com o córrego fétido de Anhangabaú?

 

 – O que será nobre príncipe, do diamante

sem a rudeza da rocha, o ouro sem o chão

o tesouro não germina na angelitude das nuvens

ou o angélico legado dos deuses se esconde

para além do humano, em seráficos horizontes?

 

É necessário descer às catacumbas do ser

navegar o lodo onde a rosa esconde a pétala

no estômago telúrico do barro indigesto

nas entranhas de areia, urna de valiosos minérios

 

como regressar ao lar sem conhecer os mistérios

da decomposição, de ínferos reinos esquecidos?

Como conduzir com cetro que não verga

com coroa que o sol e a chuva não desdouram

os mil povos que habitam o berçário de Pachamama?

Sem conhecer a aluvião de limo e o borbotão de lama?

V

Assim, vencendo os desafios que o impuseram

empunhando a coragem que tentavam subtrair-lhe

o príncipe superou as provas fogo e coragem

andou sob as brasas, lutou contra uma onça

derrotando a rude fera cortara - lhe a cabeça

 

no desafio dos magos afugentara demônios

ao fim das provas recebera uma cabaça

contendo a força dos primevos espíritos

e quando a madrugada prenunciava a manhã

adentrou os pórticos da aldeia e quebrando o coité

respirou o pó mágico sorvendo encantamentos

 

do magnetismo que energizara sua alma

teceu as vestes talares de seu reinado

fundindo na forja de fogos fátuos a invisível coroa

 

e o uirapuru anunciou aos mil povos da terra

que o Príncipe Jacarandá havia regressado

sentar-se-ia no trono de Tupã, liderando com vigor

todas as etnias na batalha contra o vil colonizador.



THEOTONIO FONSECA DE SOUSA é Poeta, Professor e Advogado. Autor das obras: Poemas Itapecuruenses e Outros Poemas (Ética, 2014), O Batucajé das Iaras ( Ética, 2016), As Bodas de Sapequara ( Ponto a Ponto, 2021), Recital do Sol na Sagração da Aurora (Ponto a Ponto, 2022), Autobiografia de um Sabugueiro (Ponto a Ponto, 2022), Prelúdio da Lua na Dormição da Noite (Ponto a Ponto, 2022) e A Madona Vestida de Arame Farpado (Ponto a Ponto, 2023)

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

SÃO RAIMUNDO, DOS MULUNDUNS

                                    Quem – ou o quê – festejar? 


 

LEOPOLDO GIL DULCIO VAZ 

Academia Poética Brasileira, 

Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, 

Academia Ludovicense de Letras 

 

O Dia do Vaqueiro é 29 de agosto (Lei Federal 11.797/2008). No terceiro domingo de julho é comemorado o Dia Nacional do Vaqueiro Nordestino. O vaqueiro é responsável por realizar o tratamento de pastos e outras plantações para ração que alimentam o gado, também realiza ordenha e mantém todos os cuidados com o animal. Dia Nacional do Vaqueiro - 29 de Agosto - Calendário 2023 (calendario.online) 

Já no Maranhão, o festejo de São Raimundo Nonato dos Mulundus, o santo vaqueiro, protetor e padroeiro dos vaqueiros, é um novenário – de 22 a 31 de agosto, dia em que ele faleceu (ou foi encontrado morto?), na antiga fazenda, hoje povoado, Mulundus, a 30 km de Vargem Grande (MA). 

          A ORIGEM DOS MULUNDUNS 

 Para o austríaco Ludovico Schwennhagen, o Maranhão existia, como a república dos tupinambás, já antes da fundação de Tupaón. Os sete povos tupis, que tomaram posse do norte do Brasil, cerca de 1500 anos A.C., entram pela foz do rio Parnaíba, procurando as serras em ambos os lados desse rio. Do lado oriental ficam os tabajaras, do lado ocidental os tupinambás; os outros cinco povos estenderam-se para o sul e sudeste. Todos os sete povos formaram uma confederação e as Sete Cidades (no Piauí) eram a capital federal, isto é, o lugar, onde se reunia todos os anos o Congresso dos Sete Povos. (Schwennhagen, 1925). 

 

Mas a harmonia não ficou sempre intacta; por quaisquer motivo desligaram-se os tupinambás da confederação e constituíram seu próprio congresso, ao lado ocidental do Parnaíba, em Mulundús.  

Os tupinambás já eram grandes senhores, tinham ocupado a maior parte do interior do Maranhão, tinham fundado mais de cem colônias no Grão Para, Amazonas e Mato Grosso e precisavam dum centro nacional para conservar a unidade da nação dos tupinambás.  

Esse centro era Mulundús, onde se reuniam todo os anos os delegados de todas as regiões, ocupadas pelos tupinambás. Nas cartas e relatórios do padre Antonio Vieira encontram-se muitos indícios desses factos. Ele relata que alguns dos seus amigos tupinambás lhe contaram que no interior do Maranhão se reúnem os delegados de todas as aldeias que falam a mesma língua geral, e pediram ao padre mandasse para lá um sacerdote católico para celebrar missa, dentro da grande reunião do povo. Assim o antigo congresso de Mulundús ficou transformado numa festa cristã, dedicada à memória de São Raimundo, como ainda agora se faz. Sempre, porém, essa festa conservou o caráter dum congresso popular, para onde veem de longe, de Goiás, Mato Grosso e Pará amigos, parentes e comerciantes daquelas regiões que pertenciam antigamente ao grande domínio dos tupinambás. Ludovico Schwennhagen 

 

A região que compreendia Itapecuru Mirim, Vargem Grande, Chapadinha, Brejo, Anajatuba, Manga do Iguará (Nina Rodrigues), Araioses, Cantanhede e outras  existia grandes fazendas de gados o que justifica as   centenas de vaqueiros  devotos do Santo espanhol,  que segundo a lenda, enquanto fazia suas orações a Virgem Maria esta enviava um anjo para guardar os rebanhos sob os seus cuidados, daí a ter um “representante” conterrâneo melhor ainda. 

Muito propícia a criação de gado,   comercializados no Arraial da Feira, atual Itapecuru Mirim ou transportada para São Luís via rio Munim. As crianças desde muito cedo começavam a aprender o mister de vaqueiro, que era a função de maior status entre os escravos. A profissão de vaqueiro passava dos  pais para  os filhos. 

          O festejo de São Raimundo Nonato dos Mulundus 

Mas, qual ‘Raimundo Nonato’??? O Vaqueiro, morto, e reverenciado como santificado? O filho da fazendeira, curado por intercessão do Santo (vaqueiro)? Ou o santo espanhol? 

         RAIMUNDO NINA RODRIGUES, O FILHO DA PROMESSA 

O filho da promessa,  Raimundo Nina Rodrigues  o mais ilustre filho da terra, foi  médico legistapsiquiatraprofessor e antropólogo. Faleceu em 1906. 

O pequeno Raimundo nasceu no dia 4 de dezembro de 1862, porém foi uma criança com a saúde frágil e mais uma vez Dona Luiza recorreu ao Santo pedindo proteção e saúde ao filho e em troca prometeu fazer vir da Espanha  uma imagem autêntica confeccionada na oficina sacra da  terra natal de São Raimundo. Quando o filho atingiu a juventude a imagem foi encomendada. A trajetória da imagem foi difícil. Ela  foi enviada à  Portugal de lá foi feito o translado de navio para a capital, São Luís, depois foi levada de  barco a vapor até Itapecuru –Mirim quando as autoridades locais e eclesiásticas a transportaram até a igreja de São Sebastião e depois à  Mulundus. A chegada da imagem ocorreu no penúltimo quartel do século XIX. Blog da Jucey Santana: SÃO RAIMUNDO DOS MULUNDUS 

Por volta dos anos 30  do século XIX, o tenente-coronel Antonio Bernardino Ferreira Coelho  adquiriu o Engenho Primavera que outrora pertencera a madrinha do vaqueiro Raimundo Nonato. Na constância do cargo de Deputado Provincial Antonio Bernardino transferiu a Vila  de Olho d’Agua para Vargem Grande em 1845.  No final dos anos cinquenta o deputado vendeu o Engenho Primavera ao coronel Francisco Solano Rodrigues. Ao comprar as  terras adquiriu também a escravatura dos antigos proprietários com todos seus costumes e crendices. No local se estabeleceu com a família depois do casamento com a senhora Luíza Roza Nina Rodrigues, onde tiveram sete filhos: Djalma, Joaquim, Raimundo, Themístocles, Antônio, Saul, e Maria da Glória. Blog da Jucey Santana: SÃO RAIMUNDO DOS MULUNDUS 

Dona Luíza figurou como responsável pela festa durante muitos anos  sendo seguida por seu filho o capitão Saul Nina Rodrigues que mesmo residindo no Engenho São Roque em Anajatuba, gerindo os negócios da família mantinha negócios em Vargem Grande tendo continuado como Mordomo da festa. Dona Luiza faleceu  em 17.12.1911.   

O tenente- coronel Francisco Solano Rodrigues, foi juiz de direito, Comandante Superior da Guarda Nacional, da Vila de Vargem Grande,  deputado constituinte, Presidente da Câmara de Anajatuba e grande benfeitor de Vargem Grande, tendo cedido uma das suas casas para servir de cadeia pública  à Vila. 

Desde o início do Século XX, começaram as campanhas pela imprensa,  pelos moradores e principalmente pelos comerciantes para a transferência da festa para a sede de Vila de Vargem GrandeO povoado de Mulundus, era desprovido de estrutura adequada para a celebração da festa que havia se tornado muito grande. 

Porém os tradicionalistas resistiam, por achar que a festa deveria permanecer no local onde iniciou. Foram anos de negociações para solucionar o impasse. Somente em 1953, na gestão do arcebispo Dom José Medeiros Delgado,  houve a transferência da festa para Vargem Grande, passando a ter uma maior projeção. Os conservadores, no entanto, inconformados continuaram celebrar São Raimundo Nonato em Mulundus, que em consenso a igreja fixou a data do evento no povoado para o mês de outubro e assim respeitando a religiosidade popular. A festa reúne féis de todo o Maranhão  também de outros Estados, em pagamentos de promessas. 

         O Santo Espanhol, São Raimundo Nonato  

Foi um doutor da igreja, um grande Bispo e mártir da fé católica. Roga por nós, São Raimundo! (em catalão: Ramon Nonat, em castelhano: Ramón Nonato) é um santo católico romano que viveu no século XIII e se rebelou contra a escravidão, que na época era tida como natural. Raimundo recebeu a alcunha de Nonato ("não nascido") porque foi extraído do ventre de sua mãe, já morta antes de dar-lhe à luz, ou seja, não nasceu de uma mãe viva, mas foi retirado de seu útero, algo raríssimo à época. São Raimundo Nonato - Diocese de São José do Rio Preto/SP (bispado.org.br) 

Por isso é festejado, no dia 31 de agosto, como o patrono das parteiras e obstetras. Em 1224 entrou na Ordem de Nossa Senhora das Mercês, que era dedicada a resgatar os cristãos capturados pelos muçulmanos levados para prisões na Argélia. Mas ele não queria apenas libertar os escravos, lutava também para manter viva a fé cristã dentro deles. Capturado e preso na Argélia, converteu presos e guardas, mas teve a boca perfurada e fechada por um cadeado para não pregar mais. Após sua libertação, foi nomeado em 1239 cardeal pelo papa Gregório IX, todavia no início de seu caminho a Roma padeceu violentas febres pela qual morreu. Servilio Conti. O santo do dia.- 10. ed revisada e atual - Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. Raimundo Nonato – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org) 

Em “A história de São Raimundo Nonato dos Mulundus”, a professora Dolores Mesquita diz que Mulundus era uma fazenda de “umas brancas da família Faca Curta”, ricas e donas de muitos escravos. O racismo é impedimento à santificação de negros no Brasil (geledes.org.br) 

O fato: Raimundo Nonato, com outros vaqueiros, caçava uma rês desgarrada e sumiu. Dois dias depois foi encontrado morto: o corpo conservado e exalando um perfume! O povo entendeu que virara um santo. Não houve enterro. O corpo sumiu! É um mistério! Segundo os escravos Raimundo, Secundio, Quirino, Martiniano, Macário, Zé Firino, Militão e José Cabral, os padres levaram o corpo para Roma. Mistérios e farsas sobre são Raimundo Nonato dos Mulundus | O TEMPO 

No local do acidente foi feita uma capela de palha (depois o santuário de são Raimundo dos Mulundus, hoje em ruínas), e, chefiados por Macário Ferreira da Silva, criaram um novenário, que se encerrava no dia de sua morte, 31 de agosto. “Isso pelos anos de 1858, mais ou menos” (Dolores Mesquita). 

 

Em 1858, já era rezada a novena, e havia uma capela de palha para o santo vaqueiro, a partir da qual foi erguido o Santuário de são Raimundo Nonato dos Mulundus, de rara beleza; e entre 1901 e 1908, o padre Custódio José da Silva Santos, de Vargem Grande, celebrava a festa em Mulundus “Apesar do abandono em que vive, o altar onde celebram as solenidades religiosas permanece firme, sendo resistente ao sol e à chuva; diz o povo que não cai porque são Raimundo protege aquele santo lugar”. O racismo é impedimento à santificação de negros no Brasil (geledes.org.br) 

 

Muito religiosa Dona Luiza, quando chegou já encontrou a capelinha em Mulundus que fazia parte da propriedade da família. Passou a fazer a  manutenção  e  incentivar o culto a São Raimundo Nonato. Em 1862, enquanto gestava um dos seus filhos se sentiu muito doente então fez promessa, que se tivesse um bom parto, o filho receberia o nome do Santo, porque além de protetor dos vaqueiros é invocado como patrono e protetor das parturientes e das parteiras, porque durante o seu nascimento a sua mãe faleceu e ele foi extraído vivo.   

Após a Proclamação da República (1889), Mulundus foi comprada pelo coronel Solano Rodrigues, cuja mulher, dona Luíza, em pagamento a uma promessa ao santo vaqueiro, mandou fazer em Portugal uma imagem dele que custou 1 conto e 700 réis, pela cura da pneumonia de seu filho Saul Nina Rodrigues, advogado, irmão do médico Nina Rodrigues. 

Até 1908, os padres celebravam missa no santuário de Mulundus. Em 1930, o arcebispo de São Luís proibiu o festejo, alegando ser profano! As perseguições do oficialato católico ao santo vaqueiro beiram a insanidade e a ganância. O povo manteve a devoção, sem padre e sem missa. 

Em 1954, o arcebispo dom José Delgado, acoitado pela polícia, “mudou”, como se fosse dono de uma obra popular, o Santuário de Mulundus para Vargem Grande, dando-lhe novo nome: Santuário de São Raimundo Nonato, bispo espanhol da ordem dos mercedários (1204-1240), santificado! Os romeiros não arredaram de Mulundus!

                   A arquidiocese decidiu disputar com Mulundus e dividir a fé do povo: “Comprou 180 hectares da fazenda                                 Paulica,   a 7 km de Vargem Grande, e fez uma capela para onde os romeiros em procissão conduzem                                   a imagem de São   Raimundo      Nonato (o bispo espanhol) no dia 22 e a trazem de  de volta  para igreja                                no final do dia” (professora Dolores Mesquita). 

O VAQUEIRO RAIMUNDO NONATO 

Para Marcus Ramusyo de Almeida Brasil, A história de São Raimundo Nonato dos Mulundus está envolta em narrativas de mistério, fé e devoção, no contexto das crenças populares e das práticas performáticas socio-culturais que as engendram. São Raimundo Nonato dos Mulundus, o santo vaqueiro: travessias da religiosidade em movimento | Domínios da Imagem (uel.br)

 

Raimundo Nonato Soares Cangaçu nasceu em 31 de outubro de 1700, no povoado de Vargem Grande. Veio a falecer no dia 31 de agosto de 1732. Revela a memória coletiva que o vaqueiro Raimundo Nonato estava cavalgando em velocidade pelas matas quando bateu com seu cavalo em uma árvore. Tanto ele quanto seu cavalo ficaram combalidos, ali pereceram e morreram. No entanto, ao entrar em estado de decomposição, em vez de feder e ser comido pelos vermes, o corpo de Raimundo Nonato se santificara, emanava, então, perfume de flores. Nasceu, ali, linda vegetação. O local de sua morte tornou-se lugar de peregrinação com o passar do tempo. Seu nome se manteve forte no imaginário popular do sertanejo da região, vindo a se tornar o santo protetor dos vaqueiros e daqueles que vivem nos rincões do Maranhão profundo, através de quase 300 anos de tradição. (MELO, 2016, Nágela Mila de. São Raimundo Nonato dos Mulundus em Vargem Grande – MA: uma experiência estética. Licenciatura em Artes Visuais – Departamento da Licenciatura em Artes Visuais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão – Campus Centro Histórico, 2016. Monografia em Artes Visuais.) 

 

 

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