sábado, 25 de março de 2023

MARIANA LUZ ENTRE “OS NOVOS”

 *Gabriela  Oliveira

Em tempos imemoriais, os gregos acreditavam que os poetas eram os eleitos das Musas, divindades ligadas à arte. Nessa perspectiva, ser poeta não era uma decisão pessoal e sim, um arbítrio divino. Embora, modernamente, essa ideia só seja plausível em belos e sublimes versos, um fato é incontestável, perseguir e compreender as pulsões que motivam o fazer artístico é um caminho difícil de trilhar. Nesse ensaio, nosso propósito não é sondar as motivações de Mariana Luz, mas refletir sobre suas consequências na vida da poeta.

Mariana Luz, seguramente, foi uma dessas pessoas de grande sensibilidade que se sentindo impelida por forças criativas que agitam o espírito, vertia em versos os seus “anseios, os pensamentos, as reações” que vinham do coração, como ela mesma declarou em seu discurso de posse na Academia Maranhense de Letras.

Essa poesia que brota dos deslumbramentos, que é ao mesmo tempo natural e imperativa, é o que encontramos nos versos de Fernando Pessoa:

Olho e comovo-me,

Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado

E a minha poesia é natural como o levantar-se vento... (PESSOA, 2005, p. 39)

 

As pulsões que sacodiam o espírito e a natureza contemplativa da jovem professora de Itapecuru Mirim, levaram-na a ingressar em um mundo marcadamente masculino, o universo das letras. Assim, a autora participou ativamente dos movimentos culturais que o Maranhão vivenciou no crepúsculo do século XIX. Da mesma época de Antonio Lobo, Nascimento Moraes e tantos outros, Mariana Luz pertenceu ao terceiro ciclo da literatura maranhense que ficou conhecido como a geração “dos novos”, ou os “neoatenienses”.

Eram eles um novo grupo de letrados, cognominado a “mocidade estudiosa” e os “operários”, desejoso de reviver as tradições luminosas do passado. Desse modo, o grupo se apropriou do ideal da Atenas Brasileira como forma de legitimação, objetivando consolidar-se, além de revitalizar e dinamizar o cenário cultural maranhense. Decerto, São Luís se viu sacodida por palestras, conferências e eventos. Nesse período, foram criadas diversas instituições culturais e educacionais, como: o Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (1925); a Biblioteca Pública do Estado (1898); a Escola Normal (1890); a Escola de Música (1902); a Faculdade de Direito (1918) e a Faculdade de Farmácia e Odontologia (1922). Nas primeiras décadas do século XX, também surgiram várias associações culturais, como: o Centro Artístico Operário e Eleitoral; a Associação Cívica; o Grêmio Literário Maranhense; a Cooperativa Sotero dos Reis; o Clube Nina Rodrigues e o Grêmio Odorico Mendes (CARDOSO, 2013, p. 29).

É nesse cenário que a agremiação literária Oficina dos Novos é fundada, em 1900. Visando um promissor e triunfante futuro, esses “novos atenienses” buscavam unir o moderno presente às tradições gloriosas do passado. A Oficina dos Novos fundou o periódico Os Novos. Outros periódicos também surgiram nessa época, como A Atualidade (1900) e A revista do Norte (1901). Em 1901, um grupo dissidente da Oficina dos Novos criou uma nova sociedade literária, chamada A Renascença Literária, que fundou o jornal A Renascença. Em 1903, foi lançada a revista A Nova Atenas. A Oficina dos Novos foi transformada, em 1908, na Academia Maranhense de Letras (CARDOSO, 2013, p. 28-29). Diante do exposto, percebemos como, em função desse empenho pelo restabelecimento do antigo prestígio cultural, a sociedade maranhense presenciou o florescimento de diversos periódicos e sociedades literárias.

Em meio a essa agitação da vida cultural e literária estava a jovem Mariana Luz. Ela participou efetivamente das agremiações de sua época, se não como membro de todas elas, mas, seguramente, como convidada, voluntária ou colaboradora.

Como podemos notar, os “neoatenienses” foram responsáveis por mudanças concretas no ambiente cultural maranhense, fomentando um momento fecundo para a criação da reputação literária de vários escritores, entre eles, Mariana Luz. A respeito desse ciclo de literatos maranhenses, Martins (2006, p. 187) assinala que, longe de constituírem-se intelectuais menores, os “novos atenienses” legaram ao Maranhão uma obra pouco conhecida pelo público e pelos acadêmicos, mas de real interesse para se compreender melhor a nossa própria história. Com efeito, nota-se certo desconhecimento acerca da produção literária dessa geração.

Dentro desse período de extrema fertilidade, a atmosfera de dinamismo cultural que envolveu a sociedade maranhense seguramente foi um dos fatores que impulsionou a carreira da jovem literata Mariana Luz, que além da participação em conferências e sociedades literárias, foi também colaboradora de diversos periódicos e de algumas revistas. Entrementes, o nome de Mariana estampou várias notícias que enalteciam seus talentos, tanto na lírica quanto no drama. Ela tornou-se uma importante referência de sua cidade natal, Itapecuru Mirim, que era comumente citada como a “terra de Mariana Luz”. A fama da poeta ultrapassou as fronteiras maranhenses. Ela passou a ser uma das colaboradoras externas da pioneira revista feminina O Lyrio, de Recife-PE. Teve também suas produções veiculadas em periódicos de outros Estados, e foi citada em matérias de jornais cariocas que destacavam a participação feminina nas letras.

Por meio de uma escrita ao mesmo tempo simples e refinada, Mariana Luz, comove o leitor com poemas pungentes que carregam uma mensagem que o tempo não foi capaz de enfraquecer. Um dos seus mais belos sonetos, intitulado “Velho tronco”, desperta a imaginação do leitor através de imagens poéticas cuidadosamente elaboradas, além de emocionar pela musicalidade que dá o compasso do sentimento. Vejamos:

 

Velho tronco caído, abandonado

À beira de uma estrada serpejante

Tombaste para o chão qual um gigante

Vencido, e pela luta extenuado.

 

Em tua fronde, outrora verdejante

Se aninhava, feliz, o bando alado,

E à tua sombra amiga, fatigado,

Quanta vez se acolheu o viandante.

 

Hoje mostras no bojo carcomido

Os destroços que o ferro destemido

Imprimiu-te sem dó e sem piedade

 

E talvez guardes, velho tronco anoso,

Do teu passado, alegre e rumoroso,

Um poema infinito da saudade...

 

Reconhecendo que a primeira lição a ser aprendida por quem quer se aventurar nos estudos literários é não confundir a vida do autor com sua produção, ousamos aqui apontar em “Velho tronco”, uma alegoria da própria trajetória da poeta. É importante destacar que não defendemos isso como uma “interpretação” do poema. Na verdade, trata-se de uma construção que elaboramos intencionalmente. Fazemo-nos não buscar explicações biográficas por trás da construção do soneto e sim para pensar, talvez um pouco metaforicamente, sobre as fases da recepção do texto luziano entre os maranhenses. 

Mariana Luz, como o tronco “outrora verdejante”, brilhou em sua juventude publicando intensamente na imprensa. Ela teve seu talento reconhecido através da eleição para a Academia Maranhense de Letras. Impulsionada por suas pulsões artísticas, a poeta lutou por sua voz e por seu espaço no mundo literário. Temos aí traçado o que podemos chamar de primeiro momento da artista no mundo literário, a fase do reconhecimento.

Em sua época, a autora revelou-se como uma voz proeminente e sua produção encontrou boa acolhida. A crítica especializada reconhecia o valor de sua criação. O fato dela ter tido muito espaço na imprensa, também atesta isso.

A figura mesmo de Mariana Luz também merece alguns comentários. É, no mínimo, intrigante perceber como uma mulher, em uma sociedade patriarcal, alçou voos tão altos. Uma rápida olhada em sua biografia nos mostra como ela teve uma participação ativa em sua comunidade. Tanto na esfera da educação, quanto da cultura e até mesmo da política, Mariana revelou-se uma pessoa de grande relevância em seu tempo. Não é demais lembrar que ela teve o nome indicado à candidatura para a Câmara Municipal em Itapecuru Mirim.

Contudo, nem tudo foram flores, Mariana também se viu em meio a polêmicas e foi alvo de ataques. Esse dado reforça para nós sua atitude ativa diante das questões importantes de sua comunidade. Se Mariana Luz tivesse sido uma personagem apagada, desprovida de opiniões contundentes, ninguém se preocuparia em atacá-la.

Temos até aqui mostrado como as pulsões artísticas arrastaram essa mulher para um lugar tão refratário a ela. Ela, por seu talento, conquistou seu espaço.

Apesar de todo reconhecimento do valor de sua obra, Mariana Luz morreu sem conseguir publicar seu único livro de poemas. Outro dado que causa tristeza é notar que apesar das grandes contribuições para sua comunidade, Mariana Luz, ainda hoje, é motivo de chacota entre alguns de seus contemporâneos.

Circulam histórias exageradas, inverossímeis e preconceituosas a seu respeito.  Em sua terra natal, Itapecuru Mirim, há quem só pense em Mariana como uma professora impiedosa. As piadas em torno dela – não casou porque era feia, ou coisas do gênero - estão carregadas do machismo que insiste em não abandonar a sociedade em pleno século XXI.

Outro fato merece atenção. Por que a obra de Mariana foi esquecida? Por que Mariana foi sistematicamente colocada à margem do cânone? Até que ponto sua condição – mulher, negra e pobre - corroborou para tal posicionamento? Esse é um debate que deve ser encarado em outro momento com grande seriedade e maior profundidade. Por ora, deixamos aqui somente essas provocações.

Diante do exposto, percebemos que como o velho tronco do poema, caído e abandonado na estrada, Mariana Luz e sua obra foram legadas, por longos anos e injustamente, ao esquecimento. Temos aqui traçado o segundo momento da artista no cenário literário, a fase do apagamento.

O fato é que Mariana Luz e sua obra merecem melhor acolhida, tanto por parte dos leitores como dos estudiosos de literatura, uma vez que, mesmo não tendo uma volumosa produção, sua “enorme relevância poética” lhe assegura um lugar de destaque entre as letras maranhenses da primeira metade do século XX. (NERES, 2018, p. 250).

É grande com contentamento que, aos poucos, vemos esse quadro começar a ser revertido. Ainda que de maneira tímida, estudos sobre a obra luziana começam a despontar na Academia. Cabe a nós, homens e mulheres das Letras, reforçar esse movimento e assumir a tarefa de mostrar ao público a beleza e a grandeza da poesia de Mariana Luz.

 

Referências

CARDOSO, Patricia Raquel Lobato Durans. Lobo X Nascimento na “Nova Atenas”: literatura, história e polêmicas dos intelectuais maranhenses na Primeira República. 2013. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2013.

MARTINS, Manoel Barros. Operários da saudade: os novos atenienses e a invenção do Maranhão. São Luís: Edufma, 2006.

NERES, José. Dor e sofrimento na poesia de Mariana Luz: uma breve leitura de “Murmúrios”. IN: SANTANA, Jucey Santos;

CANTANHEDE, João Carlos Pimentel (orgs). Púcaro Literário II: Itapecuru Mirim, 200 anos. São Luís, AICLA, 2018.

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia

Do livro, Púcaro Literário III – Protagonismo Feminino (2021), organizado por Jucey Santana e João Carlos Pimentel Cantanhede.

 


*Gabriela de Santana Oliveira, nasceu em São Luís (MA), filha de Jucey Santos de Santana e José Pereira de Santana,  pesquisadora, cronista, graduada em Administração de Empresas, pela Universidade CEUMA (1994), mestre em Estudos  teóricos e críticos em Literatura pelo programa Pós-Graduação em Letras – PGLetras pela Universidade Federal do Maranhão e doutoranda em Literatura. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Estudo e Pesquisa em Lírica Contemporânea de Língua Portuguesa – UFMA. Graduanda em Letras- Inglês – UFMA.

 

sexta-feira, 17 de março de 2023

TIA GRACIETE CASSAS

      

À uma amiga especial

Graciete Cassas

 

*Luís Augusto Cassas

           Raras as flores raras. Mas não incomuns. Integram o jardim do humano. Cultivar e guardar a essência do ser. Transformam-se em cálices, oferendas ao céu e a terra. Não temem renunciar ao acessório para a vivência do essencial.

          Tia Graciete Cassas pertence a essa coleção de flores raras. Antologia, ontologia. A ternura fundamental. Coração aberto à pulsação do sentido, derramando-se ao outro, preenchendo-lhe o vazio.

        Conhecida pela comunidade itapecuruense como mãe de caridade. Que título de nobreza, poderia ser mais elevado?

         O sentido de missão pautou a aventura de sua vida. Jamais deveria ter entrado na política partidária. Era uma militante do ideal, franco-atiradora, o outro como aliado e impulsionador de sua busca sócio-espiritual. Deus não permitiu que se extraviasse, seduzida pelas tentações do poder.

      Geminiana, de 2 de junho, Itapecuru-Mirim. Uma das filhas do meu avô Felício Cassas e minha avó Lourdes, irmã da minha mãe Miriam. Uma tia e amiga querida, carinhosa, que gostava de se divertir e festas. Almoços em família. E os acepipes deliciosos de D. Tina, que tive o prazer de conhecer, em companhia de Zuzu Nahuz, em sua casa e de minha avó.

    Forte liderança feminina, temperamento jupiteriano, escudado na defesa dos assuntos dos mais humildes.

     Riso ensolarado, como a Irene, de Bandeira. Era feliz. A arte de conversar aproximou-a do mistério que lhe era inerente, a nutrição do outro. Devota de Nossa Senhora Aparecida, mãe de Márcia, Cynthia e Felicio. E de tantos filhos pelos quais desenvolveu a maternidade real e afetiva. O sofrimento do povo foi sua escola a serviço do coração.

        Que força interior processava e atualizava para combater o bom combate, contra o inimigo de todos: a fome, a pobreza, a desnutrição, a ignorância, com as armas que podia dispor? Também seu dom de partejar as mulheres que lhe necessitavam, fortaleceu-a no mistério do nascimento e renascimento. Deus era seu escudo e fortaleza. E o sentimento do mundo e a intuição prática os   instrumentadores desse ofício.

      Era uma conselheira da comunidade ouvida sobre quase todos os assuntos: de ajuda financeira a mediadora em conflitos de casais, com habilidade de encontrar desfechos felizes. Segundo sua biógrafa, a escritora Jucey Santana, “favoreceu muito a cultura local, ajudando a formação de grupos sociais, esportivos religiosos e filantrópicos. Foi uma das fundadoras com o seu esposo do Lions Club de Itapecuru Mirim, em 1981 e esteve diretamente ligada na fundação do Clube da Cidade, em 1961.”

    Sua prodigalidade, em sua meteorologia previsível, desfavoreceu-lhe os signos da materialidade, Escrivã que era do Cartório do 2º. Ofício, durante longos anos. Mas Deus encontrou a maneira de prover-lhe a segurança material de seus filhos e netos, após seu trânsito neste mundo.

     Foi uma mulher de ideais nobres que os realizou na dimensão da outridade. Obras escritas no coração. Escolhida como patrona da Cadeira 8, da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes – AICLA – representada pelo poeta folclorista Moaciene Monteiro Lima.

       Que seu berço natal, Itapecuru Mirim, continue a plantar e colher as flores raras que ela, como tantos outros, com coragem e amor, fizeram florescer. Lembro de Rabindranath Tagore, indiano.  “Tu, jardineiro, tens com tua terra, teu céu.” Cultivar e guardar esse jardim imaterial é o desafio para homens e mulheres de sua cidade natal e pátria do eterno.

              Do livro, Púcaro Literário III – Protagonismo Feminino (2021), organizado por Jucey Santana e João Carlos Pimentel Cantanhede.

 

 


*Luís Augusto Cassas
(São Luís, MA, 2/3/1953). Poeta e escritor, sobrinho de Graciete, filho de Miriam e Raimundo Araújo Neto, neto de Felício e Lourdes Cassas. Obra poética: República dos Becos; A paixão segundo Alcântara e novos poemas; Rosebud; O retorno da aura; Liturgia da paixão; Ópera barroca; O shopping de Deus & a a alma do negócio; Titanic – Boulogne: a canção de Ana e Antônio; Bhagavad-Brita: a canção do beco; Deus mix: salmos energéticos de açaí com guaraná e cassis; O vampiro da Praia Grande; Em nome do Trópico de Câncer; A mulher que matou Ana Paula Usher: história de uma paixão; O filho pródigo: um poema de luz e sombra; Bacuri-sushi: a estética do calor; A ceia sagrada de Míriam; O livro – Livro I, O sentido (relatos da fumaça do incenso), Livro II, o paraíso reencontrado;   Evangelho dos Peixes para a Ceia de Aquário; e Paralelo 17.