Série Crônicas – ano V/nº 51/2018
Crônica de março –
Josemar
Lima
A Voz Paroquial São Benedito, que tinha seus
estúdios instalados na Igreja Matriz, anunciou em uma de suas edições noturnas,
com a voz impostada de seu locutor oficial, Marcelino Nogueira Filho, vulgo
“Rim de Égua”, o seguinte reclame, como eram chamadas as propagandas naquele
tempo:
“Atenção aficionados
do futebol! Não deixem de assistir no
próximo domingo, no Campo do RENNER, ao grande encontro futebolístico entre a
Seleção de Itapecuru Mirim e a Seleção de Ipixuna”.
Eu, sentado na calçada da residência do senhor José
Januário, uma quitanda de secos e molhados, localizada da antiga Rua da Boiada,
bem do lado de minha casa, ouvia a notícia com grande interesse, pois já tinha
visto falar antes nesse grande confronto, onde o time itapecuruense ia tentar
vingar-se de uma goleada sofrida recentemente da seleção do atual município de
São Luiz Gonzaga, próximo a Bacabal, entes conhecido como Ipixuna.
Tinha eu aproximadamente doze anos e trabalhava
como “caixeiro” na quitanda do citado senhor José Januário e Dona Chiquinha,
durante todas as manhãs, de segunda a sábado, e já tinha até pedido um vale
para pagar o ingresso, muito embora tenha sido aconselhado pelo amigo “Zé
Diabo” a “varar”, ou seja, entrar sem pagar, contornando a cerca de madeira e,
disfarçadamente, aproveitando o matagal ao fundo, juntar-se aos distraídos
espectadores.
Era assim que fazíamos nos circos, onde era muito
mais difícil e, ainda, corríamos o risco de sair puxado pelas orelhas sob os
gritos de “varou”! “varou”!
Eu não quis correr o risco até porque a menina que
eu queria namorar, colega de turma no Grupo Escolar Gomes de Sousa, morava ali
pertinho. E se ela visse?
Nessa época existiam na cidade apenas duas praças
esportivas, chamadas não de estádios, como atualmente, mas de “campos” – o
Campo do Itapemirim, metade grama, metade areia; ali para o lado da Construpan,
e o Campo do RENNER, assim mesmo com dois “enes”, localizado no caminho grande,
um pouco antes de onde é o estádio atual, palco escolhido para a grande batalha
programada para o domingo que se avizinhava.
Eu nunca fui um craque, mas já nesse tempo jogava
no time da Rua da Boiada que tinha como rival mortal o time da Rua da Bica.
Minha posição era a menos disputada – eu era goleiro!
Na cidade existiam dois times grandes – O NAUTICO
ESPORTE CLUBE, que ostentava um dos uniformes mais lindos que já vi, nas cores
auriazul (um amarelo- ouro, com uma listra larga e horizontal azul-marinho à
altura do peito); e o RENNER FUTEBOL CLUBE, este com camisas brancas e uma
listra diagonal verde-folha que se estendia do ombro à cintura, que lembrava
muito no formato o atual uniforme do Vasco da Gama.
O Náutico Esporte Clube tinha sua sede na casa de
Dona Graciete Cassas, talvez porque um de seus craques, o ponta esquerda Leônidas,
era seu esposo. A sede do Renner Esporte Clube eu não consigo lembrar agora.
Nem sei se tinha, na verdade, sede esportiva, mesmo improvisada.
Ouvindo craques da época cheguei à conclusão que a
origem no nome Náutico Esporte Clube advém do clube homônimo do futebol
pernambucano que se popularizou aqui graças a grande penetração da Rádio Clube
de Pernambuco, cujo sinal chegava por aqui com muita potência e qualidade e era
captado à noite, quando tinha energia, pelos poucos aparelhos de rádio AM
existentes na cidade.
Já o Renner Futebol Clube tem uma origem mais intelectualizada,
pois a palavra tem raiz germânica e significa “Mensageiro a Cavalo” ou
“Corredor”, com estreita ligação com a arte guerreira, a exemplo do Arsenal
Futbool Club, esquadrão inglês. Deve ter sido encomendada a algum dos vários
letrados da cidade.
Chegou, enfim, o grande dia da batalha final. Logo
depois do almoço vesti minha camisa branca de farda, que tinha as letras “GS”
bordadas em azul-marinho na parte superior do bolso esquerdo, e uma calça curta
de mescla azul – minha melhor indumentária – e sai rumo ao campo!
Segui pela Rua Boiada com destino ao Caminho Grande
e logo à frente, depois do então Armazém Santo Expedito, maior comercio da
cidade, de propriedade do saudoso senhor Raimundo Sousa, local onde hoje fica a
Creche Municipal, encontrei a turma do time da Rua da Boiada, que vinha em
sentido inverso, e todos seus integrantes com as mãos e os bolsos cheios de
chupas de laranja destinadas a recepcionar o caminhão de carroceria aberta que
trazia a delegação visitante. Sempre era assim!
Juntei-me a eles e ficamos debaixo das mangueiras,
logo no início do Caminho Grande onde, posteriormente foi construída uma praça,
preparados o para o ataque que não se demorou para ser iniciado.
Foi só o caminhão aparecer que o bombardeiro
implacável se iniciou com uma gritaria ensurdecedora, como um ataque de índios.
Seguimos o caminhão até à entrada do campo e lá nos dispersamos. Uma parte entrou
pelo portão do campo, pagando sua entrada e outra direcionou-se para um caminho
alternativo, rumo à então olaria do senhor Venâncio, para iniciar as estratégias
de entrar desapercebida pelo matagal existente na parte posterior campo.
Os expectadores se aglomeravam na parte frontal da
praça esportiva, num espaço entre as cercas dos quintais das residências
localizadas em frente ao campo e a beira do gramado. Ali existiam algumas amendoeiras
que aliviavam do sol escaldante daquele domingo de agosto.
Os jogadores iam chegado isoladamente, sendo que a maioria
vinha de bicicleta, alguns já devidamente equipados e outros que se vestiam ali
mesmo à beira do gramado. O time adversário já estava devidamente preparado e,
por segurança, se postou na parte oposta do campo, logicamente longe da torcida
adversária.
O jogo estava prestes a começar e técnico da
seleção de Itapecuru Mirim, Seu Emetério Silva, o barbeiro mais conceituado da
cidade e pai de dois dos atletas da seleção – Leônidas e Manin, dava as últimas
instruções táticas a seus pupilos.
Enquanto isso eu assistia a um desafio feito pelo
Gavetão, irmão do Dico Pé de Gia, também jogador da seleção, que apostara com
um amigo seu que conseguiria comer cinquenta pasteis de carne sem beber água.
Ele já estava no trigésimo e de seus olhos brotavam lágrimas arrependidas, mas
ele enfiando mais um pastel na boca, fazia gestos que ia conseguir chegar lá.
Ouvi dois silvos longos do apito do árbitro da
partida e corri para posicionar-me melhor pois a partida ia começar.
Lembro-me de alguns jogadores da seleção de
Itapecuru Mirim que, nessa ocasião usava o uniforme amarelo e azul do time do Náutico
Esporte Clube.
O goleiro era “Lourival”, irmão do professor João
da Cruz Silveira, que morava no Rio de Janeiro e passava férias na sua cidade
natal. Fez defesas memoráveis nesse jogo, inclusive defendendo uma bola quase
indefensável chutada por um jogador adversário que tinha o sugestivo apelido de
“canhão”.
Na defesa lembro do famoso beque central “Belisca”,
um zagueiro respeitado em toda região, que mesmo com a sua baixa estatura era
uma barreira quase intransponível para os atacantes contrários. “Manin”, pai do
nosso amigo José Augusto Silva, atuava na lateral esquerda. Era dotado de uma
técnica apurada e realizava quase sempre preciosas assistências para seu irmão Leônidas,
pela esquerda. Completava a defesa, o lateral esquerdo “Nogueira”, que não
tinha lá muitos dotes técnicos, mas funcionava como um verdadeiro espanador na
proteção de sua área e compensava a baixa estatura do seu companheiro Belisca.
No meio campo, outro irmão do professor João da
Cruz da Silveira, o “Zé Baiano”, um homenzarrão de quase dois metros, que não
levava desaforo pra casa e quando errava a bola tirava o jogador adversário de campo.
Nesse jogo dois saíram nessas condições e tiveram que ser substituídos. Do seu
lado direito um jogador magérrimo e muito alto, exímio cabeceador, conhecido
como “Seu Vá” e, do lado esquerdo, atuava um jogador de pernas tortas apelidado
de “Pé de Gia”, completando o meio de campo.
No ataque da seleção itapecuruense, lembro bem do “Leônidas”,
ponta esquerda, que, com as devidas vênias, lembrava muito o Zagalo da seleção
brasileira e, pela ponta esquerda atuava “Zé Araújo”, irmão do Belisca, famoso por seus potentes petardos
que, em determinado jogo chutou uma bola tão forte que quebrou o travessão de
madeira lavrada de uma das traves do campo, resvalou rumo à bandeirinha de
corner e, literalmente, dobrou ao meio uma bandeja de flandres que um garoto
usava para vender cocada.
Essa proeza é lembrada até hoje pelos desportistas
daquela época e/ou seus descendentes. Ressalte-se que naquele tempo ainda não
se usavam as “redes de malha” para reter as bolas que ultrapassam a linha
fatal. No meio dos dois, como pivô, estava craque do time, um jogador fantástico
chamado “Batatinha”, irmão do atual prefeito de Itapecuru Mirim, Miguel
Lauande. Batatinha chegou inclusive a ser contratado pelo Maranhão Atlético
Clube de São Luís, jogou algumas partidas, mas a saudade de sua terra natal e
das peladas sem rigores técnicos não o deixaram seguir carreira.
Batatinha, nesse jogo, fez miséria; com seus
dribles desconcertantes à lá Mané Garrincha. Entortava os defensores
adversários de forma humilhante. Fez, inclusive, o único gol da partida,
cobrando um pênalti que gerou reclamações e uma briga generalizada, onde até
sobrou para o árbitro da partida, um senhor que morava na Trizidela e não
tirava sua faca peixeira nem na hora de apitar as partidas. Era conhecido por
não deixar os times de fora de Itapecuru Mirim sair com vitórias
Esse foi o jogo de minha vida, elevando-me da
categoria de um jogador medíocre (mediano) para um patamar superior de eterno
apaixonado pelo esporte bretão, como diriam os narradores e comentaristas
esportivos de antigamente.
Passei,
então, a acompanhar todos os jogos dos times de Itapecuru Mirim, mesmo quando
jogavam fora da cidade e éramos chamados pelas torcidas adversárias de
“Comedores de Vinagreira”, uma alusão à opulenta produção de verdura nas
vazantes das margens do Rio Itapecuru, até quando tive a oportunidade de ver um
jogo do Santos Futebol Clube, realizado no Estádio Nhozinho Santos, em São Luís,
em uma noite mágica do dia 05 de novembro de 1967, com a participação do “Rei
Pelé” e Companhia e cheguei ao céu do futebol.
Muitos desses artistas da bola, integrantes daquela
seleção mágica, já não estão entre nós e eu os saúdo, vivos e mortos, em nome
do craque Júlio Araújo, o Belisca, que continua firme e forte entre nós e
horando a memória de todos os futebolistas itapecuruenses.
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