Josemar
Lima
Série Crônicas – ano IV/nº 43 -
julho/2017
Era um início de noite do inverno de
1984 e eu saia da BR - 222 e entrava na estrada vicinal com destino ao povoado
“Felipa”, uma comunidade no interior de Itapecuru Mirim, cujos moradores são
descendentes de negros escravizados que ali encontraram um refúgio enquanto
fugiam das fazendas e engenhos de cana-de-açúcar existentes às margens do Rio
Itapecuru no limiar do século XII.
A estradinha estreita estava pontilhada
de poças d’água e, de quando em quando, uma mangueira a adornava com frutos
verdes e amarelos, caídos na última chuva forte.
São poucos quilômetros e, logo logo,
cheguei às proximidades do povoado onde residiam naquele tempo aproximadamente
trinta famílias. Eu estava a serviço do INCRA/MA, no processo de regularização
da terra que tinha sido desapropriada anos antes.
Era comum ouvir-se nesse horário o rufar
de tambores, principalmente quando a comunidade estava esperando algum
visitante e improvisavam um “Tambor de Mina” ou uma “Dança do Coco, ” mas aos
meus ouvidos chegavam um som diferente, como uma música cantada em coro, onde
se destacavam vozes femininas, de uma leveza inebriante e, estranhamente, sem
os usuais tambores. Lembrei-me de já tê-la ouvido ainda menino, enquanto tomava
chocolate quente em frente à residência de Dona Ana Júlia, uma quadra após o
Mercado Municipal, na direção do cemitério.
Cheguei ainda a tempo de aproximar-me da
pequena capela, acompanhado de Seu Bernardino, líder da comunidade, e observar pela
janela quase todas as mulheres da comunidade, adultas e crianças, cantando
contritamente a Ladainha de Nossa Senhora, tarefa que eles realizavam logo após
a Reza do Terço, durante nove dias seguidos, até chegar o dia do festejo da
padroeira. Esse era o terceiro dia!
A letra da música era de quase
impossível compreensão, mas a melodia e o ritmo davam àquele ambiente uma
atmosfera de paz e profissão de fé. Seu Bernardino me explicou que essa
louvação era feita desde os tempos dos escravos na língua que os padres antigos
utilizavam para rezar as missas e que ia sendo reproduzida de geração para
geração, até os dias atuais. Eles da comunidade não a sabiam traduzir, mas que
era uma canção dos anjos.
O termo ladainha se origina do grego e
significa súplica. Não qualquer súplica, mas aquelas que eram rezadas
coletivamente pelos fies. Quando a casa na qual morou Nossa Senhora, na
Palestina, foi transladada em 1291 para a cidade de Loreto, na Itália, a
novidade espalhou-se rapidamente, pois a oração passou a ser cantada
diariamente no Santuário e os peregrinos que de lá voltavam a espelharam em
todo mundo cristão. Daí a denominação de Ladainha Lauretana, por ter sua origem
na cidade italiana de Loreto.
A Ladainha de Nossa Senhora, mesmo sendo
cantada em latim, tem início com uma com uma evocação de um termo de origem
grega – “Kýrie Eleison,” que significa “Senhor, tende piedade” é também uma oração cristã, e está presente
na Bíblia, no Salmo 51. O termo grego “kyrios” – Senhor equivale,
genericamente, à divindade.
Kýrie Eleison tem origem nas comunidades
cristãs de Jerusalém, e também no século V, com os romanos. Era evocada no
início da missa em alternância a “Christe Eleison” e também era utilizada nas
liturgias de várias outras religiões, não apenas a católica, mas também das
igrejas anglicanas, ortodoxas e luteranas. Com a reforma litúrgica a igreja
católica a substituiu por “Senhor, tende piedade”, no ato penitencial.
É curioso observar que no início das
ladainhas, as invocações não se dirigem à figura de Nossa Senhora, mas a Nosso
Senhor e à Santíssima Trindade:
KÝRIE, ELÉISON. (Senhor, tende piedade
de nós)
CHRISTE, ELÉISON. (Jesus Cristo, tende
piedade de nós)
KÝRIE, ELÉISON. (Senhor, tende piedade
de nós)
CHRISTIE, AUDI NOS. (Jesus Cristo,
ouvi-nos)
PATER DE CAELIS DEUS (Deus pai dos céus)
- MISERÉRE NOBIS (Tende piedade de nós)
FILI REDÉMPTOR MUNDI DEUS (Deus filho,
redentor do mundo)
SPIRITUS SANCTE DEUS (Deus, Espírito
Santo)
SANCTA TRÍNITAS, UNUS DEUS (Santa
Trindade, que sois um só Deus)
Após essa introdução da Ladainha,
seguem-se três invocações, nas quais estão presentes o nome da Virgem Maria e a
lembrança dos seus principais privilégios - Ser Mãe de Deus e Virgem das
virgens:
SANCTA MARIA – ORA PRO NOBIS (Santa
Maria, rogai por nós)
SANCTA DEUS GÉNETRIX (Santa Mãe de Deus)
SANCTA VIRGO VÍRGINUM (Santa Virgem das
virgens)
A seguir, um grupo de invocações para
celebrar e honrar a maternidade e a virgindade:
MATER CHISTI (Mãe de Jesus Cristo)
MATER DIVINAE GRATIAE (Mãe da Divina
Graça)
MATER PURÍSSIMA (Mãe puríssima)
MATER CASTÍSSIMA (Mãe castíssima)
MATER INVIÓLATA (Mãe Imaculada)
MATER INTEMERÁTA (Mãe intacta)
MATER AMÁBILIS (Mãe amável)
MATER BONI CONSÍLII (Mãe do bom
conselho)
MATER CREATÓRIS (Mãe do criador)
MATER SALVATÓRIS (Mãe do salvador)
VIRGO PRUDENTÍSSIMA (Virgem prudentíssima)
VIRGO VENERÁNDA (Virgem venerável)
VIRGO PRAEDICÁNDA (Virgem louvável)
VIRGO POTENS (Virgem poderosa)
VIRGO CLEMENS (Virgem benigna)
VIRGO FIDÉLIS (Virgem fiel)
Em sequência vêm as figuras simbólicas
e, finalmente, as evocações à misericórdia de Deus:
SPÉCULUM JUSTÍTIAE (Espelho da justiça)
SEDES SAPIÉNTIAE (Sede da sabedoria)
CAUSA NOSTRAE LAETÍTIAE (Causa de nossa
alegria)
VAS SPIRITUALE (Vaso espiritual)
VAS HONORÁBILE (Vaso honorífico)
VAS INSÍGNE DEVOTIÓNIS (Vaso insigne de
devoção)
ROSA MÝSTICA (Rosa mística)
TURRIS DAVÍDICA (Torre de Davi)
TURRIS EBÚRNEA (Torre de marfim)
- ORA PRO NOBIS (Rogai por nós)
DOMUS ÁUREA (Casa de ouro)
FOEDERIS ARCA (Arca da aliança)
LÁNUA CAELI (Porta do céu)
STELLA MATUTINA (Estrela da manhã)
SALUS INFIRMÓRUM (Saúde dos enfermos)
REFÚGIUM PECCATÓRUM (Refúgio dos
pecadores)
CONSOLÁTRIX AFFLICTÓRUM (Consoladora dos
aflitos)
AUXÍLIUM CHRISTIANÓRUM (Auxílio dos
cristãos)
REGINA ANGELÓRUM (Rainha dos anjos)
REGINA PATRIARCHÁRUM (Rainha dos
patriarcas)
REGINA PROPHETÁRUM (Rainha dos profetas)
REGINA APOSTOLÓRUM (Rainha dos
apóstolos)
REGINA MARTÝRUM (Rainha dos mártires)
REGINA CONFESSÓRUM (Rainha dos
confessores)
REGINA VIRGINUM (Rainha das virgens)
REGINA SACTÓRUM ÓMNIUM (Rainha de todos
os santos)
REGINA SINE LABE ORIGINÁLI CONCÉPTA
(Rainha concebida sem pecado)
REGÍNA SACRATÍSSIMI ROSÁRII, REGÍNA
PACIS (Rainha do santíssimo Rosário, Rainha da paz)
AGNUS DEI, QUI TOLLIS PECCÁTA MUNDI
(Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo)
PARCE NOBIS, DÓMINE (Perdoai-nos,
Senhor)
AGNUS DEI, QUI TOLLIS PECCÁTA MUNDI,
EXÁUDI NOS, DÓMINI (Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, ouvi-nos,
Senhor)
AGNUS DEI, QUI TOLLIS CACCÁTA MUNDI,
MISERÉRE NOBIS (Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade
de nós).
Transcrevi aqui toda a Ladainha de Nossa
Senhora, com a devida tradução do latim para o português, porque ainda é muito
presente em nossas comunidades rurais, principalmente as mais tradicionais e,
creio que também nas Congregações, o uso das novenas e o cantar coletivo das
ladainhas.
Tenho agora a quase certeza de onde
surgiu a inspiração para que a família BERFORD denominasse o seu castelo na
Irlanda de “KÝRIE” e mais tarde um de seus descendentes – LOURENÇO BELFORT,
católico fervoroso, também utilizasse o termo aportuguesado de “Kelru” para a
sua fazenda localizada às margens do Rio Itapecuru e mantida até os tempos
atuais pela “Família Lima” que, louve-se, conserva preservadas a Casa Grande e
a Capela de São Patrício, padroeiro da atual República da Irlanda. Nessa capela
existe um quadro com a imagem de São Patrício trazido da Irlanda que, mesmo
depois de algumas restaurações, é uma relíquia de inestimável valor histórico.
Finalizando faço um apelo ao nosso
renomado cantor lírico e arte-educador itapecuruense, SILAS GOMES, para que
incorpore o canto da Ladainha Lauretana de Nossa Senhora, cantada em latim, ao
seu repertório, e também à grade curricular de seus alunos, até porque a
“Ladainha de Nossa Senhora”, a exemplo da “Ave Maria de Gounod”, também
interpretada em latim, já se tornou quase que uma louvação ecumênica e, assim,
esse fragmento da cultura religiosa mantido vivo por aqui poderia de forma
permanente se incorporar ao capital cultural itapecuruense.
JOSEMAR SOUSA LIMA é economista, com
especialização em Desenvolvimento Rural Sustentável e membro da Academia
Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes – AICLA.
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