Josemar Lima SÉRIE CRÔNICAS – ANO V/nº 52/2018
Eram os
primeiros anos da década de 70! Itapecuru Mirim vivia um tempo de efervescência
cultural que não percebíamos a real dimensão naquele momento.
A Escola
Normal Regional Gomes de Sousa, hoje Colégio Leonel Amorim; e o Colégio
Bandeirantes, ambos de nível ginasial, possuíam quadros de professores com
grande acervo intelectual, verdadeiras referências para seus alunos.
O Clube
de Jovens de Itapecuru Mirim, por outro lado, mobilizava a juventude
itapecuruense para eventos de aprimoramento de suas vidas, tanto no campo
social como político. A atuação de formação política era tão intensa que o
Clube de Jovens de Itapecuru Mirim chegou a ter dois vereadores de seu quadro
de sócios eleitos numa mesma legislatura – Nato Lopes e o saudoso Toninho do
Bispo.
Foi num
desses eventos, festa de premiação dos vencedores dos 1ºs Jogos Estudantis
Itapecuruenses, que uma moça alta, morena, cabelos lisos, negros e de olhos
grandes, arredondados como um fruto verde de macaúba, declamava no palco do
Itapecuru Social Clube, lotado de alunos eufóricos dos dois colégios concorrentes,
um poema escrito por um desses aprendizes de feiticeiro, que achavam que podia
virar poeta mesmo.
O
professor Raimundo Nonato Ferraz, exímio conhecedor da língua pátria e meu
professor no quarto ano do curso ginasial na antiga Escola Normal Regional
Gomes de Sousa, sempre dizia que toda pessoa nascida em Itapecuru Mirim tem a
sina de escrever pelo menos um poema nas diversas e múltiplas etapas de suas
vidas, mesmo que nunca tenha a coragem de apresentá-lo para alguém ou em
público. E ele tinha lá suas razões!
O poema, que se intitulava “Caneca”, começava sua
primeira estrofe com os seguintes versos:
“Caneca
nasceu em cama de pau com defumador e foguetes
Teve
camisinha bordada e bebeu angu de farinha
Batizou-se
em capela com padrinho sério
De
dinheiro, coronel
Foi
menino
Traquina
E sem
mimo
Foi mais
– rapaz inteligente
Prá
frente
Decente
Mas não
foi inocente
Bebeu
Fumou
E pela
cachaça se apaixonou (...)”
Era um
poema livre e longo que contava em versos toda a trajetória tortuosa de um
jovem alcoólatra, desde o seu modesto nascimento, até sua trágica e quase despercebida
morte. Esse personagem realmente existia e vagava diuturnamente pelas ruas da
cidade.
Durante o
dia era encontrado frequentemente na Casa São Pedro, um comércio de secos e
molhados como se dizia à época, localizado na Avenida Brasil e de propriedade
do conhecido comerciante e amante da arte de recitar poemas de Bilac, Jamil
Mubarak. Jamil é um dos remanescentes das famílias do mundo árabe que se
instalaram em Itapecuru Mirim a partir do século XIX, contribuindo para o
desenvolvimento econômico da região e, quase sem exceções, todas fizeram
fortuna.
Fiquei
sabendo nessa semana que esse prédio, juntamewnte com a sua casa redidencial
serão demolidos para que no local seja edificado um moderno prédio comercial. É
a cidade se renovando e fica em nossa memória uma referência do chamado
comercio de secos e molhados de Itapecuru Mirim, o útimo de tantos e tão
importantes mantidos pelos sírios e libaneses - os carcamanos! Quem não já
ouviu falar da famosa Rua do Egito?
Mais que
isso: A Casa São Pedro, por localizar-se no coração da cidade, na esquina mais
viva da Avenida Brasil com a Avenida Gomes de Sousa, foi testumunha de quase
todos os fatos e eventos relevantes que aconteceram na cidade desde meados do
século XX.
Era
também um local preferido para as conversas de final de tarde entre seu
proprietário e pessoas de vários segmentos sociais e, ainda, guardava em si
vários objetos antigos que contam um pouco de nossa história. Ele – o Jamil -
sempre foi conhecido por gostar de comprar quinquilharias!
Caneca,
eu nunca soube o seu verdadeiro nome, era um jovem de estatura mediana, pele
morena, cabelos lisos, não tinha mais que trinta anos, mas aparentava ter
cinquenta ou mais. Seu rosto de pela amarelada e sempre opado dava uma
impressão de velhice precoce.
Certa
ocasião, quando me dirigia pela manhã de casa para o meu posto de trabalho na
Prefeitura Municipal, tive a oportunidade de encontrá-lo em um dos bancos da
praça Gomes de Sousa, logo à frente do prédio da Prefeitura.
Ele, pela
expressão, acabara de acordar e já se preparava para sair para a Casa São Pedro,
quando o abordei. Eu sempre tive curiosidade em saber detalhes sobre as poesias
que ele recitava quando a embriaguez lhe roubava toda a cerimônia. Ele, quando
sóbrio, situação pouco usual, praticamente não falava com ninguém.
Mostrou-se
arredio e não quis alongar aquela incômoda conversa, que se reduziu a uma
simples e singela saudação.
Eu
desejava apenas saber a origem do apelido “Caneca” e, se fosse possível,
extrair dele alguma informação adicional sobre os poemas que ele declamava.
Colegas meus do quarto ano ginasial da Escola
Normal Regional Gomes de Sousa, numa oportunidade em que não houve a aula
programada e nos reunimos para contar lorotas, protegidos pela sombra de um
grande pé de azeitona existente no pátio interno do colégio, comentaram
jocosamente sobre as declamações feitas por Caneca lá na esquina da casa do Seu
Jamil.
Era um
poema dedicado a uma sua musa da adolescência, chamada “Maria”, residente em um
povoado do interior do município de Presidente Vargas.
Mas os versos, enigmáticos, não diziam muito. Indicavam,
entretanto, para uma desilusão amorosa que ainda sangrava:
“Maria!,
Maria!, Mariaaa! ...
És a luz
das minhas noites
E
escuridão dos meus dias”.
Sobre o
seu apelido, as informações foram de que ele crescera em um engenho de cana
onde seu pai trabalhava na produção de cachaça e rapadura. Mesmo com tenra
idade ajudava-o em todas as atividades diárias.
Tinha,
entretanto, uma predileção que se tornou um vício incontrolável: Ficar com uma
caneca branca esmaltada, já agora amarelada pelo tempo e creia de cicatrizes
arroxedas, esperando para aparar e beber o “caxixi”, resíduo final de processo
de destilação da cachaça, expelido pelos alambiques e com pouco teor de álcool.
Ele foi
crescendo e a caneca sempre recebendo aguardente de cana cada vez mais forte.
Antes de
fugir do engenho já era consumidor assíduo da cachaça inicial do alambique,
chamada de “cabeça”, quase álcool puro!
E sempre
usando sua caneca de estimação!
A moça
linda e de traços árabes, que declamava a poesia, era conhecida e querida
demais na cidade pelas suas vinculações com as artes e de trato alegre e
afável. Refiro-me à Cidinha Buzar, falecida precocemente há alguns anos atrás.
Que Deus a Tenha!
E ela,
desapercebida de todo aquele burburinho juvenil, com a voz rouca que que lhe era
peculiar, concluía assim o longo poema:
“Caneca
deitou, cochilou
E a morte
o levou
Sem
padre, sem vela, sem fita amarela
Sem
deixar herança que gera trapaça
Não
precisou caixão
Um buraco
no chão e pronto
Caneca
está pronto
Pode
viajar
Prá outro
lugar
Sua vida
acabou
Sua sede
também
Caneca?
Caneca?
Partiu
pró além
Fez bem!
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