Josemar Lima Série Crônicas – ANO IV/nº 38/2017
Numa tentativa de recuperá-lo de seus
dois ou três principais vícios, o então prefeito de Itapecuru Mirim, Nonato
Cassas, contratou-o como vigia noturno da Praça Gomes de Sousa. Ali, sentado
nas escadarias do monumento do ilustre conterrâneo, ele contava para uma
plateia de adolescentes que prá lá se deslocavam todas as noites para o famoso
mingau de milho de Dona Domingas, e para
ouvir atentamente as suas mais emocionantes estripulias da arte que levou à
cruz Dimas e Gestas, no mesmo dia da crucificação de Jesus, igualmente
condenados por Pilatos.
““Eu era um desses que não perdia as
estórias contatadas pelo” famoso” Homem Branco, nos seus raros momentos de
sobriedade.
Ele dizia que todas as estratégias e
táticas adotadas em suas incursões noturnas, com algumas inovações que ele
mesmo introduzia, aprendera no período que esteve a serviço do exército
brasileiro, versão que muito tempo depois foi desmascarada quando ele teve que
apresentar a documentação para registro de empregado e o seu certificado era de
dispensa de incorporação, Reservista de Terceira Categoria.
Quando o conheci, na década de 70,
aparentava ter uns quarenta anos e era de estatura mediana. Moreno claro,
cabelos lisos, falava bem o português e até arranhava palavras em castelhano,
que dizia ter aprendido quanto estivera uma semana em Buenos Aires, numa
excursão de uma corveta da Marinha. A única palavra que eu o ouvir pronunciar
em espanhol foi “mujer”, onde ele substituía o “j” por dois “r”, acertadamente.
Depois fiquei sabendo por um tio meu que também gostava da pinga, que essa
palavra ele tinha ouvido assistindo a um filme cowboy, onde um bêbado
apaixonado imitava as músicas do argentino Carlos Gardel.
Soube também de algumas manias que o
nosso personagem cultivava: Só fazia suas refeições se fossem servidas em um
prato de esmalte e uma colher enferrujada que ele mantinha como lembrança de
uma incursão malsucedida a um hotel em Teresina, onde a colher e o prato tinham
sido os dois únicos produtos de uma operação planejada com muitos meses de
antecedência.
Se sua pobre mãe por esquecimento o
servisse de outra forma quando ele chegava alcoolizado, ouviam-se imediatamente
os berros:
-
Mãe, quero meu prato de esmalte e minha colher enferrujada!
Essa, na verdade, era uma marca
registrada de suas empreitadas; geralmente terminavam mal, para o vilão, tal
qual acontece no desenho animado do Coyote e Papa-Léguas. As armadilhas
arquitetadas pelo Coyote sempre se voltam contra ele próprio.
Certa noite, sempre no mesmo local e com
a mesma plateia, contou as presepadas de uma operação na Farmácia de Seu
Orlando Mota, que se localizava na Avenida Gomes de Sousa, em frente ao Colégio
Mariana Luz.
Era uma noite chuvosa e já passava da
meia noite quando ele escalou o muro da residência onde também ficava o
estabelecimento comercial. Não teve dificuldades, pois levou dois belos bifes
para distrair os cachorros.
Subiu no telhado e com cuidado deslocou
algumas telhas de fabricação artesanal, serrou uma ripa entre dois caibros e
desceu para cima da parede de sustentação do teto. Daí para o assoalho de
ladrilhos vermelhos onde ficava o balcão da farmácia e a gaveta sem trancas
onde era guardada toda a feira do dia, era uma altura de quase quatro metros,
situação que ele já verificara anteriormente quando, disfarçadamente, ali
adentrou com a desculpa de comprar um envelope de Melhoral.
Ele tinha planejado detalhadamente como
descer daquela altura sem usar escada ou cordas. Recorreu, então, a uma das
técnicas que dizia ter aprendido na carreira militar: tirou dos bolsos duas
barras do Sabão Martins, o mais famoso sabão da época em que sabonetes eram
para ricos; e que tinha como reclame, como são clamados os anúncios de
propaganda atuais, “Uma Mão Lava a Outra; Sabão Martins Lava das Duas” e, com
um barbante, fixou-as sobre o solado das botas de vigia da prefeitura.
Segundo sua teoria, as barras funcionariam
como potentes amortecedores para seus pés e evitariam qualquer ruído que
pudesse despertar Seu Orlando Mota, considerado o médico da cidade, grande
tribuno, cuja característica era ir aumentando o tom da voz paralelamente ao
desenvolvimento do discurso, e conhecido pelas suas respostas ácidas à
perguntas idiotas ou inocentes como aquela que fizera uma senhora:
- Seu Orlando faz mal tomar leite com
catarro? A resposta veio com gosto de gás! – Se o seu estomago suportar, tome!
Voltemos ao Homem Branco, conhecido
assim, por tratar todo mundo do sexo masculino como homem branco, para ele os
indivíduos não tinham nome, sempre era “homem branco”! As mulheres ele as
chamava de “Damas”.
Nós o deixamos preparando o pulo de uma
parede com aproximadamente quatro metros de altura, com duas barras de sabão
sob as botas sete léguas e, ainda, com uma vela em uma das mãos. O salto foi
espetacular e, como planejado, o sabão amorteceu a queda e o ruído foi mínimo.
Depois e esvaziar as gavetas, pegar alguns vidros de remédios nas prateleiras,
tirou a trava de uma das portas e saiu tranquilamente com destino ao seu
casebre que se situava na Trizidela.
Na manhã seguinte a notícia espalhou-se
pela cidade e chegou até ao delegado de polícia que imediatamente convocou um
guarda para ir até a casa do suspeito. Quando o emissário bateu à porta a mãe
do Homem Branco já foi saindo com um maço de notas nas mãos e uma bacia de
barro com vários frascos dentro e pendido chorando para não levarem seu filho
preso pois ele se encontrava muito doente.
O guarda entrou na pequena casa e lá no
quanto encontrou o bandido trapalhão deitado sobre uma esteira de palha de
babaçu e, junto a ele, vários frascos de “Regulador Xavier”, um medicamento
indicado para quando as regras das mulheres atrasavam, mas que continha um alto
teor de álcool. Homem Branco torcia-se de dor nas cadeiras e, dessa vez,
livrou-se da prisão.
Outra estória que ele contou referia-se
ao roubo dos castiçais que ele fizera da Igreja Matriz de Nossa Senhora das
Dores, segundo ele com autorização prévia de São Benedito, após uma conversa
franca que travara com santo ...
A última vez que o vi estava
completamente embriagado e falava mal do prefeito que o tinha despedido do
emprego só porque ele teve a brilhante ideia de deixar apenas uma lamparina em
seu lugar na praça e trocar o rifle do patrimônio da prefeitura por seis litros
de conhaque São João da Barra.
Assim era “Homem Branco”, uma figura
folclórica que vagou por muitos anos pelas ruas de nossa cidade e ajudou a
compor um mosaico de estórias e dramas do nosso tempo.
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