Série Contos
Itapecuruenses de outrora.
Daniel Ribeiro.
A tarde cai sobre Itapecuru,
o sol despede-se em mais uma de suas belas pinturas. Da margem direita do rio a
velha senhorinha enche os olhos de lágrimas; emocionada ao lado dos seus netos,
que sempre ao final da tarde reuniam-se na Avenida Beira Rio, ali próximo das
antigas rampas para ouvir suas histórias.
Maria Deolinda da
Conceição morava há mais de quarenta anos no mesmo endereço, herdara uma casa
de seus pais, comprada com muito esforço por senhor Doca, seu velho pai, um
antigo estivador que trabalhava no transporte de cargas das balsas, aquelas a
vapor que desciam da capital para interior pelas águas do Rio Itapecuru.
Sabedora dos fatos mais
marcantes de sua cidade teimava com qualquer um que afirmasse, a maior cheia do
Rio Itapecuru tinha sido a de mil novecentos e setenta e quatro (1974) ou a de
mil novecentos e oitenta e seis (1986).
— Papai atravessava
gente na canoa, ali do comércio da Helena até o
“arto” depois do Luiz da Chiquita.
— “Marminino” quer
dizer que “ocês” mais novo que eu, querem teimar.
Seus netos adoravam
tirar do sério sua adorada vovó, sempre muito vaidosa e de memória bem viva
para os seus já quase noventa anos.
Continuava a perfumar-se
e pentear os cabelos com todo capricho, como nos velhos tempos do festejo de
Nossa Senhora das Dores, festividade que movimentava a cidade de Itapecuru,
muita gente de fora, feirantes de toda parte, enfim, segundo a velha era a
festa do ano.
— Lá vem Deolinda falar
de sua vaidade, nos seus tempos de nova, mulher “sorteira”, pisava muito por
tudo que é canto de Itapecuru, seu querido neto André.
— Na festa da padroeira
tinha muita coisa boa, a feira ao redor da igreja, onde fazíamos as compras da
“ropa,” de ano logo.
— No tempo de “padi”
Albino era muito animado os festejos.
— “Oia” tinha até festa em tudo que é canto.
Pau furado ali “pros” lado do Caminho Grande, “morça sorteira” não saia
sozinha. Papai cuspia no chão esperando eu e minha irmã Noca chegar das missas.
A velha Deolinda sempre
saudosista falava com entusiasmo e um amor sem igual por sua cidade, porém
também retrava os tempos difíceis de sua família e a sua infância pobre.
— Quando “nóis” era
menina, mamãe levava a gente pra lavar “ropa” nas pedras aqui na margem do rio,
descíamos a rampa construída pelos “nossos” no passado, os antigos escravos.
— Nóis é que lavava
pras gente rica da cidade, isso ajudava na despesa da casa.
— Mamãe contava que nossa
tataravó Binoca era filha de escravos, nagô das “banda” d’África.
Mesmo sem nenhuma
instrução a anciã da família Conceição carregava consigo um conhecimento vasto
de sua cultura. Adquirida ao longo da convivência com seus avôs e seus pais.
— Já moça “nóis”
banhava no rio, “os rapaz” ficava tudo de tocaia nos mato pra espiar, vigia,
eita tempo...
— Água pra “mode” nos
beber era da fonte da Miquilina, dava era fila de manhã cedo, mamãe acordava eu
e a finada Noca as cinco hora da matina, “barde” na cabeça.
— A finada Maria
Miquilina, uma veia que tomava de conta. E aí de quem cortasse um pé de mato ao
redor da fonte, ou a sujasse, ela ficava braba e caia de chicote.
Dona Deolinda casara
duas vezes e teve seis filhos dos dois casamentos. Considerava-se uma mulher
feliz e realizada ao ver a família reunida nos almoços de domingo.
Vez ou outra se mirava
no espelho e via a jovem de quadris largos, seios fartos, cintura bem afinada.
Lembrava com muito orgulho de sua mocidade tirava atenção dos rapazes da época.
— Eu nunca “gustei” de
“rapozala”, arrumei logo dois cabras mais velhos que eu.
— O finado Martiniano
das bandas do Kelru, devoto de São Patrício que não sei donde preto é devoto de
santo de branco.
Seus netos riam do tom sempre bem humorado da
senhorinha, estavam acostumados e sabiam que era uma forma alegre e
descontraída dela relembrar seu passado.
— O finado Bruno,
carpinteiro de mão cheia das bandas da Santa Maria dos Pretos.
— Ocês oia que sempre
fui apaixonada por gente da nossa cor, acho lindo o povo negro e sua fisionomia,
gestos, cabelo, tudo me atrai em nossa gente.
O orgulho era
imensurável por seus antepassados, carregava consigo o legado da história do
povo que muito lutou por liberdade na antiga Ribeira, isso enchia dona Deolinda
de altivez quando narrava aos descendentes sobre o Negro Cosme.
— Tutor e Imperador das
Liberdades, onde já se viu minha gente naquele tempo, receber um título de
nobreza dado por seus homens.
— O finado Lúcio um
velho que morava pros lados da Trizidela era neto do Barão, um negro que andava
com uma carta dada pelo Negro Cosme. Vê se pode. Dizia ter título de barão.
A forma didática
utilizada por dona Deolinda nunca antes aprendida em nenhum curso de pedagogia.
Encantava a quem escutasse suas longas narrativas.
— Meus filhos, o que
mais me admira nesse preto Cosme é que esse “tar”, Tutor das Liberdade,
inventou até escola pra preto no meio do Quilombo Lagoa Amarela ali pras banda
da Chapada das mulatas, oia vigia só.
Envaidecia-se toda vez
que contava os casos de Cosme Bento das Chagas. Era como se sua missão fosse
levar o legado do seu povo aos mais novos, filhos, netos, bisnetos e
descendentes. Deolinda sabia que a má fama imposta ao anti-herói, fora dada por
aqueles que afugentavam sua amada gente.
— Não acreditem no que
diz essas “cartilha,” “veia,” empoeirada nas escolas, que nosso negro era
bandido, assassino, pra “nóis” gente de cor, foi como dizia, o povo estudado da
nossa história, um mártir que lutou pela liberdade.
— “Veje” bem meus netos
tudinhos, escancha neto, essa terra que “nóis” tudo pisa é sagrada pra “mode”
nunca deixar morrer nossa memória.
Em si tratando de
Deolinda havia sempre de surpreender a todos com um fato ou outro que deixou de
ser exposto.
— “Ocês” querem saber
de uma coisa Itapecuru foi construída mesmo foi por braço de preto, suor dessa
gente forte, que resistiu ao cativeiro, e a toda má sorte de viver sob o
controle dos brancos.
Antes de partir dessa
para melhor, constituiu uma espécie de atlas histórico-cultural por ser fonte
de informações preciosas de sua cidade. Sua modesta casa continuou preservada
por seus familiares que continuavam a reunir-se e manter viva a memória de
Deolinda.
Contudo, a sua maior
herança deixada aos descendentes era o bem imaterial constituído de saberes
sobre Itapecuru e que agora seriam preservados e repassados a mais pessoas de
sua terra natal.
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