domingo, 4 de junho de 2017

O ÚLTIMO CARRO DE BOI




      


                                                                                               
                                                                                                                                SÉRIE CRÔNICAS – ANO IV/nº 42/2017

Josemar Lima

Ele vinha pela arenosa Rua da Boiada! A sua cantiga característica, uma espécie de chiado longo, percorria mais de trezentos metros e chegava bem primeiro aos meus ouvidos, antes mesmo dele aparecer ali no Largo da Trapiá, no início do Caminho Grande. (Trapiá era a denominação de uma casa de comércio de secos e molhados ali existente). Eu invariavelmente estava ali postado, pois tinha a tarefa de vigiar a Sapataria de meu tio Zé Félix e atender eventuais fregueses que desejassem comprar sapatos, tamancos, ou mesmo as alpercatas com solados de pneus de caminhão, as mais procuradas. Nesse tempo ainda não existiam as sandálias japonesas!

Os Carros de Boi originaram-se na Idade da Pedra e chegaram à Região da Ribeira do Itapecuru, em 1619, na memória de artesões açorianos que logo começaram a produzi-los para as atividades dos Engenhos de cana-de-açúcar que se instalavam às margens do Rio Itapecuru. Foi, com certeza, o primeiro e o principal veículo de transporte terrestre utilizado no nosso município no início da colonização.

Conta a lenda que a denominação povoado “Carro Quebrado” advém de um acidente em que ali um carro de boi atolou-se e quebrou o eixo sendo abandonado pelo seu proprietário. A partir daí os residentes na região quando queriam referirem-se ao local exclamavam: - Lá no Carro Quebrado! E assim ficou ...

O carro de boi original é composto por duas rodas grandes feitas de madeira de lei, com um anel de ferro circular que as protegem em toda extensão no contato com o terreno. A grade, ou carroceria, possui em média três metros de comprimento com um metro e meio de largura, com duas vigas laterais bem resistentes e uma terceira no meio, mais alongada, destinada a atrelar o carro às cangas, feitas também de madeira, com uma curvatura destinada a se encaixar perfeitamente no pescoço do boi, guarnecidas por pinos e correias de couro denominadas brochas.

É nessa viga central que se aloja o “carreiro, responsável  pelas atividades de manobras do veículo e manutenção dos bois em ritmo constante e sincronizado.

A carroceria é apoiada sobre um eixo talhado em madeira resistente que se encaixa em dois mancais laterais, pontos de apoio do eixo central. São da fricção do eixo sobre os mancais que reverberam os sons denominados “chiados” ou “cantigas”, característicos dos carros de boi.

Era essa cantiga que eu ouvia todos os dias, mesmo ante de divisar aquele veículo tão original. Via inicialmente os bois, geralmente duas juntas, quatro animais; dois à frente e dos mais atrás, tocados por um vulto de chapéu de couro e camisa de mangas compridas, sentado no início da grade central, com uma vara comprida às mãos e mais detrás de si, a carga transportada, quase sempre formada por toras de madeiras tostadas de fogo, de mais ou menos um metro cada uma, caprichosamente empinhadas uma sobre as outras, até uma altura que ultrapassava em muito os taipais laterais do carro. Essa madeira era destinada aos fornos das padarias locais.

Às vezes transportavam pedras, estacas de unha-de-gato, ou quaisquer materiais pesados para as construções no centro da cidade.

Quanto mais se aproximava do batente da porta da Sapataria, local preferido para eu ficar sentado, a cantiga produzida pelo carro se ampliava, quase como uma melodia de poucas notas, e eu podia ver com detalhes a figura de Seu Zé Paraibano ali sentado, fumando um enorme cigarro “pau ronca”, confeccionado manualmente com fumo de rolo e papel de embrulho e, ainda, observar que na extremidade daquela longa vara existia encaixada uma pontiaguda peça de metal que ele usava em estocadas quando os bois ameaçavam parar ou quando o carro atolava na abundante areia branca da rua.

Ele não parava de gesticular e, estranhamente, se dirigia aos animais de uma forma que denotava um certo carinho, mesmo que os açoitasse com aquele terrível ferrão, tratando-os pelos seus nomes de batismo ateu. – Ôhaa, Ôhaa ... Vamos “Branquinho”! ou Força “Boi Estrela”!

Seu Zé Paraibano residia em um sítio amplo, localizado logo no início do antigo Caminho Grande, uma área com muitos cajueiros e mangueiras. Era ali que ele residia em uma casa de taipa, coberta de telhas de barro, mantinha sua capineira para alimentação dos bois de carro e estacionava sua frota, composta de três carros de boi.

Ele sobrevivia dessa atividade em Itapecuru Mirim, creio que até, se não me engano, meados do ano de 1967.

Ele mesmo produzia seus veículos, com madeiras da região. As mais usadas eram pau d’arco, aroeira, maçaranduba e pau roxo.

O carro de boi pode ser puxado  por uma, duas ou mais junta de bois ou parelhas. Cada junta é formada por dois bois, que trabalham um do lado do outro, unidos pela canga.

Na Baixada Ocidental Maranhense, principalmente no município de Cururupu, ainda existem comunidades quilombolas que utilizam o carro de boi, na sua forma original, em suas atividades diárias de transporte de cargas pesadas.

Voltei a ver seu Zé Paraibano no final do ano de 1969, desta vez sem seu traje original de “carreiro”. Sem o chapéu de couro, sem a camisa de riscado, sem seu facão na cintura e, principalmente sem a sua tradicional vara de ferrão.

Era servidor municipal e um dia o recebi na Prefeitura, pois ele desejava falar com o Prefeito Municipal alguma coisa relacionada a sua saúde. Trajava camisa e calça brancas, tossia constantemente e trazia nas mãos uma toalha também branca que colocava sobre a boca toda vez que tentava falar. Quando falava um forte e desagradável odor se espalhava pela sala e não pude dissociar aquela imagem daquela que guardava até então de suas passagens diárias em seu carro de boi pela antiga Rua da Boiada e uma tristeza imensa se abateu sobre mim.

Pouco tempo depois soube do seu falecimento causado por uma doença quase que desconhecida naquela época em nosso município – Câncer na garganta!


JOSEMAR SOUSA LIMA é economista, com especialização em desenvolvimento Rural Sustentável e membro da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes- AICLA.

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