quinta-feira, 3 de maio de 2018

O ENGENHO DO LAGO ENCANTADO



     
 

CRÔNICA DE MAIO -  Série crônicas – ano V/nº 53/2018

Josemar Lima

A história da formação do município de Itapecuru Mirim está umbilicalmente vinculada aos Engenhos de Açúcar, sendo que o primeiro desses rudimentares estabelecimentos, denominado “Engenho do Itapecuru”, foi instalado na região por Antônio Muniz Barreiros Filho, quando exercia o cargo de procurador da Fazenda da Capitania do Maranhão, no ano de 1622. Foi esse o primeiro engenho que foi implantado em solo maranhense.

 Neste mesmo ano foi nomeado capitão-mor da Capitania do Maranhão e implantou outro engenho na embocadura do Rio Itapecuru, próximo à atual cidade de Rosário. Em 1642, tendo seus engenhos sido confiscados pelos holandeses, liderou uma rebelião contra os invasores, retomando os engenhos, infligindo derrotas memoráveis ao inimigo, vindo a falecer entrincheirado na Igreja do Carmo, em São Luís, aproximadamente um ano antes da vitória final. Essa história eu já contei em outra crônica!

 Essas primitivas fábricas de açúcar não passavam de simples molinetes (engenhocas) movidos por tração animal. A atividade se expandiu tanto que em 1641 já existiam na região cinco desses estabelecimentos produzindo, segundo escritos do Conde de Ericeira, aproximadamente 6.000 arrobas de açúcar mascavo, anualmente.

No Engenho do Itapecuru, pelas descrições localizado muito próximo da atual cidade de Itapecuru Mirim, região então ocupada pelos índios da etnia Tapuias/Uritís, aconteceu o primeiro ataque de silvícolas a padres missionários da Companhia de Jesus. A investida ocorreu em 28 de agosto de 1649 e resultou nas primeiras mortes perpetradas pelos índios aos padres jesuítas.

Foram trucidados os padres portugueses Francisco Pires, Manoel Muniz e Gaspar Fernandes, que se encontravam no referido engenho como tutores de Ambrósio Muniz Barreiros, filho menor de Antônio Muniz Barreiros Filho, que fez doação do engenho à Companhia de Jesus sob a condição dos padres assumirem a guarda e educação de seu filho. Esse lamentável episódio interrompeu as atividades dos jesuítas nas ribeiras do Rio Itapecuru e em toda a Província do Maranhão.

Ainda hoje existem na região réplicas dos Engenhos de Cana daquela época!

Lembro que nos primeiros anos da década de 70 eu e meus irmãos fazíamos viagens frequentes para o povoado “Nova Aurora” com o objetivo de comprar laranjas nos sítios existentes nas margens do Rio Itapecuru, para revendê-las na estação do trem e passávamos pelo povoado “Lago Encantado”, situado mais ou menos na metade do caminho.

Nesse povoado existiam uma grande plantação de cana-de-açúcar e um engenho pertencente ao Senhor José Januário da Silva, um norte-rio-grandense que tinha um comércio na cidade, localizado na Rua da Boiada, mas não abria mão das atividades rurais que exercera quando criança em sua terra natal.

Certo dia, numa dessas viagens, encontramos Seu Zé Januário, como era conhecido, montado em um boi-cavalo e se deslocando na mesma direção, mais precisamente para o povoado onde ficava seu engenho. Ele era muito amigo de minha mãe e, posteriormente, cheguei a trabalhar como cacheiro em seu comercio de secos e molhados.

Seguimos o boi-cavalo por um caminho que margeava sempre o Rio Itapecuru e, a certa altura da caminhada ouvimos surpresos e escondendo sorrisos com a palma da mão, Seu Zé Januário, que até então só falava com sua montaria, esboçar uma espécie e cantiga monótona e repetitiva:

“Vai chover, vai chover, vai chover...”

Realmente o tempo fechava quando nos aproximamos do povoado Lago Encantado. A chuva começou a cair forte para nossa alegria e, logo a frente, observamos que o boi havia parado sua caminhada e, numa manobra de cento e oitenta graus, agora estava de frente para nós.

 O cavaleiro, se podemos chamar assim, também quem usa um boi como montaria, usava um chapéu de palha de abas largas e trajava uma calça de caqui e uma camisa manga comprida de mescla azul. Estava todo ensopado! Ficamos espantado porque ele tinha a fama de matar cobra venenosa só com o olhar, mas dirigiu-se a nós com tom paternal fazendo um convite para irmos até o engenho tomar uma garapa.

Respondemos uníssono que sim, ajudamos a abrir uma porteira de paus roliços e seguimos rumo ao engenho de cana. Éramos só alegria pela oportunidade de esperar a chuva passar devidamente protegidos e ainda encher o bucho de garapa, quando a fome já começava a se manifestar.

Seguimos por uma estradinha que beirava um lago e logo após uma curva divisamos uma espécie de galpão coberto de palhas de babaçu, sem paredes laterais. Aproximamo-nos e fomos direto ao galpão onde se alojavam um alambique de cobre avermelhado e vários cochos de madeira cheios de garapa.

Nosso anfitrião nos informou que ali era o local onde se fabricavam a cachaça, a rapadura, o mel de cana e o açúcar mascavo, uma espécie de açúcar escuro produzido de forma artesanal.

O engenho ficava na parte externa junto a uma montanha de bagaço de cana para onde caminhamos maravilhados. Eu nunca tinha visto um engenho de perto!

Olhei para aquela imponente armação de madeira traçada feito uma cumeeira, com três engrenagens de madeira vermelha entrelaçadas por dentes afiados. Enquanto isso Seu Zé Januário chegava como dois bois já devidamente aparelhados com cangas também de madeira e os atrelou a uma das peças que pendia do alto.

Gritou num idioma incompreensível para nós e os animais obedientemente começaram uma caminhada em círculo, fazendo toda e estrutura tremer e as moendas emitirem uma espécie de gemido que iam se agudizando na medida que os caules de cana iam sendo triturados.

Nós, cada um com sua cuia de cujuba, começamos a aparar aquele caldo esverdeado e espumoso e nem o recipiente enchia já íamos bebendo gulosamente.

Foi uma viagem que nunca esqueci!

Agora, sabedor de que foi aqui no nosso município que toda a história do ciclo açucareiro do Maranhão começou, sinto como se tempo estivesse abrindo uma fenda no passado e recordo um poema da lavra do poeta piauiense Da Costa e Silva, intitulado “Moenda”, que li há alguns anos num livro que recebi de presente de uma colega de trabalho do INCRA, que residia em Teresina/Pi:

“Na remansosa paz da rústica fazenda,
à luz quente do sol e à fria luz do luar,
vive, como a expiar uma culpa tremenda,
o engenho de madeira a gemer e a chorar.

Ringe e range, rouquenha, a rígida moenda;
e ringindo e rangendo, a cana a triturar,
parece que tem alma, advinha e desvenda
a ruína, a dor, o mal que vai, talvez, causar ...

Movida pelos bois tardos e sonolentos
geme, como a exprimir, em doridos lamentos,
que as desgraças por vir, sabe-as todas de cor.

Ai, dos teus tristes ais, ai, moenda arrependida
- álcool para esquecer os tormentos da vida
- e cavar, sabe Deus, um tormento maior.



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