Os primeiros registros de batismo
(1813/1829).
A
freguesia de Nossa Senhora das Dores do Itapecuru foi desmembrada do Rosário em
1802, informa César Marques, ficando com 19 léguas de extensão e abrangendo “79
fazendas, 63 sítios, 5.449 indivíduos, 142 proprietários, 71 mulheres destes,
235 crianças filhos dos mesmos, 2 capelães, 48 feitores, 7 jornaleiros e 4. 944
escravos de ambos os sexos (1970, p. 559).” Naquele momento, uma das áreas mais
produtivas da capitania do Maranhão, onde proliferava o cultivo do algodão e
arroz para exportação.
Detalhe do Mapa Geográfico da Capitania do Maranhão – 1819 |
Os
livros da freguesia estão depositados no Arquivo Público do Estado, com
digitalização disponível no site familysearch.org.
Os primeiros anos, 1813 e 1814, dão conta do “auto de desobriga” do vigário
Pedro Antônio Pereira Pinto do Lago, e são testemunha do cumprimento de sua
obrigação, acompanhado do coadjutor Antônio Rabello de Mesquita, autor dos assentos de
que hoje nos servimos. Os registros manuscritos continuaram em outros Livros,
onde conseguimos recuperar 1.316 (um mil, trezentos e dezesseis) assentos,
abrangendo o período de 1813 a 1829. No
decorrer dos anos aparecem nomes de dois outros religiosos: Antônio da Costa
Duarte e Antônio do Espírito Santo Lima, certamente os primeiros párocos da
freguesia desmembrada. Importante ressaltar a dedicação da graduanda em
História da Danielle Melo, bolsista PIBIC/FAPEMA/UFMA, que realizou um trabalho
primoroso de transcrição.
O
zelo dos primeiros registros feitos por Antônio Rabello de Mesquita delineia um
retrato da região, sendo possível recuperar o nome do batizando, de seus pais e
padrinhos; assim como a “cor” e condição jurídica dos mesmos, se livres ou
escravizados. Outros detalhes se somam a esse, como o nome das propriedades e
seus donos. A partir do segundo Livro, que compreende o período 1824 a 1829,
devido ao aumento considerável dos batismos, as informações ficaram mais
restritas.
Para
realização das cerimônias de batismo nos sítios e fazendas da região, deduzimos
que os religiosos se instalavam nas propriedades mais centrais, previamente
avisadas, uma vez que crianças de outras propriedades foram mencionadas. O
vigário ficava um ou dois dias batizando na localidade, findos os quais seguia
adiante. Nos primeiros anos em que o padre e seu coadjutor saíram em desobriga
(1813 e 1814), estiveram em quarenta e oito sítios e quarenta e sete fazendas.
Os nomes dessas propriedades são quase sempre de santos de devoção, como N. S.
dos Remédios, Santa Izabel, Santa Ana, São Benedito, Santa Rosa, Santiago, São
José; sendo os de maior ocorrência Santo Antônio e Nossa Senhora da Conceição.
Tais nominações indicam senhores católicos, como eram os oriundos da península
ibérica. No entanto, o meio ambiente e a topografia também motivaram as
escolhas no momento de nominar, tanto que aparecem referências à fauna e à
flora, como Fazenda do Maracujá, do Pequi, Coroatá, Sapucaia, Bacabal, Buriti, Sítio
Curimatá, do Urubu, etc. Bem próximo a isso aparecem aquelas que manifestam o
ambiente, como a Fazenda do Morro Alto, Olho D’Água, das Cachoeiras e Areias.
Algumas fazem referência direta aos nativos ou sua língua, como Sítio do Guanaré
e dos Barbados. Muitos povoados, vilas e
municípios da região hoje carregam os mesmos nomes, talvez sejam oriundos
daquelas propriedades dos séculos XVIII e XIX, como por exemplo, Pirapemas e
Cantanhede.
Os
proprietários eram quase sempre homens, alguns com patentes militares e
atividades de importância, como o brigadeiro José Gonçalves da Silva, os
coronéis Izidoro Rodrigues Pereira, João Manoel de Macedo, o major José da
Silva Raposo, o capitão Manoel Gomes da Silva Belfort, Agostinho Rodrigues
Torres e Bento José Rodrigues de Araújo e o bacharel Henrique Guilhon. São
mencionados outros fazendeiros, como José Antônio Gomes de Souza e seus
descendentes, como vemos em inúmeros assentos:
No
início do século XIX, vivia-se o “boom” agroexportador no Maranhão, em que a
Ribeira do Itapecuru concentrava 2/3 de toda produção da capitania. Portanto, a
maioria da população estava nas fazendas implantadas nas margens do rio, a
imensa maioria filhos daqueles que viviam sob cativeiro. Seus pais e padrinhos
labutavam na terra, plantando e colhendo algodão e arroz, depois escoados em
barcos para o porto de São Luís e, a seguir, para Portugal e Inglaterra,
principalmente. Oferecer “pasto espiritual” aos que viviam sob sua propriedade
era uma obrigação dos senhores, que, ao receberem os Santos Óleos, se tornavam
cristãos, “filhos de Deus”. Provavelmente, sob a orientação do padre foram
dados aos batizandos nomes relacionados ao mundo Ibérico: Manuel, Joaquim,
Antônio, Domingos e Ana, mas também foram nominados como Germana, Sabino,
Romana, Damázio, Umbilina e Eufrozina; alguns ainda se chamavam Theodora,
Catherina, Tibério, Fúlvio, Constantino etc., indicando a erudição do religioso.
Ainda
que vivendo sob cativeiro, uma porcentagem significativa dos batizandos era
fruto de uniões legítimas, seus pais eram casados na igreja, como atestou o
vigário. Outra pequena parte era formada por aqueles dados como filhos de pais
solteiros, mas presentes na cerimônia, o que indica que assumiriam o filho e
estivessem decididos a oficializar sua união, tão logo fosse possível. No
entanto, a maioria das crianças batizadas nas fazendas foram dados como filhos
de “mães solteiras”. Quanto aos padrinhos, praticamente todos que viviam
naquela condição também receberam escravizados como padrinhos/madrinhas, com
raras exceções. Interessante observar que alguns receberam Nossa Senhora como
madrinha, uma prática também verificada em outras regiões. Vemos abaixo um dos
primeiros assentos encontrados:
Aos
quatorze dias do mês de junho do ano de mil oitocentos e treze, na fazenda do
Retiro, desta freguesia de Nossa Senhora das Dores do Itapecuru Mirim, o
reverendo vigário Pedro Antônio Pereira Pinto do Lago, em auto de desobriga,
batizou solenemente e pôs os Santos Óleos a inocente Lauriana, preta nascida
aos quinze dias do mês de janeiro do dito ano, filha legítima de Antônio e
Angélica, pretos escravos de José Aniceto de Souza. Foram padrinhos Caetano e
Florência, escravos do mesmo senhor. Para constar, fiz este assento e assino.
Coadjutor Antônio Rabello Mesquita (Livro de Registro de Batismo, 1813, fl.
97).
O extrato aponta que, a
imensa maioria dos que se batizaram na Ribeira do Itapecuru, nesse período,
foram dados como “pretos.” Outros, como “pardos”, raros, cuja incidência
aumentará conforme avança o século XIX. Os estudiosos concordam que
as categorias relacionadas à cor contidas nesses documentos representam uma
“construção social”, pois dependia de inúmeros fatores, principalmente, sua
posição social. Seguimos a análise de Assunção (2015), que considera que havia uma
distinção significativa entre os brancos e as pessoas “de cor” na população,
mas a condição jurídica pesava mais na hierarquia social, isto é, a distinção entre
livres e cativos.
Por
volta de 1820, começou a ser mencionada a Matriz de N. S. das Dores do
Itapecuru, o que indica que o templo na vila de mesmo nome foi edificado,
começando as cerimônias a serem realizadas na mesma, ainda que por todo o
período continuassem os “autos de desobriga” na área rural.
Inicialmente,
eram raros os “brancos” batizados na freguesia, pois grande parte dos colonos
de origem europeia moravam na cidade de São Luís. Tal prática tende a diminuir
no decorrer do tempo, quando então verificamos que muitos senhores batizaram
seus filhos e netos nas fazendas, mas sempre uma minoria, devido a proximidade
com o núcleo urbano onde estava localizada a sede da capitania e depois
província do Maranhão.
Aos
dezessete de janeiro de mil oitocentos e vinte e quatro, o reverendo Antônio da
Costa Duarte, batizou e pôs os Santos Óleos a inocente Laura, filha legítima do
tenente Inácio José Gomes de Souza e D. Antônio Carneiro de Brito Souza, neta
paterna do Coronel José Gomes de Souza e sua mulher, D. Luiza Maria de Souza,
da freguesia de N. S. da Vitória do Maranhão; e materna de Raimundo de Brito
Magalhães e Cunha, da freguesia de São João Batista, da vila de Romão, e sua
falecida mulher, D. Maria Carneiro. Foram padrinhos João Henriques de Souza
Gaioso e D. Ana Rita de Souza Gaioso (Livro de registro de Batismo, 1824 a
1829, fl. 137).
Os assentos de batismo
constituem uma fonte imprescindível para os estudos históricos, pois através
dos mesmos se compõe um cenário e se desvela o processo de colonização. Através
deles, sabemos os nomes das propriedades, dos senhores, dos trabalhadores e de
suas famílias. Os nomes dos batizandos, de seus pais, padrinhos e madrinhas dão
conta das mudanças no perfil étnico dos moradores da região e de padrões de
sociabilidades. Nesse caso, o fato de quase sempre os “pequenos” receberem como
padrinhos e madrinhas os companheiros de escravidão de seus pais indica a
rigidez hierárquica daquela sociedade. Outra particularidade digna de nota, é
que nunca o senhor apadrinhava os filhos de seus escravos, com raríssimas
exceções, pois tal aproximação punha em cheque toda a ordem senhorial.
Finalmente, as evidências
contidas nesses manuscritos são de extrema relevância para construção da
História da ribeira do Itapecuru, de suas gentes, estratégias de dominação e
resistência. O fato de muitos dos escravizados se casarem e batizarem seus
filhos na igreja católica aponta a tentativa de inserção social por parte dos
mesmos. Impossível saber o quanto havia de imposição por parte dos senhores e
estratégia de sobrevivência por parte dos escravizados em tais práticas. Certo
é que, a evangelização era uma das justificativas utilizadas para escravização:
retirar populações de uma África em grande parte islamizada e trazê-los ao Novo
Mundo para salvá-los através da fé católica. Por parte dos escravizados, a
adesão a tal projeto, poderia ter inúmeros significados, sendo o maior deles a
estratégia da sobrevivência nesse novo mundo. Ainda que, tudo indica,
preservassem sua religiosidade ancestral.
Do livro Púcaro Literário II – Itapecuru Mirim,
200 anos (2018) pag. 219. Organizado por Jucey Santana e João Carlos Pimentel
Cantanhede.
REFERÊNCIAS
ARQUIVO
PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO. Livro de
Registro de Batismo da Freguesia de Nossa Senhora das Dores do Itapecuru.
São Luís, MA, (1814/1829).
ASSUNÇÃO,
M. R. De caboclos a bem-te-vis: formação
do campesinato numa sociedade escravista, Maranhão (1800-1850). São Paulo:
AnnaBlume, 2015.
MARQUES,
C. A. Dicionário histórico e geográfico
da Província do Maranhão. Rio de Janeiro: Seleta, l970.
MOTA, Antonia da Silva. As
famílias principais: redes de poder no Maranhão colonial. São Luís: Edufma,
2012.
Antonia Silva Mota, escritora, licenciada em História pela Universidade Federal do Maranhão,
depois professora desta mesma instituição, desde 1992. Especializou seus
estudos no Maranhão colonial, com enfoque na História da Família, Escravidão e
Patrimônio Material. Concluiu seu pós-doutorado junto ao NEPO/UNICAMP/SP, na
linha de pesquisa: Demografia da Escravidão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário