domingo, 16 de dezembro de 2018

A FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DAS DORES DO ITAPECURU


     

Os primeiros registros de batismo (1813/1829).

Antonia  Mota              
A freguesia de Nossa Senhora das Dores do Itapecuru foi desmembrada do Rosário em 1802, informa César Marques, ficando com 19 léguas de extensão e abrangendo “79 fazendas, 63 sítios, 5.449 indivíduos, 142 proprietários, 71 mulheres destes, 235 crianças filhos dos mesmos, 2 capelães, 48 feitores, 7 jornaleiros e 4. 944 escravos de ambos os sexos (1970, p. 559).” Naquele momento, uma das áreas mais produtivas da capitania do Maranhão, onde proliferava o cultivo do algodão e arroz para exportação. 
Detalhe do Mapa Geográfico da Capitania do Maranhão – 1819

Os livros da freguesia estão depositados no Arquivo Público do Estado, com digitalização disponível no site familysearch.org. Os primeiros anos, 1813 e 1814, dão conta do “auto de desobriga” do vigário Pedro Antônio Pereira Pinto do Lago, e são testemunha do cumprimento de sua obrigação, acompanhado do coadjutor Antônio Rabello de Mesquita, autor dos assentos de que hoje nos servimos. Os registros manuscritos continuaram em outros Livros, onde conseguimos recuperar 1.316 (um mil, trezentos e dezesseis) assentos, abrangendo o período de 1813 a 1829.  No decorrer dos anos aparecem nomes de dois outros religiosos: Antônio da Costa Duarte e Antônio do Espírito Santo Lima, certamente os primeiros párocos da freguesia desmembrada. Importante ressaltar a dedicação da graduanda em História da Danielle Melo, bolsista PIBIC/FAPEMA/UFMA, que realizou um trabalho primoroso de transcrição.

O zelo dos primeiros registros feitos por Antônio Rabello de Mesquita delineia um retrato da região, sendo possível recuperar o nome do batizando, de seus pais e padrinhos; assim como a “cor” e condição jurídica dos mesmos, se livres ou escravizados. Outros detalhes se somam a esse, como o nome das propriedades e seus donos. A partir do segundo Livro, que compreende o período 1824 a 1829, devido ao aumento considerável dos batismos, as informações ficaram mais restritas. 

Para realização das cerimônias de batismo nos sítios e fazendas da região, deduzimos que os religiosos se instalavam nas propriedades mais centrais, previamente avisadas, uma vez que crianças de outras propriedades foram mencionadas. O vigário ficava um ou dois dias batizando na localidade, findos os quais seguia adiante. Nos primeiros anos em que o padre e seu coadjutor saíram em desobriga (1813 e 1814), estiveram em quarenta e oito sítios e quarenta e sete fazendas. Os nomes dessas propriedades são quase sempre de santos de devoção, como N. S. dos Remédios, Santa Izabel, Santa Ana, São Benedito, Santa Rosa, Santiago, São José; sendo os de maior ocorrência Santo Antônio e Nossa Senhora da Conceição. Tais nominações indicam senhores católicos, como eram os oriundos da península ibérica. No entanto, o meio ambiente e a topografia também motivaram as escolhas no momento de nominar, tanto que aparecem referências à fauna e à flora, como Fazenda do Maracujá, do Pequi, Coroatá, Sapucaia, Bacabal, Buriti, Sítio Curimatá, do Urubu, etc. Bem próximo a isso aparecem aquelas que manifestam o ambiente, como a Fazenda do Morro Alto, Olho D’Água, das Cachoeiras e Areias. Algumas fazem referência direta aos nativos ou sua língua, como Sítio do Guanaré e dos Barbados.  Muitos povoados, vilas e municípios da região hoje carregam os mesmos nomes, talvez sejam oriundos daquelas propriedades dos séculos XVIII e XIX, como por exemplo, Pirapemas e Cantanhede. 

Os proprietários eram quase sempre homens, alguns com patentes militares e atividades de importância, como o brigadeiro José Gonçalves da Silva, os coronéis Izidoro Rodrigues Pereira, João Manoel de Macedo, o major José da Silva Raposo, o capitão Manoel Gomes da Silva Belfort, Agostinho Rodrigues Torres e Bento José Rodrigues de Araújo e o bacharel Henrique Guilhon. São mencionados outros fazendeiros, como José Antônio Gomes de Souza e seus descendentes, como vemos em inúmeros assentos: 

No início do século XIX, vivia-se o “boom” agroexportador no Maranhão, em que a Ribeira do Itapecuru concentrava 2/3 de toda produção da capitania. Portanto, a maioria da população estava nas fazendas implantadas nas margens do rio, a imensa maioria filhos daqueles que viviam sob cativeiro. Seus pais e padrinhos labutavam na terra, plantando e colhendo algodão e arroz, depois escoados em barcos para o porto de São Luís e, a seguir, para Portugal e Inglaterra, principalmente. Oferecer “pasto espiritual” aos que viviam sob sua propriedade era uma obrigação dos senhores, que, ao receberem os Santos Óleos, se tornavam cristãos, “filhos de Deus”. Provavelmente, sob a orientação do padre foram dados aos batizandos nomes relacionados ao mundo Ibérico: Manuel, Joaquim, Antônio, Domingos e Ana, mas também foram nominados como Germana, Sabino, Romana, Damázio, Umbilina e Eufrozina; alguns ainda se chamavam Theodora, Catherina, Tibério, Fúlvio, Constantino etc., indicando a erudição do religioso. 

Ainda que vivendo sob cativeiro, uma porcentagem significativa dos batizandos era fruto de uniões legítimas, seus pais eram casados na igreja, como atestou o vigário. Outra pequena parte era formada por aqueles dados como filhos de pais solteiros, mas presentes na cerimônia, o que indica que assumiriam o filho e estivessem decididos a oficializar sua união, tão logo fosse possível. No entanto, a maioria das crianças batizadas nas fazendas foram dados como filhos de “mães solteiras”. Quanto aos padrinhos, praticamente todos que viviam naquela condição também receberam escravizados como padrinhos/madrinhas, com raras exceções. Interessante observar que alguns receberam Nossa Senhora como madrinha, uma prática também verificada em outras regiões. Vemos abaixo um dos primeiros assentos encontrados:

Aos quatorze dias do mês de junho do ano de mil oitocentos e treze, na fazenda do Retiro, desta freguesia de Nossa Senhora das Dores do Itapecuru Mirim, o reverendo vigário Pedro Antônio Pereira Pinto do Lago, em auto de desobriga, batizou solenemente e pôs os Santos Óleos a inocente Lauriana, preta nascida aos quinze dias do mês de janeiro do dito ano, filha legítima de Antônio e Angélica, pretos escravos de José Aniceto de Souza. Foram padrinhos Caetano e Florência, escravos do mesmo senhor. Para constar, fiz este assento e assino. Coadjutor Antônio Rabello Mesquita (Livro de Registro de Batismo, 1813, fl. 97).

O extrato aponta que, a imensa maioria dos que se batizaram na Ribeira do Itapecuru, nesse período, foram dados como “pretos.” Outros, como “pardos”, raros, cuja incidência aumentará conforme avança o século XIX. Os estudiosos concordam que as categorias relacionadas à cor contidas nesses documentos representam uma “construção social”, pois dependia de inúmeros fatores, principalmente, sua posição social. Seguimos a análise de Assunção (2015), que considera que havia uma distinção significativa entre os brancos e as pessoas “de cor” na população, mas a condição jurídica pesava mais na hierarquia social, isto é, a distinção entre livres e cativos. 

Por volta de 1820, começou a ser mencionada a Matriz de N. S. das Dores do Itapecuru, o que indica que o templo na vila de mesmo nome foi edificado, começando as cerimônias a serem realizadas na mesma, ainda que por todo o período continuassem os “autos de desobriga” na área rural. 

Inicialmente, eram raros os “brancos” batizados na freguesia, pois grande parte dos colonos de origem europeia moravam na cidade de São Luís. Tal prática tende a diminuir no decorrer do tempo, quando então verificamos que muitos senhores batizaram seus filhos e netos nas fazendas, mas sempre uma minoria, devido a proximidade com o núcleo urbano onde estava localizada a sede da capitania e depois província do Maranhão.

Aos dezessete de janeiro de mil oitocentos e vinte e quatro, o reverendo Antônio da Costa Duarte, batizou e pôs os Santos Óleos a inocente Laura, filha legítima do tenente Inácio José Gomes de Souza e D. Antônio Carneiro de Brito Souza, neta paterna do Coronel José Gomes de Souza e sua mulher, D. Luiza Maria de Souza, da freguesia de N. S. da Vitória do Maranhão; e materna de Raimundo de Brito Magalhães e Cunha, da freguesia de São João Batista, da vila de Romão, e sua falecida mulher, D. Maria Carneiro. Foram padrinhos João Henriques de Souza Gaioso e D. Ana Rita de Souza Gaioso (Livro de registro de Batismo, 1824 a 1829, fl. 137).


Os assentos de batismo constituem uma fonte imprescindível para os estudos históricos, pois através dos mesmos se compõe um cenário e se desvela o processo de colonização. Através deles, sabemos os nomes das propriedades, dos senhores, dos trabalhadores e de suas famílias. Os nomes dos batizandos, de seus pais, padrinhos e madrinhas dão conta das mudanças no perfil étnico dos moradores da região e de padrões de sociabilidades. Nesse caso, o fato de quase sempre os “pequenos” receberem como padrinhos e madrinhas os companheiros de escravidão de seus pais indica a rigidez hierárquica daquela sociedade. Outra particularidade digna de nota, é que nunca o senhor apadrinhava os filhos de seus escravos, com raríssimas exceções, pois tal aproximação punha em cheque toda a ordem senhorial.

Finalmente, as evidências contidas nesses manuscritos são de extrema relevância para construção da História da ribeira do Itapecuru, de suas gentes, estratégias de dominação e resistência. O fato de muitos dos escravizados se casarem e batizarem seus filhos na igreja católica aponta a tentativa de inserção social por parte dos mesmos. Impossível saber o quanto havia de imposição por parte dos senhores e estratégia de sobrevivência por parte dos escravizados em tais práticas. Certo é que, a evangelização era uma das justificativas utilizadas para escravização: retirar populações de uma África em grande parte islamizada e trazê-los ao Novo Mundo para salvá-los através da fé católica. Por parte dos escravizados, a adesão a tal projeto, poderia ter inúmeros significados, sendo o maior deles a estratégia da sobrevivência nesse novo mundo. Ainda que, tudo indica, preservassem sua religiosidade ancestral.
Do livro Púcaro Literário II – Itapecuru Mirim, 200 anos (2018) pag. 219. Organizado por Jucey Santana e João Carlos Pimentel Cantanhede.


REFERÊNCIAS
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO. Livro de Registro de Batismo da Freguesia de Nossa Senhora das Dores do Itapecuru. São Luís, MA, (1814/1829).
ASSUNÇÃO, M. R. De caboclos a bem-te-vis: formação do campesinato numa sociedade escravista, Maranhão (1800-1850). São Paulo: AnnaBlume, 2015.
MARQUES, C. A. Dicionário histórico e geográfico da Província do Maranhão. Rio de Janeiro:  Seleta, l970.
MOTA, Antonia da Silva. As famílias principais: redes de poder no Maranhão colonial. São Luís: Edufma, 2012.




Antonia Silva Mota, escritora, licenciada em História pela Universidade Federal do Maranhão, depois professora desta mesma instituição, desde 1992. Especializou seus estudos no Maranhão colonial, com enfoque na História da Família, Escravidão e Patrimônio Material. Concluiu seu pós-doutorado junto ao NEPO/UNICAMP/SP, na linha de pesquisa: Demografia da Escravidão.

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