Por:
Josemar Lima Série de Crônicas – ANO III/nº 28/2016
Conheci
a Fonte da Miquilina de forma inédita e casual. Tinha saído num domingo dos
anos 60 para colher cajui, murici e goiaba araçá lá nos campos cerrados nas
proximidades da fazenda do senhor Santos Lima, um militar reformado, mas que
não deixava de envergar sua farda verde oliva e uma espada de bainha
enferrujada nas solenidades de 7 de setembro em frente ao prédio majestoso da
Prefeitura Municipal. Possuía uma barriga proeminente e a cada ano sobrava
barriga e faltava farda para cobri-la. Ele não abria mão dessa indumentária e
os meninos do Grupo Escolar Gomes de Sousa passaram a apelidá-lo de “Caju
Verde”. Claro que ele nunca soube dessa afronta contra o exército
brasileiro.
Nessa
viagem pelos campos estava acompanhado do meu irmão Natinho e de um amigo de
infância e vizinho chamado Domingos, um az no uso de baladeiras, elaboradas com
cabos de forquilhas de goiabeira e ligas de câmara de ar usadas de pneus de
bicicletas. Eram assim as baladeiras antigas! Nos cabos marcavam-se com talhos
o total de aves abatidas, sem nenhuma preocupação com os danos ao meio
ambiente, pois esse assunto não era tratado na escola e nem nas rodas de
amigos. Para nós a natureza era inesgotável.
Sim,
voltemos à Fonte da Miquilina!
Nessa
tarde de domingo chovia muito e terminamos nos perdendo no campo. Meu irmão
teve então a ideia de subir em uma árvore para ver se conseguia divisar a
chaminé da Construpan. Nesse tempo toda a construção ainda estava de pé - a
chaminé, que nunca cumpriu o seu papel de transportar fumaça das fornalhas à
atmosfera (graças a Deus!), uma torre de sete pavimentos, vários galpões,
dezenas de bangalôs para funcionários e todos os equipamentos também ainda
estavam lá. Máquinas imensas, serpentinas e caldeiras. Estas, no segundo
pavimento dos galpões.
Ele conseguiu avistar parte da chaminé e aí
saímos correndo na direção indicada por ele até que encontramos um caminho de
areia branca por onde corria água da chuva e o seguimos...
Terminamos chegando a uma casinha de
taipa, tapada de barro, onde uma velhinha com a cabeça protegida por uma toalha
bordada nos informou que ali em frente ficava a Fonte da Miquilina, que todos
nós já tínhamos ouvido falar, pela qualidade de sua água cristalina que brotava
da terra e que era vendida para as famílias de posses pelo “Seu Broca”, que
usava duas latas de querosene jacaré penduradas em uma haste de madeira para
transportá-las pelas ruas arenosas da cidade Nós chegamos à fonte por trás,
pelo caminho inverso.
Seu
Broca era também quem carregava o grande crucifixo nas procissões que
encerravam os festejos religiosos. Já velho e adoentado, perseguia os moleques
que a título de provocação gritavam para ele - “Seu Broca o Mundo Vai se
Acabar”!
Ali
nas proximidades existia um mangal imenso e uma densa floresta com diversas
espécies de árvores nativas, como bacuri, pau d’arco, jatobá, ingá e tantas
outras entremeadas de arbustos e palmeiras variadas.
Daquele
dia resolvemos descer com dificuldade as ribanceiras e chegar até às bicas. Era
um verdadeiro santuário!
Duas bicas d’água afloravam de uma
barreira coberta de pequenas plantas e algumas flores visitadas permanentemente
por borboletas de cores variadas e eram conduzidas por uma calha de flandres
com um fluxo ininterrupto de um líquido transluzente que, ao chocarem-se contra
o solo, juntava-se ao cântico dos pássaros e produzia um som melodioso e
tranquilizante. Quando olhei para cima vi apenas raios de sol filtrados pelos
galhos e folhas de grandes árvores que se entrelaçavam e formavam um manto
mágico para aquele quase altar da natureza. Assim era a Fonte da Miquilina que
ainda hoje conservo na retina de minha memória!
Posteriormente,
isso já nos anos 70, após concluir o curso de edificações na Escola Técnica
Federal do Maranhão, hoje IFMA, e como Chefe de Gabinete da Prefeitura
Municipal de Itapecuru Mirim, pude ter uma ação mais concreta com a fonte.
Sabedor de que ali tinha havido ações de vandalismo e que a fonte parara de
funcionar, convoquei o experiente pedreiro da prefeitura, conhecido como
Lourival Pedreiro ou Lourivalzinho, elaborei um pequeno projeto e o executamos.
Os
minadouros foram desobstruídos e canalizados até um tanque hermeticamente
fechado que coletava a água vinda das bicas; dois bicos de ferro foram adaptados
ao tanque e, assim, a água podia ser colhida sem contato humano. Por muitos
anos esse sistema funcionou com alguns poucos melhoramentos realizados.
Voltei
à Fonte da Miquilina na manhã do dia 12 de março de 2016, quando fui a
Itapecuru Mirim para participar da reunião da AICLA. É um cenário constrangedor
para aquele menino que viu a explosão de vida ali existente naquela tarde do
final dos anos 60. Mas a Fonte da Miquilina, pelas graças de Deus, de todos os
Deuses, das Mães D’água que ali residem, ainda pulsa e continua lá oferecendo
suas últimas gotas de sangue a quem precisar matar a sede ou, como eu, apenas
provar daquela água quase sagrada.
Prometi
a mim mesmo e à velha fonte buscar todos os apoios possíveis, públicos e/ou
privados, para ressuscitar o paraíso que que ali existia! Creio que a indústria cerâmica poderia fazer
essa compensação ao meio ambiente já que o poder público em nossa terra se faz
de moco e cego para as causas nobres. A Associação Comercial e Industrial de
Itapecuru Mirim será com certeza o meu primeiro porto!
E não é difícil: Basta reservar pelo
menos um hectare de terras em volta da fonte, cercá-lo adequadamente, buscar um
especialista em formação de mudas de espécies nativas e começar a reflorestar a
área. A água voltará com toda sua força e a beleza será restabelecida para
orgulho de todos nós itapecuruenses, principalmente para os jovens, atualmente
tão sensíveis às questões ecológicas. Ali poderia ser um berçário para a
produção de mudas de espécies nativas regionais, inclusive para revitalização
das matas ciliares do Rio Itapecuru e seus afluentes.
Quando
o pessoal do Projeto Rondon esteve em Itapecuru Mirim, em 1972, realizaram, em
parceria com o Clube de Jovens, o 1º Festival de Música e Poesia de Itapecuru
Mirim – 1º FEMPI.
Escrevi
uma música, dominado à época também por outras paixões, mas como cantar em
público nunca foi meu forte, a canção denominada “Miquilina” foi defendida pelo
meu irmão Natinho, com calça de boca de sino e cabelos compridos, e se
classificou em segundo lugar, recebendo como prêmio um violão novinho em folha.
A primeira colocada foi uma canção interpretada pelo amigo Raimundo Garcia,
denominada “Integração”, e em terceiro lugar classificou-se uma canção
defendida pelo saudoso Renato Oliveira, que em tempos passados, tinha sido ator
de teatro e também locutor da Voz Marília, serviço de alto-falante vinculado ao
antigo Cine Marília
Há
registros da existência dessa fonte desde o século XIX, período imperial,
conforme registra a escritora Jucey Santana, no livro “Mariana Luz Vida e Obra
e Coisas do Itapecuru Mirim”. A área pertencia à Maria Miquilina, mulata,
descendente de escravos que a mantinha devidamente conservada e servia à
população da povoação principalmente no período invernoso, quando a água do rio
se torna turva e barrenta para consumo humano. O nome da mulata deve ter sido
originado pela devoção à Santa Miquelina de Pesaro, uma cidade italiana.
Miquelina era uma jovem lindíssima e casou-se aos doze anos, teve um filho e
posteriormente ficou viúva. Dedicou-se, então, à vida
religiosa e aos cuidados aos leprosos, tendo seu culto sido autorizado em 1737.
Acredito que, como as borboletas
daquela tarde de inverno, a Fonte da Miquilina pode rebrotar de seu casulo
apodrecido, ganhar asas multicores e voar rumo à esperança.
Uma bela crônica,caro confrade, Josemar!
ResponderExcluirInteressante relato, beleza de resgate. Parabéns nobre amigo Josemar
ResponderExcluirAdorei a parte do "caju verde" kkkkkkk
ResponderExcluirMuito bom, bela abordagem sobre essa riqueza natural.
ResponderExcluir