Josemar Lima série
crônicas – ano IV/nº 40/2017
O Gênesis,
primeiro livro da Bíblia, conta-nos os primórdios da história da salvação. Na
Mesopotâmia, Abraão é chamado por Deus a seguir um novo caminho de vida. O
livro abrange apenas quatro gerações da família de Abraão. À maneira de
prefácio, a narração da origem do mundo e dos homens projeta a história da
salvação num cenário universal e até cósmico.
O Gênesis
divide-se, portanto, em duas partes distintas e desiguais: as Origens e a
História dos Patriarcas.
As Origens tratam
da criação do mundo, do jardim do Éden, da queda do homem pelo pecado original
até a dispersão dos povos. Os homens corromperam-se cada vez mais. O castigo do
pecado atingiu, no Dilúvio, proporções correspondentes à corrupção.
A História dos
Patriarcas divide-se, por sua vez, em três ciclos narrativos: Abraão, Isaac,
Jacob e José. O ciclo de Abraão desenrola-se no âmbito geográfico de todo o
Crescente Fértil, da Mesopotâmia ao Egito. A vida de Jacob é cheia de
peripécias: atritos com o irmão Esaú e dificuldades de arranjar noiva em
Harran. José nasce na Palestina, mas vai para o Egito em circunstâncias
difíceis. Consegue singrar na terra dos faraós, chama a família para lá e ai
morre.
Seu Valério era um
homem simples, residia em uma casa de alvenaria, coberta de telhas, e que tinha
até eira e beira, coisa só possível em residências de famílias ricas. Eram
aquelas biqueiras emolduradas com dois níveis de telhas. A eira e beira vinham
da herança dos pais. A casa, hoje não existe mais, localizava-se ali na Rua da
Boiada, em frente ao casarão da família de Dona Graciete Cassas. Era
carpinteiro, como o José da Bíblia, sendo que uma das salas, com duas portas
para a rua, destinava-se à oficina. Não era um homem letrado, mas tinha muito
gosto pela leitura, principalmente livros de autores consagrados.
Dizia já ter lido
Dom Quixote, clássico do espanhol Miguel de Cervantes; e até a Volta ao Mundo
em Oitenta Dias, de autoria do fenomenal Júlio Verne. Sua grande frustação
confessava aos amigos, era nunca ter tido a oportunidade de ler o Antigo
Testamento da Bíblia Sagrada.
Conheci Seu
Valério numa visita que o fizemos, eu e minha mãe, que buscava uma vaga de
aprendiz de marceneiro quando eu tinha um pouco mais de dez anos. Naqueles
tempos, além dos estudos formais era quase que uma obrigação ter uma profissão.
Cheguei a frequentar a oficina por alguns meses e não me arrependo, pois
aprendi pelos menos manusear as ferramentas de marcenaria.
Há uma diferença
entre marceneiro e carpinteiro. O marceneiro trabalha na confecção de móveis e
utensílios, transformando a madeira em um objeto útil ou decorativo, enquanto o
carpinteiro ocupa-se mais no preparo de estruturas de madeira nobres,
especialmente para telhados.
O encontramos em
sua oficina em horário de trabalho. Tinha um pouco mais de sessenta anos,
moreno claro, estatura baixa, cabelos lisos e penteados para trás. Num canto da
oficina pude observar uma mesinha quadrada, coberta com uma toalha branca, com
franjas rendadas, com vários livros empilhados sobre ela.
Pouco meses depois
mudamos de casa e fomos morar no Caminho Grande e tive que deixar o aprendizado
de marcenaria. A distância e a falta de uma bicicleta comprometiam a chagada à
escola em tempo hábil.
Voltei a ouvir
falar de Seu Valério muito tempo depois e a informação era de que o velho
marceneiro estava com a memória comprometida desde que começou a ler o Velho
Testamento da Bíblia Sagrada, graças a visita que recebera de um mercador
italiano que trazia para venda um produto irrecusável para ele: Era um volume
do Livro dos Livros, com 1248 páginas, contento o novo e o velho testamentos,
muitas ilustrações, encadernado em uma capa dura e quase que totalmente negra.
A exceção era um pequeno quadrilátero vermelho no centro da capa principal,
onde se destacava uma cruz de tonalidade avermelhada.
As informações que
corriam eram de que ele, como natural, iniciara a leitura pelo Livro de Gênesis
e que tivera muita dificuldade de entendimento, até pelas razões que me
referenciei no início desta crônica. Mas o pior é que ele não largou mais a
leitura do livro, nem pra trabalhar e nem para alimentar-se. Em pouco tempo
tinha a aparência de um velho patriarca, como Abraão. A barba e os cabelos
cresceram e, inexplicavelmente, embranqueceram rapidamente.
Um dos capítulos
de Gênesis causou-lhe profunda reflexão: Foi quando o Senhor reconheceu que a
maldade dos homens era grande na terra, que todos os seus pensamentos e desejos
tendiam unicamente para o mal. O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem
sobre a terra e o Seu coração sofreu amargamente.
“E o Senhor disse:
Eliminarei na face da terra o homem que Eu criei e, juntamente com o homem, os
animais domésticos, os répteis e as aves dos céus, pois estou arrependido de os
ter feitos”. Noé, porém, achou graça aos olhos do Senhor.
E aí entram o
personagem e a história que mais tiveram influência sobre a mente já
convalescente de Seu Valério: Noé, sua Arca e o Dilúvio!
Em seus devaneios,
Seu Valério entendia que a chegada daquele livro, trazido por um indivíduo de
fala enrolada e, principalmente o desejo de Deus em punir a corrupção existente
na terra, era um aviso divino para ele. Ele teria sido escolhido como o novo
Noé!
E, nos seus
sonhos, ele dizia ter ouvido de Deus que um novo Dilúvio se abateria em breve
sobre terra. As águas do Rio Itapecuru se alevantariam repentinamente,
cobririam a torre da igreja, e só a cimeira do Morro do Diogo, lá prós lado do
povoado Cigana, ficaria livre das águas.
Apressou-se,
então, em construir na parte mais alta do citado morro uma fortaleza de pedras,
conforme sonhara. Todos os dias saia de casa pela madrugada, com sua volumosa
Bíblia debaixo do braço e lá se ia, a pé, para o Morro do Diogo cumprir a missão que Deus lhe confiara.
Não tenho
informações se a casa de pedra chegou a ser concluída! Soube, entretanto, do
falecimento de Seu Valério sem que sua profecia tivesse se concretizado.
Como o tempo de
Deus é diferente do tempo dos homens, quem sabe o Senhor esperou a chegada da
Operação Lava Jato para ver quanta maldade os homens de colarinho branco são
capazes de fazer com os seus semelhantes sem colarinho, para mais uma vez
arrepender-se de tê-los criado e autorizar o Segundo Dilúvio.
E prá Ele, se tudo
foi assim mesmo, é simplesmente fácil – Basta inverter a frase que pronunciou
no início de tudo: “E desfaça-se a Luz! ”
Nenhum comentário:
Postar um comentário