quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Uma Torre Que Cai




   

SÉRIE CRÔNICAS – ANO IV/nº 46/2017

Josemar Lima

Eram as primeiras chuvas do inverno de 1961 que caiam sobre a centenária cidade de Itapecuru Mirim, num final de tarde cinzento do dia 21 de janeiro de 1961, aniversário de trinta e um anos de minha mãe, Dona Raimunda Félix de Sousa. Eu tinha apenas onze anos, mas nunca consegui esquecer os sons que os doze sinos de bronze que ficavam na cúpula da igreja matriz fizeram daquela tarde chuvosa.

Eu conhecia bem os sinos, pois uma das minhas travessuras com os amigos era subir às escondidas pelas escadas cambaleantes de madeira até o último pavimento da velha igreja matriz, para observar os sinos, os alto-falantes da Voz Paroquial, ali instalados, e observar toda a paisagem da cidade que naquele tempo se estendia da Residência do DER até a Trizidela.

Não era uma subida comum, pois tínhamos que aproveitar um cochilo de “Seu Dazi”, o sineiro, e entrar pela porta da sacristia, que se localiza nos fundos da igreja. Muitas das vezes éramos flagrados e a carreira era feia.

Na sacristia começava a aventura, pois ali ficavam os paramentos, a imagem do “Senhor Morto”, devidamente postada sobre um caixão de madeira, coberta com um manto roxo de bordas amarelas e todas as outras imagens que necessitavam de algum tipo de reparo ou pintura, além da “matraca” que era usada na sexta feira da paixão, substituindo o som estridente dos sinos, para chamar os fies para as missas e, ainda, um grande crucifixo de metal brilhante, articulado a um cabo longo, também de metal trabalhado, que era conduzido pelo “Seu Broca” nos dias de procissões.

A imagem do Senhor Morto só saia dali nas sextas-feiras santas, para exposição no altar central da igreja e para o cortejo em procissão, carregada pelas pessoas mais influentes da cidade.

Dali, íamos ao altar-mor, antes entrando por uma passagem secreta que fica por detrás do referido altar e que poucas pessoas sabem que existe. Passávamos por toda a extensão da nave da igreja e chegávamos à pia batismal, localizada próxima à entrada principal, construída em mármore branco, sempre com água benta e coberta com um tampão de madeira.

Logo após ficava o primeiro lance da escada, essa em caracol, até atingir o primeiro piso ou “coro”, uma área ampla, contígua à torre, com um baixo peitoril de madeira de onde se podia divisar toda extensão da igreja, a nave central e as duas laterais. Era nesse espaço que ficava o órgão que acompanhava às missas e que muitas vezes tentamos tocar sem sucesso.

A partir daí, existiam mais três lances de precárias escadas rangentes de madeira sem revestimento, até que se chegasse à cúpula, local dos sinos. Se bem me lembro eram doze, enfileirados em colunas de seis, dois pequenos, dois médios e dois enormes.

Eles ficavam suspensos acima de nossas cabeças e, que me lembre, nunca tentamos tocá-los, até porque seria uma ação suicida, pois seríamos pegados pelo Seu Dazi antes de descer as escadas.

Eu conhecia bem a voz dos sinos – eles cantavam alegremente nas alvoradas matinais, todos ao mesmo tempo, como num coral composto por crianças e adultos.

Para avisar aos fiéis que a missa ia começar eram três chamadas com os sinos tocando freneticamente e de forma ininterrupta, mas era possível identificar bem os sons graves e agudos, como numa ladainha cantada.

Também tinham os sinais; toques pausados dos sinos menores de sons agudos, quase um soluço, para avisar que alguém da cidade tinha falecido de morte natural. Os sinais não eram permitidos para situações de mortes violentas ou suicídio.

Naquela tarde, quase noite, entretanto, eu ouvi sons que não conseguia identificar. Pareciam gritos desesperados e os sons se misturavam em graves e agudos, abafados por um som maior, como um trovão.

Era a torre da igreja matriz de Itapecuru Mirim que desabava deste o seu “flèche”, uma espécie de pirâmide, encimada por uma cruz de ferro fundido, trazendo junto os sinos, os alto-falantes, todos os vãos de escadas e uma parte do coro, onde ficava o órgão. Tudo ruiu e se acumulou em frente ao que antes era a entrada principal.

Lembro das campanhas realizadas pelo padre, depois cônego, José Albino Campos, convocando a população para ajudar voluntariamente na retirada dos entulhos e demolição dos restos de estruturas remanescentes do desabamento que ameaçavam cair e dificultavam os trabalhos de retirada dos tijolinhos maciços e restos de reboco.

Muita gente da comunidade para lá se deslocava à noite para esse tipo de trabalho. Fui várias vezes com meu tio Minzinho e não esqueço de uma cena em que ele com uma corda de segurança amarrada à cintura, empurrava com os pés restos de paredes comprometidas no alto do que sobrara da velha torre.

A velha Igreja Matriz de nossa cidade, construída no local do antigo Cemitério do Areal, cujas obras foram concluídas em 1944, na gestão do padre José de Jesus Dourado, conforme registro no livro “Mariana Luz – Vida e Obra e Coisas de Itapecuru Mirim”, de autoria da escritora itapecuruense Jucey Santana,  tinha um estilo neocolonial que, ao contrário do estilo ecletista, com referências no exterior, buscava criar uma arquitetura que reafirmasse as raízes culturais brasileiras, com o ressurgimento do estilo colonial.

Seguia, entretanto, o desenho tradicional das igrejas católicas construídas em São Luís, uma nave central, com janelas altas e grandes arcos de estilo romanos; um altar-mor e dois secundários nas entradas laterais; uma sacristia; um coro; e uma torre com cúpula, encimada por um flèche triangular e uma cruz de ferro fundido no topo.

A história das igrejas em Itapecuru Mirim é longa e merece estudos mais aprofundados para esclarecer certos detalhes ainda obscuros.

Remonta a 12 de julho de 1875! Nessa data a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Itapecuru Mirim encaminhou ao Promotor Eclesiático uma solicitação para construção de uma capela para a santa de devoção. A decisão autorizativa só veio trinta e um anos depois, em 10 de julho de 1816, firmada pelo Vigário Capitular Agostinho Ferreira. Claro que a irmandade não esperou tanto tempo e logo após o pedido, mesmo clandedinamente, erigiu sua igrejinha. Há, ainda, informações sobre a existência de uma capela dedicada à Santa Cruz, que ainda não se sabe exatamente sua real localização.

Conforme os registros já citados, coletados pela escritora Jucey Santana, a capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos foi efetivamente construída no antigo Largo do Mercado, tendo passado por uma ampla reforma em 1869 e desapareceu definitivamente em uma das maiores enchentes do Rio Itapecuru, registrada em 1924.

Era uma igreja de porte médio, construída em pedras, arcos e colunas e foi utilizada como sede da Paróquia de Nossa Senhora das Dores, desde a sua criação em 25 de setembro de 1801, juntamente com a criação da Freguesia, agrupamento de povoações paroquianas de toda essa região. Essa igrejas da referida irmandade se estenderam pelas Ribeiras do Rio Itapecuru, desde Rosário até Caxias.

A homologação da paróquia foi efetivada pelo décimo terceiro Bispo do Maranhão, Dom Luís de Brito Homem, em 02 de março de 1805.

Existem relatos mo mundo quilombola que essa utilização da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, para sede da paróquia,  se operou à revelia dos membros da irmandade, até porque os negros não tinham acesso às missas juntamente com a elite branca, não entravam pela porta principal e ficavam confinados em um espaço com estreitas janelas de onde podiam assistir às celebrações, mas não podiam ser vistos pela plateia que estava na nave central do templo. Por essa razão, os negros teriam jogado uma praga de que essa situação seria revertida, praga que se consumou na enchente de 1924.

Há, ainda, o registro de que em 02 de abril de 1841, o futuro Duque de Caxias, na campanha da Balaiada, fez uma vultosa doação pessoal, lançou a pedra fundamental e escolheu um local para construção da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores. Essa doação não foi utilizada para construção da nova igreja, mas, possivelmente, e com a concordância do doador, para a reforma da Igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, permitindo que se transformasse em um amplo templo.

Essa tese tem respaldo no fato de que uma das estratégias militares usadas por Caxias era a cooptação de pessoas e segmentos sociais organizados dos próprios negros, jogando-os uns contra os outros. Nada mais cômodo para o exímio estrategista militar ter a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na neutralidade ou se posicionando contra os balaios.

E ele, habilmente, conseguiu o seu intento, agradando a gregos e troianos, no caso à elite branca da cidade e também aos negros da irmandade. Eu não tenho dúvidas de que essa generosa doação teve motivação puramente militar. Restou dela a pedra angular, hoje exposta na Casa de Cultura Professor João da Cruz da Silveira.

E mais, as campanhas para construção da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, essa que a torre desabou, só começaram a ser realizadas a partir de 1928, oitenta e sete anos após a citada doação, com a realização do “Festival Beneficente Artístico”, realizado no Teatro Artur Azevedo e patrocinado por vários intelectuais itapecuruenses.

Essa estratégia de cooptação de lideranças era uma tática de guerra e foi utilizada reiteradamente pelo futuro Duque de Caxias, inclusive para realizar o ataque ao Quilombo de Lagoa Amarela, quartel geral de Dom Cosme Bento das Chagas, localizado nas proximidades de Brejo, que teve à frente um líder revolucionário dos balaios, Francisco Pereira Pedrosa, amigo do Negro Cosme, anistiado e regiamente compepensado financeiramente por Luís Alves de Lima e por ele mesmo instruído para a carnificina. Aproximou-se do Quilombo utilizando o pretexto da antiga amizade como o líder negro. Quantos inocentes morreram ali?

Era uma guerra, mas o ataque foi covarde, traiçoeiro e vitimou  centenas ou milhares de inocentes, principalmente crianças e idosos. Os mortos de Lagoa Amarela não foram contados! Os balaios com certeza também empreenderam incursões assim, mas eles não obedeciam os rígidos códigos de ética militar e nem eram pagos pelo povo brasileiro e, mais, cada um dos seus principais líderes tinha a sua própria guerra.

Um outro fato curioso é que o mestre Raimundo Lopes, mais um artista que um pedreiro, respeitadíssimo em Itapecuru Mirim e região, trabalhou na construção da velha torre que desabou e, também, na reconstrução da torre atual, sendo que nessa eu afirmo pois o vi várias vezes nos andaimes talhando, caprichosamente, os acabamentos externos.

A nova a torre do prédio da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores foi reconstruída e inaugurada em 1 de janeiro de 1965, na Festa de São Benedito, agora em estilo moderno, criando um contraste com o restante do prédio que mantém seu estilo neocolonial.


JOSEMAR SOUSA LIMA é economista, com especialização em Desenvolvimento Rural Sustentável e membro da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes – AICLA.

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