SÉRIE CRÔNICAS – ANO IV/nº 46/2017
Josemar
Lima
Eram as primeiras chuvas do inverno de
1961 que caiam sobre a centenária cidade de Itapecuru Mirim, num final de tarde
cinzento do dia 21 de janeiro de 1961, aniversário de trinta e um anos de minha
mãe, Dona Raimunda Félix de Sousa. Eu tinha apenas onze anos, mas nunca
consegui esquecer os sons que os doze sinos de bronze que ficavam na cúpula da
igreja matriz fizeram daquela tarde chuvosa.
Eu conhecia bem os sinos, pois uma das
minhas travessuras com os amigos era subir às escondidas pelas escadas
cambaleantes de madeira até o último pavimento da velha igreja matriz, para
observar os sinos, os alto-falantes da Voz Paroquial, ali instalados, e
observar toda a paisagem da cidade que naquele tempo se estendia da Residência
do DER até a Trizidela.
Não era uma subida comum, pois tínhamos
que aproveitar um cochilo de “Seu Dazi”, o sineiro, e entrar pela porta da
sacristia, que se localiza nos fundos da igreja. Muitas das vezes éramos flagrados
e a carreira era feia.
Na sacristia começava a aventura, pois ali
ficavam os paramentos, a imagem do “Senhor Morto”, devidamente postada sobre um
caixão de madeira, coberta com um manto roxo de bordas amarelas e todas as
outras imagens que necessitavam de algum tipo de reparo ou pintura, além da
“matraca” que era usada na sexta feira da paixão, substituindo o som estridente
dos sinos, para chamar os fies para as missas e, ainda, um grande crucifixo de
metal brilhante, articulado a um cabo longo, também de metal trabalhado, que
era conduzido pelo “Seu Broca” nos dias de procissões.
A imagem do Senhor Morto só saia dali
nas sextas-feiras santas, para exposição no altar central da igreja e para o
cortejo em procissão, carregada pelas pessoas mais influentes da cidade.
Dali, íamos ao altar-mor, antes entrando
por uma passagem secreta que fica por detrás do referido altar e que poucas
pessoas sabem que existe. Passávamos por toda a extensão da nave da igreja e
chegávamos à pia batismal, localizada próxima à entrada principal, construída
em mármore branco, sempre com água benta e coberta com um tampão de madeira.
Logo após ficava o primeiro lance da
escada, essa em caracol, até atingir o primeiro piso ou “coro”, uma área ampla,
contígua à torre, com um baixo peitoril de madeira de onde se podia divisar
toda extensão da igreja, a nave central e as duas laterais. Era nesse espaço
que ficava o órgão que acompanhava às missas e que muitas vezes tentamos tocar
sem sucesso.
A partir daí, existiam mais três lances
de precárias escadas rangentes de madeira sem revestimento, até que se chegasse
à cúpula, local dos sinos. Se bem me lembro eram doze, enfileirados em colunas
de seis, dois pequenos, dois médios e dois enormes.
Eles ficavam suspensos acima de nossas
cabeças e, que me lembre, nunca tentamos tocá-los, até porque seria uma ação
suicida, pois seríamos pegados pelo Seu Dazi antes de descer as escadas.
Eu conhecia bem a voz dos sinos – eles cantavam
alegremente nas alvoradas matinais, todos ao mesmo tempo, como num coral
composto por crianças e adultos.
Para avisar aos fiéis que a missa ia
começar eram três chamadas com os sinos tocando freneticamente e de forma
ininterrupta, mas era possível identificar bem os sons graves e agudos, como
numa ladainha cantada.
Também tinham os sinais; toques pausados
dos sinos menores de sons agudos, quase um soluço, para avisar que alguém da
cidade tinha falecido de morte natural. Os sinais não eram permitidos para
situações de mortes violentas ou suicídio.
Naquela tarde, quase noite, entretanto,
eu ouvi sons que não conseguia identificar. Pareciam gritos desesperados e os
sons se misturavam em graves e agudos, abafados por um som maior, como um
trovão.
Era a torre da igreja matriz de Itapecuru
Mirim que desabava deste o seu “flèche”, uma espécie de pirâmide, encimada por
uma cruz de ferro fundido, trazendo junto os sinos, os alto-falantes, todos os
vãos de escadas e uma parte do coro, onde ficava o órgão. Tudo ruiu e se
acumulou em frente ao que antes era a entrada principal.
Lembro das campanhas realizadas pelo
padre, depois cônego, José Albino Campos, convocando a população para ajudar
voluntariamente na retirada dos entulhos e demolição dos restos de estruturas
remanescentes do desabamento que ameaçavam cair e dificultavam os trabalhos de
retirada dos tijolinhos maciços e restos de reboco.
Muita gente da comunidade para lá se
deslocava à noite para esse tipo de trabalho. Fui várias vezes com meu tio
Minzinho e não esqueço de uma cena em que ele com uma corda de segurança
amarrada à cintura, empurrava com os pés restos de paredes comprometidas no
alto do que sobrara da velha torre.
A velha Igreja Matriz de nossa cidade,
construída no local do antigo Cemitério do Areal, cujas obras foram concluídas
em 1944, na gestão do padre José de Jesus Dourado, conforme registro no livro
“Mariana Luz – Vida e Obra e Coisas de Itapecuru Mirim”, de autoria da
escritora itapecuruense Jucey Santana, tinha
um estilo neocolonial que, ao contrário do estilo ecletista, com referências no
exterior, buscava criar uma arquitetura que reafirmasse as raízes culturais
brasileiras, com o ressurgimento do estilo colonial.
Seguia, entretanto, o desenho
tradicional das igrejas católicas construídas em São Luís, uma nave central,
com janelas altas e grandes arcos de estilo romanos; um altar-mor e dois
secundários nas entradas laterais; uma sacristia; um coro; e uma torre com
cúpula, encimada por um flèche triangular e uma cruz de ferro fundido no topo.
A história das igrejas em Itapecuru
Mirim é longa e merece estudos mais aprofundados para esclarecer certos
detalhes ainda obscuros.
Remonta a 12 de julho de 1875! Nessa
data a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Itapecuru Mirim
encaminhou ao Promotor Eclesiático uma solicitação para construção de uma
capela para a santa de devoção. A decisão autorizativa só veio trinta e um anos
depois, em 10 de julho de 1816, firmada pelo Vigário Capitular Agostinho
Ferreira. Claro que a irmandade não esperou tanto tempo e logo após o pedido,
mesmo clandedinamente, erigiu sua igrejinha. Há, ainda, informações sobre a
existência de uma capela dedicada à Santa Cruz, que ainda não se sabe
exatamente sua real localização.
Conforme os registros já citados,
coletados pela escritora Jucey Santana, a capela de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos foi efetivamente construída no antigo Largo do Mercado, tendo
passado por uma ampla reforma em 1869 e desapareceu definitivamente em uma das
maiores enchentes do Rio Itapecuru, registrada em 1924.
Era uma igreja de porte médio,
construída em pedras, arcos e colunas e foi utilizada como sede da Paróquia de
Nossa Senhora das Dores, desde a sua criação em 25 de setembro de 1801, juntamente
com a criação da Freguesia, agrupamento de povoações paroquianas de toda essa
região. Essa igrejas da referida irmandade se estenderam pelas Ribeiras do Rio
Itapecuru, desde Rosário até Caxias.
A homologação da paróquia foi efetivada
pelo décimo terceiro Bispo do Maranhão, Dom Luís de Brito Homem, em 02 de março
de 1805.
Existem relatos mo mundo quilombola que
essa utilização da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, para sede da
paróquia, se operou à revelia dos
membros da irmandade, até porque os negros não tinham acesso às missas
juntamente com a elite branca, não entravam pela porta principal e ficavam
confinados em um espaço com estreitas janelas de onde podiam assistir às
celebrações, mas não podiam ser vistos pela plateia que estava na nave central
do templo. Por essa razão, os negros teriam jogado uma praga de que essa
situação seria revertida, praga que se consumou na enchente de 1924.
Há, ainda, o registro de que em 02 de
abril de 1841, o futuro Duque de Caxias, na campanha da Balaiada, fez uma vultosa
doação pessoal, lançou a pedra fundamental e escolheu um local para construção
da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores. Essa doação não foi utilizada para
construção da nova igreja, mas, possivelmente, e com a concordância do doador, para
a reforma da Igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos,
permitindo que se transformasse em um amplo templo.
Essa tese tem respaldo no fato de que
uma das estratégias militares usadas por Caxias era a cooptação de pessoas e
segmentos sociais organizados dos próprios negros, jogando-os uns contra os
outros. Nada mais cômodo para o exímio estrategista militar ter a Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na neutralidade ou se posicionando contra
os balaios.
E ele, habilmente, conseguiu o seu intento,
agradando a gregos e troianos, no caso à elite branca da cidade e também aos
negros da irmandade. Eu não tenho dúvidas de que essa generosa doação teve
motivação puramente militar. Restou dela a pedra angular, hoje exposta na Casa
de Cultura Professor João da Cruz da Silveira.
E mais, as campanhas para construção da
Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, essa que a torre desabou, só
começaram a ser realizadas a partir de 1928, oitenta e sete anos após a citada
doação, com a realização do “Festival Beneficente Artístico”, realizado no
Teatro Artur Azevedo e patrocinado por vários intelectuais itapecuruenses.
Essa estratégia de cooptação de
lideranças era uma tática de guerra e foi utilizada reiteradamente pelo futuro
Duque de Caxias, inclusive para realizar o ataque ao Quilombo de Lagoa Amarela,
quartel geral de Dom Cosme Bento das Chagas, localizado nas proximidades de
Brejo, que teve à frente um líder revolucionário dos balaios, Francisco Pereira
Pedrosa, amigo do Negro Cosme, anistiado e regiamente compepensado
financeiramente por Luís Alves de Lima e por ele mesmo instruído para a carnificina.
Aproximou-se do Quilombo utilizando o pretexto da antiga amizade como o líder
negro. Quantos inocentes morreram ali?
Era uma guerra, mas o ataque foi
covarde, traiçoeiro e vitimou centenas
ou milhares de inocentes, principalmente crianças e idosos. Os mortos de Lagoa
Amarela não foram contados! Os balaios com certeza também empreenderam
incursões assim, mas eles não obedeciam os rígidos códigos de ética militar e
nem eram pagos pelo povo brasileiro e, mais, cada um dos seus principais
líderes tinha a sua própria guerra.
Um outro fato curioso é que o mestre
Raimundo Lopes, mais um artista que um pedreiro, respeitadíssimo em Itapecuru
Mirim e região, trabalhou na construção da velha torre que desabou e, também,
na reconstrução da torre atual, sendo que nessa eu afirmo pois o vi várias
vezes nos andaimes talhando, caprichosamente, os acabamentos externos.
A nova a torre do prédio da Igreja
Matriz de Nossa Senhora das Dores foi reconstruída e inaugurada em 1 de janeiro
de 1965, na Festa de São Benedito, agora em estilo moderno, criando um contraste
com o restante do prédio que mantém seu estilo neocolonial.
JOSEMAR
SOUSA LIMA é economista, com especialização em Desenvolvimento Rural
Sustentável e membro da Academia Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes –
AICLA.
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