Hoje tem
Espetáculo?
- Tem sim,
Senhor!
Oito horas da
noite?
- Tem sim,
Senhor!
Hoje tem
marmelada?
- Tem sim,
Senhor!
Então arrocha
negrada ...
Por: Josemar Lima Série Crônicas – ano
III/nº 30/2016
Esse
era o refrão que mais de duas dezenas de meninos nus da cintura prá cima
repetiam pelas principais ruas da cidade de Itapecuru Mirim quando o palhaço
com seu megafone artesanal parava em cada esquina e convidava toda a população
para o espetáculo do Circo que acabara de chegar e armar suas empanadas na
Praça da Cruz. Arrochar significava colocar as mãos na cintura e rebolar até
chegar ao chão ... Eram poucos que conseguiam tal proeza, pois não possuíam as
habilidades das meninas conseguidas no uso constante dos bambolês.
Os meninos que tinham a sorte de ser
selecionados para “gritar palhaço”, e a guerra era acirrada, recebiam um número
gravado com tinta vermelha no braço e essa era a senha para entrar
gratuitamente no espetáculo da noite. Nessa tarde não se podia banhar no rio e
se o tentasse era com o braço para fora d’água para não perder a numeração e
comprometer a tão sonhada e suada garantia de participar da estreia do circo e
divertir-se com as diabruras do consagrado palhaço “Palmeirinha”.
Antes,
a maioria dos meninos que rebolavam na rua com o palhaço propagandista, já
tinha acompanhado a chegada do circo, a montagem das empanadas e da cerca de
arame farpado que a protegia para evitar que aqueles que não conseguiram a
seleção e a entrada gratuita, tentassem “varar”, ou seja, aproveitar uma
distração da vigilância e passar agachado por baixo do arame.
Fiz
isso várias vezes e algumas sem sucesso! O pior era sair pela porta principal
puxado pela orelha e receber uma sonora vaia: Varou! ... varou! ... varou! ...
Mas
existiam os especialistas em “varar” e nunca passar por esse vexame, entre eles
destaco o meu amigo e colega de turma de nome Zé Ageme, conhecido como “Nariz
de Metal”. Nunca vi tamanha habilidade, só comparável aquela do antológico “Zé
Diabo”, que não gritava palhaço, não pagava ingresso, e era o primeiro que
encontrávamos sentado nas arquibancadas, chamadas de poleiros. Os meninos que
podiam pagar ingressos geralmente ficavam nas cadeiras, próximas ao palco e com
vista privilegiada para os trapézios.
Meu
tio Zé Félix não entendia a nossa paixão pelo circo, minha e de meus irmãos, e
nos proibia terminantemente de “gritar palhaço”. Acredito que ele não suportava
ver seus sobrinhos rebolando ou arrochando publicamente. Era realmente
ridículo, mas a vontade de assistir ao espetáculo falava mais alto.
Nossa
tática para fugir do cinturão era contornar por uma rua paralela quando o
palhaço entrava pela Rua da Boiada, atualmente Senador Benedito Leite, e
reencontrar a turma uma quadra depois. Nem sempre funcionava e o couro comia
solto!
Os
circos dos anos sessenta, pelo menos a grande maioria, não possuía coberturas,
nem trailers, nem animais exóticos. Os artistas se abrigavam em uma pequena
tenda. Quando voltávamos do cotidiano banho no Rio Itapecuru, ali na Rampa
Velha, ficávamos espionando a barraca dos artistas para ver se conseguíamos ver
a bailarina. E confesso que aí reside um mistério: nunca conseguimos ver aquela
linda dançarina que se apresentava à noite, dançando e fazendo estripulias no
trapézio, só de biquíni e sutiã. Parece que eles escondiam a principal atração
durante o dia ou era mágica da maquiagem.
Os
espetáculos, sempre anunciados por um apresentador que falava castelhano, eram
divididos em duas partes: A primeira com as atrações gerais, entre elas a
participação dos palhaços, número de mágicas, trapézios, etc. A segunda era
geralmente uma peça teatral, drama ou comédia. Essa atração encerrava o
espetáculo!
Certa
vez testemunhei uma cena que nunca esqueço: A atração era o “Voo da Morte”,
situação em que dois trapezistas colocados em polos opostos se atiram no ar
simultaneamente e um deles se solta do trapézio e é resgatado em pleno espaço
pelas mãos ágeis do parceiro. Só que houve erro de cálculo e o coitado
estatelou-se no chão. Esqueci de dizer os circos de então também não dispunham
de redes de proteção. O artista voador foi parar na farmácia de seu Orlando
Mota, com várias escoriações e fraturas. Foi o final trágico do espetáculo
naquele dia.
De
outra feita foi anunciada uma atração especial em que um super-homem, recém-integrado
ao elenco, iria deslocar um caminhão pelo picadeiro do circo utilizando uma
corda presa aos cabelos. Ele tentou várias vezes sob intensa gritaria da
plateia, seus pés esburacaram o chão, a poeira cobria seu corpo suado e o
caminhão não se movia. A plateia cobrava a devolução do valor dos ingressos e o
apresentador, agora falando português, justificava que tinha sido a primeira
vez que tal fato acontecera. Posteriormente descobriu-se que o motorista por
pura maldade tinha deixado o caminhão engatado na primeira marcha.
Não
vou falar do amigo que passou uma semana sem aparecer na escola depois que
aceitou um convite do palhaço para participar de um número e, no final
convidado a acocorar-se, quanto se levantou deixou atrás de si uma dúzia de
ovos num ninho de palha.
No
verão de 1969, se não me engano, no período da Festa da Cruz, a cidade foi
sacudida com uma novidade que chegara e, numa tenda instalada próxima à aludida
praça, anunciava uma atração até então nunca vista. Uma cabeça sem corpo
exposta em uma bandeja sobre um pedestal de decorado com tecidos de ceda e
chita coloridos.
Filas
se formaram na estreia da inusitada atração. Confesso que fiquei impressionado:
Era um rosto humano, com olhos negros que pareciam verter lágrimas, piscavam
regularmente e os lábios se contraiam de quando em quando. Os cabelos longos
caiam sobre uma bandeja de prata ou similar. Havia na bandeja vestígios de
sangue como se tivesse havido uma decapitação recente. Naquela noite sonhei que
via a cena e acordei apavorado!
Havia
três dias que a atração era apresentada das seis da tarde até as primeiras
horas da madrugada, ininterruptamente. No quarto dia fiquei sabendo que um jovem
da cidade, Edilberto Freire Siqueira, conhecido como “Bertinho”, filho do então
vereador José Domiciano Siqueira, havia descoberto que a tal “Cabecinha Sem Corpo” na verdade se
tratava de uma menina de aproximadamente dez a doze anos, que era obrigada a
ficar naquela posição de pé e imóvel, sem comer ou beber água por horas a fio,
com o pescoço entrelaçado por uma falsa bandeja com furo central. Descobriu-se,
ainda, que a criança tinha sido raptada de seus pais em algum lugar do
Maranhão.
Essa
situação revoltou toda a cidade que se mobilizou e, com apoio das autoridades,
resgatou a criança e providenciou a sua devolução aos verdadeiros pais.
Recordo
que uma multidão, inclusive estudantes e professores locais, se concentrou
sobre a ponte Governador Antônio Muniz Barreiros (é esse o nome oficial da
ponte de concreto) e adjacências para se despedirem da “Cabecinha Sem Corpo” em
sua volta triunfal para casa de seus pais. Foi uma cena maravilhosa e que
mostra a identidade dos itapecuruenses com os valores vinculados historicamente
à liberdade e à justiça. Faço aqui uma homenagem póstuma à iniciativa do então
jovem “Bertinho” que, por estas e outras
iniciativas vinculadas à cidadania, chegou a ser perseguido pela ditadura
militar, só não sendo preso por milagre e algumas saídas estratégicas para o
interior do município.
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