quarta-feira, 1 de junho de 2016

CABECINHA SEM CORPO ...



Hoje tem Espetáculo?
- Tem sim, Senhor!
Oito horas da noite?
- Tem sim, Senhor!
 Hoje tem marmelada?
- Tem sim, Senhor!
    Então arrocha negrada ...


   Por: Josemar Lima                                                                     Série Crônicas – ano III/nº 30/2016

            Esse era o refrão que mais de duas dezenas de meninos nus da cintura prá cima repetiam pelas principais ruas da cidade de Itapecuru Mirim quando o palhaço com seu megafone artesanal parava em cada esquina e convidava toda a população para o espetáculo do Circo que acabara de chegar e armar suas empanadas na Praça da Cruz. Arrochar significava colocar as mãos na cintura e rebolar até chegar ao chão ... Eram poucos que conseguiam tal proeza, pois não possuíam as habilidades das meninas conseguidas no uso constante dos bambolês.
            Os meninos que tinham a sorte de ser selecionados para “gritar palhaço”, e a guerra era acirrada, recebiam um número gravado com tinta vermelha no braço e essa era a senha para entrar gratuitamente no espetáculo da noite. Nessa tarde não se podia banhar no rio e se o tentasse era com o braço para fora d’água para não perder a numeração e comprometer a tão sonhada e suada garantia de participar da estreia do circo e divertir-se com as diabruras do consagrado palhaço “Palmeirinha”.
            Antes, a maioria dos meninos que rebolavam na rua com o palhaço propagandista, já tinha acompanhado a chegada do circo, a montagem das empanadas e da cerca de arame farpado que a protegia para evitar que aqueles que não conseguiram a seleção e a entrada gratuita, tentassem “varar”, ou seja, aproveitar uma distração da vigilância e passar agachado por baixo do arame.
            Fiz isso várias vezes e algumas sem sucesso! O pior era sair pela porta principal puxado pela orelha e receber uma sonora vaia: Varou! ... varou! ... varou! ...
            Mas existiam os especialistas em “varar” e nunca passar por esse vexame, entre eles destaco o meu amigo e colega de turma de nome Zé Ageme, conhecido como “Nariz de Metal”. Nunca vi tamanha habilidade, só comparável aquela do antológico “Zé Diabo”, que não gritava palhaço, não pagava ingresso, e era o primeiro que encontrávamos sentado nas arquibancadas, chamadas de poleiros. Os meninos que podiam pagar ingressos geralmente ficavam nas cadeiras, próximas ao palco e com vista privilegiada para os trapézios.
            Meu tio Zé Félix não entendia a nossa paixão pelo circo, minha e de meus irmãos, e nos proibia terminantemente de “gritar palhaço”. Acredito que ele não suportava ver seus sobrinhos rebolando ou arrochando publicamente. Era realmente ridículo, mas a vontade de assistir ao espetáculo falava mais alto.
            Nossa tática para fugir do cinturão era contornar por uma rua paralela quando o palhaço entrava pela Rua da Boiada, atualmente Senador Benedito Leite, e reencontrar a turma uma quadra depois. Nem sempre funcionava e o couro comia solto!
            Os circos dos anos sessenta, pelo menos a grande maioria, não possuía coberturas, nem trailers, nem animais exóticos. Os artistas se abrigavam em uma pequena tenda. Quando voltávamos do cotidiano banho no Rio Itapecuru, ali na Rampa Velha, ficávamos espionando a barraca dos artistas para ver se conseguíamos ver a bailarina. E confesso que aí reside um mistério: nunca conseguimos ver aquela linda dançarina que se apresentava à noite, dançando e fazendo estripulias no trapézio, só de biquíni e sutiã. Parece que eles escondiam a principal atração durante o dia ou era mágica da maquiagem.
            Os espetáculos, sempre anunciados por um apresentador que falava castelhano, eram divididos em duas partes: A primeira com as atrações gerais, entre elas a participação dos palhaços, número de mágicas, trapézios, etc. A segunda era geralmente uma peça teatral, drama ou comédia. Essa atração encerrava o espetáculo!
            Certa vez testemunhei uma cena que nunca esqueço: A atração era o “Voo da Morte”, situação em que dois trapezistas colocados em polos opostos se atiram no ar simultaneamente e um deles se solta do trapézio e é resgatado em pleno espaço pelas mãos ágeis do parceiro. Só que houve erro de cálculo e o coitado estatelou-se no chão. Esqueci de dizer os circos de então também não dispunham de redes de proteção. O artista voador foi parar na farmácia de seu Orlando Mota, com várias escoriações e fraturas. Foi o final trágico do espetáculo naquele dia.
            De outra feita foi anunciada uma atração especial em que um super-homem, recém-integrado ao elenco, iria deslocar um caminhão pelo picadeiro do circo utilizando uma corda presa aos cabelos. Ele tentou várias vezes sob intensa gritaria da plateia, seus pés esburacaram o chão, a poeira cobria seu corpo suado e o caminhão não se movia. A plateia cobrava a devolução do valor dos ingressos e o apresentador, agora falando português, justificava que tinha sido a primeira vez que tal fato acontecera. Posteriormente descobriu-se que o motorista por pura maldade tinha deixado o caminhão engatado na primeira marcha.
            Não vou falar do amigo que passou uma semana sem aparecer na escola depois que aceitou um convite do palhaço para participar de um número e, no final convidado a acocorar-se, quanto se levantou deixou atrás de si uma dúzia de ovos num ninho de palha.
            No verão de 1969, se não me engano, no período da Festa da Cruz, a cidade foi sacudida com uma novidade que chegara e, numa tenda instalada próxima à aludida praça, anunciava uma atração até então nunca vista. Uma cabeça sem corpo exposta em uma bandeja sobre um pedestal de decorado com tecidos de ceda e chita coloridos.
             Filas se formaram na estreia da inusitada atração. Confesso que fiquei impressionado: Era um rosto humano, com olhos negros que pareciam verter lágrimas, piscavam regularmente e os lábios se contraiam de quando em quando. Os cabelos longos caiam sobre uma bandeja de prata ou similar. Havia na bandeja vestígios de sangue como se tivesse havido uma decapitação recente. Naquela noite sonhei que via a cena e acordei apavorado!
            Havia três dias que a atração era apresentada das seis da tarde até as primeiras horas da madrugada, ininterruptamente. No quarto dia fiquei sabendo que um jovem da cidade, Edilberto Freire Siqueira, conhecido como “Bertinho”, filho do então vereador José Domiciano Siqueira, havia descoberto que a tal “Cabecinha Sem Corpo” na verdade se tratava de uma menina de aproximadamente dez a doze anos, que era obrigada a ficar naquela posição de pé e imóvel, sem comer ou beber água por horas a fio, com o pescoço entrelaçado por uma falsa bandeja com furo central. Descobriu-se, ainda, que a criança tinha sido raptada de seus pais em algum lugar do Maranhão.
            Essa situação revoltou toda a cidade que se mobilizou e, com apoio das autoridades, resgatou a criança e providenciou a sua devolução aos verdadeiros pais.
            Recordo que uma multidão, inclusive estudantes e professores locais, se concentrou sobre a ponte Governador Antônio Muniz Barreiros (é esse o nome oficial da ponte de concreto) e adjacências para se despedirem da “Cabecinha Sem Corpo” em sua volta triunfal para casa de seus pais. Foi uma cena maravilhosa e que mostra a identidade dos itapecuruenses com os valores vinculados historicamente à liberdade e à justiça. Faço aqui uma homenagem póstuma à iniciativa do então jovem “Bertinho”  que, por estas e outras iniciativas vinculadas à cidadania, chegou a ser perseguido pela ditadura militar, só não sendo preso por milagre e algumas saídas estratégicas para o interior do município.

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