SÉRIE CRÔNICAS – ANO III /nº 32/2016
Por: Josemar Lima
A
ocupação das terras do Maranhão pelos colonizadores deu-se a partir do litoral
e seguiu-se pelo Rio Itapecuru até a sua nascente. Com ela surgiram os pequenos
aglomerados, nos quais nativos e exploradores passaram a ter uma convivência
muitas vezes perigosa.
Há
registros da presença de padres jesuítas da Companhia de Jesus na região do
município de Itapecuru Mirim desde 1615, três anos após a fundação de São Luís.
O
objetivo inicial dos jesuítas ia muito além da catequese e avançava para a
organização de povoamentos, implantação das chamadas missões, organização
administrativa vinculada diretamente à Igreja, precursora das vilas, após a
intervenção pombalina, e até a exploração econômica das terras com atividades
de agricultura e pecuária. Mais tarde, dedicaram-se às atividades educacionais,
principalmente nos seminários implantados na região.
Os
primeiros missionários a subirem o Rio Itapecuru foram os padres Manoel Gomes e
Diogo Nunes. Eles participaram das chamadas missões volantes, continuadas pelo
padre Luiz Figueiras e Lopo de Couto, todos portugueses, conforme registros
constantes no livro “Rio Itapecuru – Águas Que Correm Entre Pedras” de autoria
do Engenheiro Civil e Pesquisador Raimundo Medeiros.
Os
jesuítas traziam com eles um imenso estoque de conhecimentos na área da
ciência, das letras e das artes e uma cultura forjada muito longe da terra
brasilis. Encontraram também aqui nos velhos caciques muitos saberes acumulados
ao longo de milhares de anos de convivência com a terra, com as águas, com as
florestas e com os animais da região. Traziam uma identidade própria de sua
cultura e aqui se defrontavam com uma outra identidade que se nutria na cultura
indígena.
Um
dos primeiros e inevitáveis choques culturais entre os jesuítas e os índios,
com desfecho catastrófico, deu-se aqui em Itapecuru Mirim, em um Engenho de
Açúcar localizado às margens do rio, provavelmente ali na região do povoado Kelru.
Esse engenho, denominado “Engenho do Itapecuru”, pertencia a Antônio Muniz
Barreiros, primo de Antônio Muniz Barreiro Filho, governador do Maranhão no
período de 1622 a 1626, um dos mais aguerridos combatentes na expulsão dos
holandeses que, ainda em vida doou o engenho à Companhia de Jesus, com a
obrigação de que essa assumisse a tutela e educação de seu filho Ambrósio Muniz
Barreiros.
O
massacre ao Engenho do Itapecuru deu-se após o açoite pelos jesuítas de uma
escrava índia, punida por dar-se a qualquer um, como a personagem “Geni”, da
canção de Chico Buarque. Sentida, a escrava fugiu para o convívio de seus
parentes, os índios Tapuyas Uritis, onde queixou-se do castigo que havia sido
imposto por uma conduta que na cultura indígena era normal, a prática natural
do sexo. Na cultura dos missionários, não era; era sim, pecado mortal a prática
do sexo antes do casamento.
O
frei João Felippe Betendof, da Companhia de Jesus, assim descreveu o ataque dos
índios ao Engenho do Itapecuru, onde os padres jesuítas Francisco Pires, Manoel
Muniz e Gaspar Fernandes Foram trucidados impiedosamente:
“Os
Tapuyas chegaram armados ao acampamento onde estavam quatorze homens brancos e
alguns indígenas neófitos (batizados). Os padres acostumados a estas ações, não
fizeram caso, parecendo-lhes que um tiro de espingarda os afugentaria. Os
tapuyas foram se dispondo pelo terreno em volta das habitações, em preparo para
o ataque. Os portugueses então disparam uma arma de fogo sem bala, com a
intenção de afugentá-los.
Com
o tiro, a casa coberta de palha pegou fogo e os portugueses fugiram para o
mato, ficando apenas os três padres ajoelhados e de mãos postas frente aos seus
agressores, que comandados pelo cacique Butiron, quebraram-lhes as cabeças,
matando-os”.
O
lamentável episódio da morte dos jesuítas no Engenho do Itapecuru fez com que a
Companhia de Jesus interrompesse as atividades dos missionários em toda a
Província.
As
atividades dos jesuítas só foram retomadas em 1653, com a chegada ao Maranhão
do padre Antônio Viera. O jesuíta, com visão mais humanizada em relação aos
índios, preparou uma missão e mandou reatar as relações com os índios e
catequizar outras aldeias. Logo a Companhia de Jesus enfrentou problemas
políticos com o governo do Maranhão, defensor dos interesses dos colonos na
captura de indígenas para trabalharem com escravos nas fazendas, enquanto os
padres tentavam o aldeamento dos índios e criação das chamadas “Aldeias de
Paz”.
O
jesuíta tentou, por sua vez, explorar mais profundamente o Rio Itapecuru para
descobrimento e catequese dos índios Ubyrajaras, conhecidos também por
“Barbados”. Mas, apesar de ter planejado todos os detalhes, a missão acabou
sendo frustrada.
Teria
sido a primeira estada do Padre Viera ao Itapecuru para constituir as “Aldeias
de Paz. Somente anos depois da primeira tentativa frustrada de Vieira, os
jesuítas conseguiram realizar a jornada. Foram implantadas as aldeias de paz de
São Gonçalo e São Miguel. O padre João Vilar conseguiu a proeza de colocar os
índios “Barbados” e “Guanarés” na Aldeia de Paz São Miguel, localizada nas
proximidades da atual cidade de Rosário/Ma, mas as relações continuavam tensas
e os índios se negavam a receber a catequese e algumas jornadas estabelecidas
pelos missionários. Terminaram fugindo do aldeamento. Era o prenúncio de uma
nova catástrofe...
E
ela veio em meados de 1719! O chefe dos “Guanarés” mandou a São Luís um grupo
composto por oito índios pedir missionários para trabalhos de catequese na
aldeia e até ofereceram segurança contra os índios “Barbados” que infestavam
toda a região e ameaçavam os jesuítas. Os “Guanarés” expressaram preferência
pelo padre João de Vilar como missionário principal, alegando confiança no
religioso que os havia aldeado na Aldeia de Paz São Miguel.
Apesar
de saber do perigo e na esperança de seduzir a fé dos nativos desertores, o
padre João de Vilar aceitou o convite.
Os
missionários foram recebidos com festas e demonstrações de alegria. Terminadas
as festividades os índios retiraram-se para a floresta deixando os padres a
vontade na aldeia, pois já era noite.
Quando
todos já dormiam, ouviram-se gritos que vinham da floresta e, surpresos, viram
surgir uma multidão de índios armados de arco e flechas, para um ataque que
tinham cuidadosamente preparado juntamente como os índios “Barbados” contra o
padre que os aprisionaram na Aldeia de Paz São Miguel.
Foi
o segundo grande massacre de missionários jesuítas da Companhia de Jesus que se
consumou em território itapecuruense, sendo o padre João de Vilar o primeiro a
sucumbir. Seu corpo foi encontrado três dias após o morticínio e sepultado na
igreja de da Missão de Paz São Miguel, que pelo mesmo houvera sido construída.
No relato do massacre feito pelo padre Serafim Leite, constante no livro
“Companhia de Jesus no Brasil”, há uma referência de que os “Guanarés”
aprisionaram alguns neófitos (índios batizados) na Aldeia de Itapecuru, cujos
destinos jamais se soube. Esse relato sugere que Itapecuru foi também um
aldeamento tipo missão implantado pelos jesuítas, já em 1719, muito antes de
tornar-se povoação, freguesia ou vila. É um fato histórico!
Eram
os “Guanarés” e, principalmente os “Barbados” temidos pela crueldade e
inquietação para dar cabo aos missionários. Essa sanha possivelmente
originou-se das relações belicosas dos primeiros contatos e tentativas de
aldeamento em missões, como também uma resposta aos constantes ataques dos
portugueses para aprisioná-los e escravizá-los em trabalhos na agricultura e
pecuária.
Ainda
houve um terceiro massacre executado pelos “Barbados” a uma comitiva do
missionário jesuíta padre Gabriel Malagrida, nascido na Itália em 1689,
chegando a São Luís em 1721. Era um padre de muita coragem e se aventurava na
missão evangelizadora nas tribos ribeirinhas mais temidas, inclusive junto aos
“Barbados”.
A
emboscada ao padre Gabriel Malagrida sugere um verdadeiro roteiro de um filme
épico. Vou tentar resumir: Para a ação evangelizadora que iria fazer junto aos
“Barbados” tratou de selecionar e levar consigo vinte catecúmenos (índios
prontos para o batismo) da tribo dos “Caicazes” e ai foi o seu maior erro.
Os
índios receberam a delegação com a maior alegria, levaram-no carregado até a
palhoça preparada para seu descanso e imediatamente saíram para uma reunião do
conselho onde o mais velho deles relatou-lhes as injustiças e injurias que
tinhas sofridos dos índios Caicazes, seus inimigos figadais e decidiram
vingar-se.
À
noite, quando todos os ajudantes do padre já descansavam, os “Barbados” armados
de flechas e clavas, aos gritos, invadem a cabana e matam todos os vinte índios
“Caicazes”. O padre Malagrida, aterrorizado, sai em busca de água, inclina-se
sobre cada um deles e batiza-os. O padre Serafim Leite, já citado, faz um longo
de aterrorizante relato sobre o que aconteceu em seguida.
O
padre foi amarrado a uma árvore e todos os seus paramentos arrancados do corpo
e distribuídos entre os silvícolas que dançavam em sua volta.
Quando
o índio encarregado da execução ia deferir o golpe fatal uma velha índia da
tribo mandou parar aos berros dizendo que o executor dos primeiros jesuítas
tinha sido amaldiçoado e morrido de uma morte horrível e que a desgraça cairia
sobre a tribo de o padre fosse por eles assassinado. O cacique a ouviu e mandou
colocar o padre gravemente ferido em uma canoa e soltá-la no Rio Itapecuru, à
deriva.
A
canoa desceu vagarosamente levada pela correnteza e, mais abaixo, foi vista por
um índio Caicaiz que milagrosamente acordara após um longo desmaio e
refugiou-se nas matas próximas ao rio.
O
padre sobreviveu mais o índio que o salvou não teve a mesma sorte. O padre
Malagrida retornou a São Luís em 1725 e, com catequese e uso de armas,
conseguiu a fixação dos índios em Aldeias de Paz. Em São Luís mandou construir
um grande edifício para as missões religiosas, onde atualmente está instalado o
Hospital Geral e, em 1742, na povoação onde seria a cidade de Caxias/Ma, fundou
as primeiras escolas. Uma dessas escolas possivelmente foi instalada na
povoação de Itapecuru Mirim, no local conhecido como Quinta Velha, onde hoje se
encontra edificado o prédio da Associação do Banco do Brasil.
Os
trabalhos missionários da Companhia de Jesus sofreram interrupção brusca no
Maranhão no ano de 1760, quando o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas do
estado do Maranhão e Grão-Pará.
O
padre Malagrida salvou-se aqui, mas foi alcançado pela Santa Inquisição,
condenado sob a acusação de visionário relapso, herege e imoral, num processo
tumultuado e sem defesa, comandado pelo Marquês de Pombal. Amargou anos de
calabouço, veio a ser executado em Portugal, na madrugada de 21 de setembro de
1761. Foi enforcado e seu cadáver reduzido a cinzas.
Fica
uma pergunta: Teriam os índios “Barbados” e “Guanarés” motivos outros para
rebelarem-se da única forma que sabiam dos padres jesuítas? Afinal de contas todos
os relatos constantes aqui são da lavra de missionários, sem direito ao
contraditório e à ampla defesa.
Um significativo relato da nossa História Colonial. Parabéns ao confrade Josemar Sousa Lima !
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