Josemar Lima
Era o ano de 1973! Eu chegava de minha primeira
viagem ao Rio de Janeiro onde, após concluir o curso de edificações na Escola
Técnica Federal do Maranhão, licenciar-me da presidência do Clube de Jovens de
Itapecuru Mirim, naquele tempo com quase seiscentos associados, pegar uma carta
de recomendação do Professor Luís Bandeira de Melo, para que seus filhos lá
residentes me acolhessem nos primeiros dias e pegar um ônibus da Empresa
Itapemirim numa tarde de domingo, fui tentar o vestibular para o curso de
engenharia operacional, um curso de três anos, que era oferecido pela Escola
Técnica de Niterói.
Nem cheguei a me submeter às provas pois o exame
fora suspenso em virtude da maioria dos professores ter sido presa, sob a
acusação de incutir nos alunos ideais vinculados ao comunismo. Estávamos sob
plena vigência da ditadura militar que se instalara em 1964.
Ele era amigo do meu Tio Minzinho e, graças a isso,
tive a sorte de conviver um pouco com uma das maiores figuras humanas que
Itapecuru já produziu, mas, por esses mistérios incompreensíveis, Deus o levou
ainda jovem.
Refiro-me a Pedro Mendes, filho do Senhor Biné
Mendes, que conheci quando saia de uma missa de domingo desfilando nas ruas de
Itapecuru Mirim com sua batina preta de seminarista.
Não se tornou padre e nem podia pois era um boêmio
por natureza e amava todas as artes! Adorava compor e recitar poesias, fazer
serenatas, participar das mais diversas manifestações folclóricas de nossa
gente, resolver problemas intrincados de matemática, tanto é que optou por
formar-se em engenharia e, principalmente, irradiar alegria onde chegava.
Foi ele que me ofereceu uma carona no seu Jipe
Wyllis quando retornava a Itapecuru, depois de minha aventura no Rio de
Janeiro, onde meu sonho de engenheiro operacional foi pro brejo.
Mesmo ocupando altas funções no Governo do Estado,
sempre estava presente em Itapecuru Mirim, que ele confessava ser os melhores
momentos vividos.
Nessa viagem ele estava indo para participar de uma
Dança de São Gonçalo, no povoado “Moreira”, no interior do município, como
costumava fazer nos finais de semana livres. Era uma de suas paixões!
Até cantou algumas toadas ou loas enquanto dirigia,
consigo ainda lembrar de umas delas:
“Meu São Gonçalo do pé de alecrim
Me dê força nas pernas
Como porco no fucim”
A Dança de São Gonçalo chegou a Itapecuru Mirim
muito provavelmente com aquelas trinta famílias portuguesas, proveniente dos
Açores, que se instalaram no município em 1619, como parte de uma estratégia de
povoamento, miscigenação e difusão da religião católica tradicional.
Acredito até que a primeira Dança de São Gonçalo
tenha acontecido em Itapecuru Mirim, considerando que o primeiro registro
oficial de uma festa de São Gonçalo só veio a realizar-se na cidade de
Salvador, na Bahia, em 1718, pelo viajante francês Gentil de La Barbinais, com
participação do então vice-rei, Marquês de Angeja, padres, fidalgos, mulheres e
escravos que dançavam com tamanha intensidade que “faziam vibrar a nave da
igreja”. Nesse tempo os açorianos, negros escravizados e índios já dançavam o
São Gonçalo há quase um século nas ribeiras do Itapecuru ...
Na cidade do Porto, em Portugal, o ato de se dançar
nas ocasiões de comemorações a São Gonçalo era chamado de Festa das Regateiras,
ocasião em que participavam as mulheres que desejavam encontrar um marido. Essa
celebração espalhou-se pelo Brasil e o dia do santo era comemorado em 10 de
janeiro, com romarias e festas. Atualmente, como acontece em alguns povoados de
Itapecuru Mirim, a dança e reza acontecem por tradição de família ou quando
alguém faz uma promessa e tenha alcançado a graça requerida.
O promesseiro é quem organiza a função,
administrando todo o processo necessário à realização do ritual. É realizado
geralmente numa “latada”, local preparado com cobertura de palhas de palmeira
de babaçu, geralmente nos terreiros das moradias interioranas. Ali se arma um
altar com a imagem do santo e também de outros, geralmente aqueles de devoção
nos povoados ou que destes sejam padroeiros ou padroeiras.
É um frente ao altar que se desenvolve toda a
dança!
Os dançarinos se organizam em duas fileiras, uma de
homens e outra de mulheres, voltadas para o altar. Cada fileira é encabeçada
por dois violeiros, mestre e contramestre, que dirigem todo o rito. Há
variações de região para região, as vezes os violeiros são representados por
sanfoneiros.
A dança é dividida em partes chamadas de “volta”, cujo número varia de cinco, sete, nove, e até vinte e uma. Entre cada volta há uma interrupção e todos aproveitam para se servir das iguarias oferecidas pelo promesseiro e tomar uma boa dose de pinga para limpar a garganta.
As voltas são desenvolvidas com os violeiros
cantando à duas vozes, loas a São Gonçalo, como aquele que o saudoso Pedro
Mendes cantou prá mim na viagem, enquanto os dançarinos sapateando nas fileiras
em ritmo sincopado, dirigem-se em dupla até o altar, beijam o santo, fazem uma
espécie de deferência e saem sem dar as costas para o altar, ocupando os
últimos lugares de sua fileira.
Cada volta pode durar de meia até duas horas ou
mais, dependendo do número de dançadores. Na última volta forma-se uma grande
roda onde o promesseiro participa da dança, carregando solenemente a imagem do
santo, retirada do altar e os dançarinos agitam lenços brancos.
Há variações na Dança ou Festa de São Gonçalo – No
Paraná, as “voltas” recebem nomes especiais, como “despontam”, “marca-passo”,
“parafuso”, “confissão” e “casamento”.
Já em Minas Gerais é considerada a dança de votos
das solteironas que desejam casamento. A dança é desenvolvida por dez ou doze
pares de moças, todas vestidas de branco, cada uma delas levando um grande arco
de flores. O movimento das voltas é ordenado pelo marcante, como nas quadrilhas
juninas, única figura masculina presente.
Em Portugal, na cidade de Amarante, as rodas de São
Gonçalo acontecem durante a Festa de Nossa Senhora do Rosário. Participam dessa
dança, igualmente, as moças que buscam arranjar um marido que, em pares e
vestidas de branco, empunham um arco ornamentado de flores e fitas
multicoloridas e acontecem em cortejos pelas ruas da cidade após a missa.
Em Pernambuco as moças vestem-se com saias azuis e
blusas brancas. Na Bahia, meu rei, a indumentária é livre ...
No estado de Sergipe, a tradição tem a referência
de um padre português que introduziu a dança como pretexto para atrair os
infiéis à igreja, catequizando-os e incutindo-lhes a prática do casamento. O grupo
é conduzido por um “mestre” tocador de viola, um “contramestre” que toca meia
cuia e dois guias. A dança é executada em nove rodas, divididas em treze
partes, apresentando coreografia diversificadas.
No município de Laranjeiras, em Sergipe, no povoado
de Mussuca, essa dança é executada somente por homens (negros em sua maioria).
A única mulher presente tem o papel de carregar o santo.
A tradição popular considera São Gonçalo como um
santo casamenteiro, tocador de viola e dançador, que convertia as mulheres do
cais, não as recriminando, mas tocando viola e dançando com elas, colocando
pregos nos sapatos para martirizar-se.
Itapecuru Mirim tem muitos povoados tradicionais
onde a Dança de São Gonçalo ainda é praticada com frequência e seria um tributo
ao nosso querido conterrâneo Pedro Mendes, não deixar que essa manifestação
folclórica já incorporada à nossa cultura dela se desgarre e se perca pelos
caminhos do irresponsável esquecimento.
*JOSEMAR SOUSA LIMA é economista, com
especialização em Desenvolvimento Rural Sustentável e membro da Academia
Itapecuruense de Ciências, Letras e Artes – AICLA
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