*Wanda Cunha
Junho
chegou. É tempo de colher a metáfora de minhas primaveras no
hemisfério norte: sessenta e uma. Mas, sem norte, percebo pelo meu hemisfério
esquerdo que é outono neste cinco de junho, quando as folhas começam a cair e
com elas, a ficha. Mudanças. Mas olho para trás e descubro o tempo
inoportuno vivido e a falta de oportunidades pra vivê-lo de novo de outra
forma. As flores que brotam da terra se contrapõem às folhas que caem e rolam ao vento até que a
terra as devore.
Fosse
eu discípula de Nietzsche, aceitaria a acomodação do amor fati,
mas estou fatigada do eterno retorno não retornável, porque tudo é descartável.
E o que me sobra mesmo é a irreverência de não aceitar a forma como tudo começa
e termina. Carrego a incapacidade inexorável de saber ou não saber o que farei
depois, se será mais um capítulo do meu viver ou do não viver.
Não
quero pulverizar aqui o ser e o tempo heideggereano. Estou falando só do meu
ser, num tempo que não tem tempo pra parar e bater um papo comigo e
que consegue estabelecer contato com o ser-aí, mas não com o meu ser-aqui,
na desordem de viagens sem bagagens e sem paisagens,
porque na sua rota não há parada nas minhas estações.
Se sou
responsável pelo que sou, como sugeriu Sartre, por que tenho que aceitar ter
sido jogado no mundo como um projeto, pra só depois eu descobrir minha
essência? Mundo são mundos. E o mundo que não conheço está antes e depois de
mim. De onde vim? Não sei. Pra onde vou? Não sei. Estou no meio desse vir a
ser. Não existe trem-bala. Há, sim, uma bala na agulha de um trem
para atingir meu alvo-ser nos trilhos ou fora dele.
Se nasci
nua e estou vestida, é público e notório, mas – todos sabem – alguém ou alguéns me vestiram, ainda que hoje
eu
escolha as minhas próprias roupas. O certo é
que entro nos 61 anos com uma sensação de que já estou saindo sem tempo de
avaliar por onde passam as saídas e entradas e se ainda conseguirei abrir
portas, enquanto tantas se fecham.
As
minhas magias, só as encontrei em dois lugares: nos sorrisos que lancei e nas
lágrimas que me lançaram do precipício das minhas emoções para o meu rosto;
lágrimas rolantes de um alto mar para os desfiladeiros dos meus lábios, as
quais os meus dentes morderam, como se elas – as lágrimas – fossem sólidas,
porque viraram gelo.
Seria
kierkegaardiano dizer que pulei do alto do penhasco dos meus medos para as
minhas angústias e alegrias e só encontrei vazios nas asas da
liberdade? Tudo é Camus enquanto subo e desço na minha sina de ir e
de vir carregando a clausura escura do mito de Sísimo.
Parabéns
e para males, hei vivido a vida enquanto ela me engole sob a fantástica ironia
de imitar a morte. Mergulhei no rio de Heráclito onde se naufragaram todos os
seres que em mim habitaram e somente eu, um ser de muitos e mundos, sobrevivi
pra morrer na correnteza do seco. Crenças, rezas, receitas, religiões e
pensamentos filosóficos, passei por tudo; até por lutos e lutas, por guerra,
sexos e séculos; pandemias e academias; por céu e inferno. Mas esqueci-me de
passar por mim.
Por
isso, hoje me procuro e só encontro escombros: bolo queimado no forno, velas
sem luz, palmas sem mão para juntá-las. E eu, no meu tédio, sou
fantasma da minha própria sombra, porque não consegui ver o sol com
o qual eu pudesse projetar a minha imagem.
Arrisco
um palpite: cinco de junho vai passar tão rápido que nem terei tempo pra comer
o bolo queimado. Tudo desarrumado sobre a mesa: corpos e copos
descartáveis, restos de salgados e doces se misturam no fim da festa. E até que
chegue outro dia igual a este, cheio de presentes embrulhados com imagens do
passado, presos ao tênue fio invisível do futuro, já não serei eu mesma, não
saberei o que pedir pra beber ou comer; nem sei se estarei pra beber ou comer.
Uma
coisa é certa: os aniversários são como os enterros. Nos primeiros, as pessoas
sorriem, mas depois se despedem; nos últimos, as pessoas choram e
também se despedem. Nos primeiros, somos enterrados vivos; nos últimos, os
vivos nos enterram. Hora de apagar a velinha ou hora de acendê-la? A velinha...
No mar de cera, a velhinha a vela...
*Wanda Cristina da Cunha e Silva, poeta, cronista,
compositora, teatróloga, cordelista e musicista, Graduada
em Letras e Comunicação. Estreou
na Literatura Maranhense aos 12 anos de idade, com uma peça
teatral, “Sociedade Moderna”.
Publicações: “Uma Cédula de Amor no Meu Salário”, poesias (1981),
"Engraxam-se Sorrisos”, crônicas (1983), “Rede de Arame” (1986), poesias.
Em 1989, o título barroco, “Geofagia ruminante no sótão da preamar”, poema
estilo de cordelista, “Flor de Marias No
Buquê de Costelas” (1993). Lança, em 2009, o CD “Vida de Ouro e Amor de Prata”. Ganhou vários prêmios nas áreas
de Literatura e Música.
Li a crônica poética da nossa querida confreira. Um fato incontestável que cabe como uma luva na história de todos nós.
ResponderExcluirParabenizo a aniversariante, por ter chegado aos 61 anos com a lucidez poética,pelo espetacular texto,que nossa querida Jucey postou no seu blog.Um beijo para vcs.
Ainda sobre o texto. A Academia Luminense de Letras sente-se orgulhosa em ter empossado como membro do seu Quadro Efetivo essa espetacular intelectual.Ferreira da Silva, presidente da ALPL
ResponderExcluirObrigada confrade Ferreira, conviver com vc a partir do ano passado foi um dos grandes presentes que Deus me deu. Certamente que a minha lucidez poetica tbm seja motivada por este convívio. Grande abraço, minha admiração e gratidão.
ResponderExcluirQue texto! Filosofico e poetico. Quero mais informacoes sobre essa autora. Fiquei curiosa pra conhecer sua obra. Meu nome e Wanessa Viana. Sao Luus do Maranhao.
ResponderExcluirDificilmente a gente encontra um texto tão bem escrito e gostoso de ler. Qualquer leitor, de qualquer idade, fica encantado. Parabéns. Tereza Bezerra da Silva.
ResponderExcluirGrata pela socialização no blog!
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