segunda-feira, 1 de junho de 2015

A GUERRA DOS BEM-TE-VIS

A Balaiada, no Maranhão, foi descrita pela historiografia como um levante de facínoras e ladrões movidos pelo ódio aos brancos. Hoje já se tem uma ideia bem diferente do conflito
Matthias Röhrig Assunção
     A Balaiada foi um levante de ban­doleiros que infestavam os ser­tões do Maranhão e do Piauí, durante os anos 1838-1841.Facínoras, ávidos de rapina, o chamado "povo de cor" não tinha outras aspirações políticas além de um ódio genérico contra os brancos. Terá sido assim mesmo? É esta, pelo menos, a vi­são que perdurou até bem recentemente. Hoje já se tem uma outra ideia da Balaiada, movi­mento popular que não pode ser compreendi­do, evidentemente, fora do contexto dos conflitos políticos da Independência e da Regência. Na verdade, examinan-do-se de maneira isenta a documen­tação do período, percebe-se que o discurso dos rebeldes, ao contrário do que diz a historiografia oficial, aparece profundamente impregnado de ideais nativistas e liberais.
     O nome dado à revolta derivou-se da alcunha de um dos seus líderes, o Balaio, reputado, pela tradição, como o mais cruel e sanguinário dos rebeldes. Entre as suas façanhas constaria a de haver mandado costurar um leitãozinho vivo na barriga de uma de suas vítimas, na cidade de Caxias (MA). Esta visão satanizada do movimento deriva, em larga medida, do relato do escritor Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882), secretário de Luiz Alves de Lima no governo do Maranhão durante o conflito. A memória histórica e documentada da revolução foi pu­blicada poucos anos depois da revolta, em 1847. Nela, Magalhães pinta um quadro pouco favorável da pro­víncia do Maranhão, cuja população viveria, segundo ele, ainda em estado semisselvagem. A indolência dos maranhenses, tão deplorada por Magalhães e seus contemporâneos letrados, reflete sobretudo o seu des­prezo pelo modo de vida dos caboclos do interior.
     Tanto para a burocracia imperial quanto para os fa­zendeiros, somente o comércio ou a grande lavoura de exportação eram considerados fontes de riquezas. No caso do Maranhão, milhares de escravos do eito (a po­pulação cativa constituía 52% dos 216 mil habitantes recenseados da província) produziam o algodão e al­gum arroz para exportação. Trabalhavam também nas fazendas de gado no Piauí, na "baixada" e no sul do Maranhão. A área da grande lavoura se restringia às melhores terras dos vales de alguns rios e seus afluen­tes, como o Itapecuru, onde se concentrava a popula­ção escravizada. Nos interstícios desta economia es­cravista havia se desenvolvido uma produção campo­nesa. Os "caboclos" - termo que no Maranhão desig­na não somente o descendente de índio, mas qualquer pequeno produtor - plantavam mandioca, milho e feijão para sua subsistência, vendendo o eventual ex­cedente. Complementavam suaDIETAcom a colheita de frutas silvestres, a caça e a pesca.
     Eram justamente estas atividades que a elite es­cravista condenava, pois não as considerava como trabalho. Além do mais, o agricultor de subsistência não pagava impostos, e portanto era visto como inútil para o Estado. Desde a época colonial as au­toridades se queixavam da independência dos cabo­clos e tentavam controlar esta população por todos os meios. O recrutamento para as forças armadas era tido como a melhor solução para tirar o caboclo de sua "indolência" e forçá-lo a ser útil à sociedade.
     No Maranhão e no Piauí, a Independência foi conquistada pela força das armas de um exército de voluntários, alistados desde o Ceará, contra uma eli­te portuguesa, ou de origem portuguesa, que preten­dia manter a província dentro do império lusitano. Sua derrota, em 1823, quando as duas províncias "aderem" ao Império do Brasil, foi relativa, pois rapi­damente os portugueses reconquistaram posições de poder na esfera provincial. Por esta razão, ações con­tra "os portugueses" assumiram dimensões impor­tantes até bem depois da Independência. Reivindica-va-se a remoção dos portugueses de cargos impor­tantes ou mesmo a sua expulsão da província.
     Os conflitos políticos e sociais no Maranhão ten­diam a se sobrepor a antagonismos étnico-raciais. Após a Independência, por motivos de legitimação, os liberais tendiam a identificar a elite conservadora com "os portugueses" (independentemente do fato de que muitos tivessem nascido no Brasil), enquanto se apresentavam como o partido "brasileiro". Assim o Partido Liberal, ou "Bem-te-vi", como era chamado no Maranhão, reivindicava ser o legítimo represen­tante da nação brasileira. A hora dos liberais chegou com a abdicação de d. Pedro I (1831), quando a Re­gência introduziu reformas descentralizadoras que resultaram na eleição de assembleias provinciais e de autoridades locais, como os juízes de paz. Estes últi­mos passaram a deter o poder de polícia nos municí­pios e presidiam as mesas durante as eleições.

    Os conservadores, se não goza­vam de grande prestígio entre as classes populares, puderam contar com o apoio do governo central durante o Primeiro Reinado, e ain­da mais durante a reação centrali­zadora que, a partir de 1837, nova­mente alterou o equilíbrio das for­ças políticas no Império. Como su­cedeu em algumas outras provín­cias, o presidente do Maranhão, Vicente Camargo, um conservador, criou prefeituras em 1838. Os pre­feitos concentravam o poder de polícia em cada comarca e eram responsáveis pelo recrutamento. Nomeados pelo presidente da província, costuma­vam abusar de suas atribuições, perseguindo adver­sários políticos e procurando controlar, por todos os meios, a população pobre e livre.
     Os liberais se viram eliminados do poder não so­mente no âmbito regional, mas também na esfera política local, já que os juízes de paz eleitos tinham perdido suas atribuições mais relevantes. O recrutamento, em particular, era a arma predileta dos prefeitos para dispensar favores, disciplinar os recalcitrantes, e se li­vrar dos elementos considera­dos perigosos. Com cada fi­lho recrutado, a família camponesa perdia uma importante força de tra­balho. Por esta razão, muitas famílias caboclas decidiram esconder seus filhos em idade de servir nas matas, que nes­ta época ainda eram abundantes em toda a província. Levavam co­mida a lugares predeterminados, e assim muitos jovens conseguiram escapar daquilo que a memória oral passou a chamar de "Pega".
     O tempo do "Pega" pode ser con­siderado a fase de incubação da Ba­laiada, pois na segunda metade de1838 já havia muitos caboclos vi­vendo escondidos na mata para fu­gir ao recrutamento. Em novembro, Francisco Ferreira, apelidado de o Balaio, libertou um filho seu que, por ter resistido ao recrutamento, fora levado preso por uma pequena força, junto com mais alguns indivíduos considerados desertores. Este episódio é lembrado pela memória oral como o início da Balaiada. Foi também registrado nas fontes de arquivo, apesar de não ser mencionado pela historio­grafia. Esta, até agora, prefere a versão de que o Balaio, enfurecido pelo estupro de sua filha por um oficial do exército, jurou vingança e por isso cometeu toda sorte de latrocínios. Como este episódio é tão verossímil quanto o outro, podemos concluir que tal­vez tenham existido vários Balaios na Balaiada.
     No dia 13 de dezembro de 1838, o vaqueiro Rai­mundo Gomes, junto com nove companheiros, as­saltou a prisão da Vila da Manga para libertar seu ir­mão, preso, como recruta, pelo subprefeito da locali­dade. A ação de Gomes elevou a resistência ao "Pega" a outro patamar. Ele não somente empregou de for­ça para liberar um recruta, como fizera o Balaio, mas também fez uma proclamação política, inspirada nos princípios liberais. Nela, exigia o fim das prefeituras e do recrutamento arbitrário. Foi o estopim que atearia o fogo da revolta. Em pouco tempo, milhares de rebeldes, que se proclamavam do partido Bem-te-vi, se levantaram. E em cada região, a Guerra dos Bem-te-vis, como o episódio é conhecido na memória oral, assumiu características próprias.
     No sertão de Pastos Bons do Maranhão e na maior parte do Piauí, fazendeiros liberais de algu­mas posses, como Lívio Lopes, aderiram à revolta. No baixo Parnaíba e Maranhão oriental, milhares de caboclos também se levantaram. E no vale do Itapecuru, cerca de 3 mil escravos fugiram e consti­tuíram um formidável quilombo, na Lagoa Amare­la. Seu líder, chamado Cosme, se intitulava "Defen­sor das Liberdades Bem-te-vis" e buscava explicita­mente uma aliança com os rebeldes livres. Alguns autores acham que a distância entre livres e escravos aquilombados era grande demais para compor uma aliança viável. No entanto, muitos dos pobres livres viviam uma opressão muito próxima do cativeiro. O trabalho compulsório nas embarcações e estradas dos "índios domésticos", os habitantes das antigas aldeias, guardava muitos traços da antiga escravidão indígena. A repressão à liberdade de movimento dos forros também. Durante a primeira fase da re­volta, as forças da legalidade sofreram várias derro­tas importantes, e em julho de 1839 a cidade de Ca­xias foi tomada pelos rebeldes. Somente a remessa, pelo governo central, de tropas, dinheiro e de um general qualificado -Luiz Alves de Lima, o futuro duque de Caxias, que assumiu o comando unifica­do da província em fevereiro de1840 - consegue re­verter a situação.
     O general se utiliza da anistia imperial para dividir o movimento, forçando os rebeldes livres que se entregam a capturar os quilombolas. Alguns chefes bem-te-vis permanecem no mato fingindo que ainda são rebel­des, quando na verdade estão caçando escravos. Nesta últi­ma fase milhares de campo­neses, incluindo mulheres e crianças, se refugiaram nas matas. A memória oral registra que a tropa do governo "aparava crianças na ponta de espada", sugerindo que a repressão à Balaiada assumiu características de genocídio da população cabocla. No início de 1841, os últimos bem-te-vis são forçados a se entregar. Raimundo Gomes foi morto em circunstâncias pouco esclarecidas. O escravo rebelde Cosme é capturado e executado, após julgamento. Caxias enfim submeteu a província, mas a preço certamente muito alto.
Matthias Röhrig Assunção é professor na Universidade de Essex, Inglaterra, e autor de artigos e livros sobre a história do Maranhão, entre os quais A Guerra dos Bem-te-vis. A Balaiada na memória oral. São Luís: SIOGE, 1988.
Janaina Mello é professora assistente de História do Brasil na Universidade Estadual de Alagoas (FUNESA/ESPI) e doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Fonte: Revista Nossa História - Ano 4 nº 37 - Nov. 2006


ACESSO: http://act14-anjovida.blogspot.com.br/2014_05_01_archive.html

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