A Balaiada, no Maranhão, foi
descrita pela historiografia como um levante de facínoras e ladrões movidos
pelo ódio aos brancos. Hoje já se tem uma ideia bem diferente do conflito
Matthias Röhrig Assunção
A Balaiada foi um levante de bandoleiros
que infestavam os sertões do Maranhão e do Piauí, durante os anos 1838-1841.Facínoras,
ávidos de rapina, o chamado "povo de cor" não tinha outras aspirações
políticas além de um ódio genérico contra os brancos. Terá sido assim mesmo? É
esta, pelo menos, a visão que perdurou até bem recentemente. Hoje já se tem
uma outra ideia da Balaiada, movimento popular que não pode ser compreendido,
evidentemente, fora do contexto dos conflitos políticos da Independência e da
Regência. Na verdade, examinan-do-se de maneira isenta a documentação do
período, percebe-se que o discurso dos rebeldes, ao contrário do que diz a
historiografia oficial, aparece profundamente impregnado de ideais nativistas e
liberais.
O nome dado à revolta derivou-se da
alcunha de um dos seus líderes, o Balaio, reputado, pela tradição, como o mais
cruel e sanguinário dos rebeldes. Entre as suas façanhas constaria a de haver
mandado costurar um leitãozinho vivo na barriga de uma de suas vítimas, na
cidade de Caxias (MA). Esta visão satanizada do movimento deriva, em larga
medida, do relato do escritor Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882),
secretário de Luiz Alves de Lima no governo do Maranhão durante o conflito. A
memória histórica e documentada da revolução foi publicada poucos anos depois
da revolta, em 1847. Nela, Magalhães pinta um quadro pouco favorável da
província do Maranhão, cuja população viveria, segundo ele, ainda em estado
semisselvagem. A indolência dos maranhenses, tão deplorada por Magalhães e seus
contemporâneos letrados, reflete sobretudo o seu desprezo pelo modo de vida
dos caboclos do interior.
Tanto para a burocracia imperial quanto
para os fazendeiros, somente o comércio ou a grande lavoura de exportação eram
considerados fontes de riquezas. No caso do Maranhão, milhares de escravos do
eito (a população cativa constituía 52% dos 216 mil habitantes recenseados da
província) produziam o algodão e algum arroz para exportação. Trabalhavam
também nas fazendas de gado no Piauí, na "baixada" e no sul do
Maranhão. A área da grande lavoura se restringia às melhores terras dos vales
de alguns rios e seus afluentes, como o Itapecuru, onde se concentrava a
população escravizada. Nos interstícios desta economia escravista havia se
desenvolvido uma produção camponesa. Os "caboclos" - termo que no
Maranhão designa não somente o descendente de índio, mas qualquer pequeno
produtor - plantavam mandioca, milho e feijão para sua subsistência, vendendo o
eventual excedente. Complementavam suaDIETAcom a colheita de frutas
silvestres, a caça e a pesca.
Eram justamente estas atividades que a
elite escravista condenava, pois não as considerava como trabalho. Além do
mais, o agricultor de subsistência não pagava impostos, e portanto era visto
como inútil para o Estado. Desde a época colonial as autoridades se queixavam
da independência dos caboclos e tentavam controlar esta população por todos os
meios. O recrutamento para as forças armadas era tido como a melhor solução
para tirar o caboclo de sua "indolência" e forçá-lo a ser útil à
sociedade.
No Maranhão e no Piauí, a Independência
foi conquistada pela força das armas de um exército de voluntários, alistados
desde o Ceará, contra uma elite portuguesa, ou de origem portuguesa, que
pretendia manter a província dentro do império lusitano. Sua derrota, em 1823,
quando as duas províncias "aderem" ao Império do Brasil, foi
relativa, pois rapidamente os portugueses reconquistaram posições de poder na
esfera provincial. Por esta razão, ações contra "os portugueses"
assumiram dimensões importantes até bem depois da Independência. Reivindica-va-se
a remoção dos portugueses de cargos importantes ou mesmo a sua expulsão da
província.
Os conflitos políticos e sociais no
Maranhão tendiam a se sobrepor a antagonismos étnico-raciais. Após a
Independência, por motivos de legitimação, os liberais tendiam a identificar a
elite conservadora com "os portugueses" (independentemente do fato de
que muitos tivessem nascido no Brasil), enquanto se apresentavam como o partido
"brasileiro". Assim o Partido Liberal, ou "Bem-te-vi", como
era chamado no Maranhão, reivindicava ser o legítimo representante da nação
brasileira. A hora dos liberais chegou com a abdicação de d. Pedro I (1831),
quando a Regência introduziu reformas descentralizadoras que resultaram na
eleição de assembleias provinciais e de autoridades locais, como os juízes de
paz. Estes últimos passaram a deter o poder de polícia nos municípios e
presidiam as mesas durante as eleições.
Os conservadores, se não gozavam de grande
prestígio entre as classes populares, puderam contar com o apoio do governo
central durante o Primeiro Reinado, e ainda mais durante a reação
centralizadora que, a partir de 1837, novamente alterou o equilíbrio das
forças políticas no Império. Como sucedeu em algumas outras províncias, o
presidente do Maranhão, Vicente Camargo, um conservador, criou prefeituras em
1838. Os prefeitos concentravam o poder de polícia em cada comarca e eram
responsáveis pelo recrutamento. Nomeados pelo presidente da província,
costumavam abusar de suas atribuições, perseguindo adversários políticos e
procurando controlar, por todos os meios, a população pobre e livre.
Os liberais se viram eliminados do poder
não somente no âmbito regional, mas também na esfera política local, já que os
juízes de paz eleitos tinham perdido suas atribuições mais relevantes. O
recrutamento, em particular, era a arma predileta dos prefeitos para dispensar
favores, disciplinar os recalcitrantes, e se livrar dos elementos
considerados perigosos. Com cada filho recrutado, a família camponesa perdia
uma importante força de trabalho. Por esta razão, muitas famílias caboclas
decidiram esconder seus filhos em idade de servir nas matas, que nesta época
ainda eram abundantes em toda a província. Levavam comida a lugares
predeterminados, e assim muitos jovens conseguiram escapar daquilo que a
memória oral passou a chamar de "Pega".
O tempo do "Pega" pode ser
considerado a fase de incubação da Balaiada, pois na segunda metade de1838 já
havia muitos caboclos vivendo escondidos na mata para fugir ao recrutamento.
Em novembro, Francisco Ferreira, apelidado de o Balaio, libertou um filho seu
que, por ter resistido ao recrutamento, fora levado preso por uma pequena
força, junto com mais alguns indivíduos considerados desertores. Este episódio
é lembrado pela memória oral como o início da Balaiada. Foi também registrado
nas fontes de arquivo, apesar de não ser mencionado pela historiografia. Esta,
até agora, prefere a versão de que o Balaio, enfurecido pelo estupro de sua
filha por um oficial do exército, jurou vingança e por isso cometeu toda sorte
de latrocínios. Como este episódio é tão verossímil quanto o outro, podemos
concluir que talvez tenham existido vários Balaios na Balaiada.
No dia 13 de dezembro de 1838, o vaqueiro
Raimundo Gomes, junto com nove companheiros, assaltou a prisão da Vila da
Manga para libertar seu irmão, preso, como recruta, pelo subprefeito da
localidade. A ação de Gomes elevou a resistência ao "Pega" a outro
patamar. Ele não somente empregou de força para liberar um recruta, como
fizera o Balaio, mas também fez uma proclamação política, inspirada nos
princípios liberais. Nela, exigia o fim das prefeituras e do recrutamento
arbitrário. Foi o estopim que atearia o fogo da revolta. Em pouco tempo,
milhares de rebeldes, que se proclamavam do partido Bem-te-vi, se levantaram. E
em cada região, a Guerra dos Bem-te-vis, como o episódio é conhecido na memória
oral, assumiu características próprias.
No sertão de Pastos Bons do Maranhão e na
maior parte do Piauí, fazendeiros liberais de algumas posses, como Lívio
Lopes, aderiram à revolta. No baixo Parnaíba e Maranhão oriental, milhares de
caboclos também se levantaram. E no vale do Itapecuru, cerca de 3 mil escravos
fugiram e constituíram um formidável quilombo, na Lagoa Amarela. Seu líder,
chamado Cosme, se intitulava "Defensor das Liberdades Bem-te-vis" e
buscava explicitamente uma aliança com os rebeldes livres. Alguns autores
acham que a distância entre livres e escravos aquilombados era grande demais
para compor uma aliança viável. No entanto, muitos dos pobres livres viviam uma
opressão muito próxima do cativeiro. O trabalho compulsório nas embarcações e
estradas dos "índios domésticos", os habitantes das antigas aldeias,
guardava muitos traços da antiga escravidão indígena. A repressão à liberdade
de movimento dos forros também. Durante a primeira fase da revolta, as forças
da legalidade sofreram várias derrotas importantes, e em julho de 1839 a cidade
de Caxias foi tomada pelos rebeldes. Somente a remessa, pelo governo central,
de tropas, dinheiro e de um general qualificado -Luiz Alves de Lima, o futuro
duque de Caxias, que assumiu o comando unificado da província em fevereiro
de1840 - consegue reverter a situação.
O general se utiliza da anistia imperial
para dividir o movimento, forçando os rebeldes livres que se entregam a
capturar os quilombolas. Alguns chefes bem-te-vis permanecem no mato fingindo
que ainda são rebeldes, quando na verdade estão caçando escravos. Nesta
última fase milhares de camponeses, incluindo mulheres e crianças, se
refugiaram nas matas. A memória oral registra que a tropa do governo
"aparava crianças na ponta de espada", sugerindo que a repressão à
Balaiada assumiu características de genocídio da população cabocla. No início
de 1841, os últimos bem-te-vis são forçados a se entregar. Raimundo Gomes foi
morto em circunstâncias pouco esclarecidas. O escravo rebelde Cosme é capturado
e executado, após julgamento. Caxias enfim submeteu a província, mas a preço
certamente muito alto.
Matthias Röhrig Assunção é
professor na Universidade de Essex, Inglaterra, e autor de artigos e livros
sobre a história do Maranhão, entre os quais A Guerra dos Bem-te-vis. A
Balaiada na memória oral. São Luís: SIOGE, 1988.
Janaina Mello é professora assistente de História do Brasil
na Universidade Estadual de Alagoas (FUNESA/ESPI) e doutoranda em História
Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Fonte: Revista
Nossa História - Ano 4 nº 37 - Nov. 2006
ACESSO: http://act14-anjovida.blogspot.com.br/2014_05_01_archive.html
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