SÉRIE CRÔNICAS – ANO III/nº 33/2016
CRÔNICA DE SETEMBRO – A Chegada
do Trem de Passageiro na Estação de Itapecuru Mirim
Um
dos primeiros filmes dos irmãos Lumière, inventores do cinema, filmado em 1875,
mudo e com apenas cinquenta segundos de duração, mostra a entrada de um comboio
puxado por uma locomotiva a vapor em uma Estação de Trem, na cidade costeira
francesa de La Ciotat. Como a maioria dos primeiros filmes de Louís Lumière e
Auguste Lumière, “L’arrivée d’um Train em Gare de La Ciotat” consiste de uma
visão única, ilustrando um aspecto marcante da vida cotidiana.
Ao
ver a imagem não pude dissociá-la de uma outra que, com apenas sete anos, vivi
da Estação de Trem de Itapecuru Mirim, talvez a imagem mais significativa e
mais forte da minha pré-adolescência, depois da sentinela e sepultamento do meu
avô Raimundo Félix, numa tarde do dia 18 de novembro de 1956.
Era
uma manhã de sol do mês de setembro de 1957. Eu e minha mãe, Dona Raimundinha,
em nossa residência na Rua da Boiada, atualmente rua Benedito Leite,
preparávamos para ir à Estação de Trem para esperar meu pai que estava vindo de
um tratamento de saúde em São Luís. Coloquei minha melhor indumentária,
composta por uma calça curta de riscado azul, uma camisa branca, ambas
confeccionada na máquina Singer na qual minha mãe ganhava o sustento de todos
nós, e um tamanco novo para enfrentar o percurso de aproximadamente um
quilometro, inclusive a travessia da nova ponte de concreto recém inaugurada.
Mamãe, no auge dos seus vinte e sete anos, trajava um vestido verde, com
grandes flores amareladas. Era a primeira vez que eu ia conhecer um trem!
Depois
de enfrentar a estrada chegamos à Estação. Espantei-me com tanto burburinho e
segurei forte na mão de minha mãe. Só tinha visto tanta gente junta no largo da
igreja matriz e nas procissões. Fomos passando entre os transeuntes munidos de
suas malas e maletas de madeira, algumas polidas e outras com coberturas de
couro e guarnições niqueladas, até atingirmos a plataforma, um local mais
elevado onde desciam os passageiros da primeira classe. Lá ficamos com os olhos
fixos nos trilhos que pareciam ir se unindo quando mais longe nossas vistas os
alcançavam.
A
Estação estava lotada, inclusive com filas para a aquisição de passagens, mas
conseguia ouvir uns sons diferentes, intermitentes, que vinham de uma sala
interna do prédio. Mais tarde fiquei sabendo que eram as batidas do código Morse,
sistema de comunicação utilizado nas linhas férreas.
Uma
sineta, que lembrava em formato os sinos da igreja, pendurada acima de nossas
cabeças, foi acionada por um senhor com uma farda caqui, que pensei ser um
policial, mas era funcionário da Estrada de Ferro São Luís-Teresina e aí o
burburinho aumentou. Era o aviso que o trem estaria chegando em quinze minutos!
Aquela
sineta e meu coração pareciam bater juntos: ela, anunciando a chegada do trem;
o outro, palpitando querendo sair do peito. Eu suava por todos os poros!
Todos
olhavam insistentemente para o grande estirão de trilhos que avançavam para o
norte, quando vi o mesmo senhor que acionara a sineta descer a plataforma e
caminhar uns cinquenta metros até um local onde havia vários trilhos juntos,
agachar-se e puxar com dificuldade uma alavanca. Era a chamada agulha,
mecanismo que permitia à composição passar rente à plataforma e facilitar a
saída dos passageiros.
Estava
absorto olhando essa manobra quando ouvi dois estridentes sibilos ao longe e
levantei a vista: Meu Deus!
Vi no
horizonte, onde os trilhos se uniam, aparecer uma enorme cabeça preta soltando
tochas de fumaça branca para todos os lados e, novamente, aqueles estranhos
sons se repetiam, como berros enfurecidos. Na minha cabeça aquilo era uma
mistura de dois monstros que tinha visto recentemente num filme de Tarzan. Uma
grande cobra sucuri, com a cabeça de um búfalo enfurecido.
O que
era ansiedade se transformou em medo quando aquela coisa foi se aproximando
velozmente, agora também expelia uma fumaça preta por uma espécie de chaminé e,
ao tentar parar, suas enormes rodas de aço deslizavam freadas sobre os trilhos
e produziam um som estridente, como o ranger de dentes.
Eu
estava petrificado quando mamãe me pagando pelo braço arrancou-me daquele
estado de êxtase. Descemos a plataforma e fomos tentar encontrar papai que
vinha em um carro de segunda. Os carros de segunda classe não tinham bancos
estofados e os demais confortos da primeira classe, mas as passagens eram bem
mais acessíveis.
Agora
a loucura era maior porque o barulho da máquina a vapor se misturava com os
gritos de vendedores de frutas, bolos, comidas, água, pássaros engaiolados e
até papagaios... “Olha a boia! Esse parecia ser o grito que se destacava,
afinal já estávamos com o sol a pino.
Encontramos
meu pai que havia saltado também com a sua maleta de cedro e reclamava que sua
camisa branca de mangas compridas tinha sido queimada em vários locais pelas faíscas
que eram liberadas pela chaminé e as correntes de ar levavam para dentro dos
vagões.
Eu
não conseguia despregar os olhos naquela imensa máquina a vapor que continuava
mesmo parada a soltar vapores de água, que inicialmente pensei ser fumaça, por
todos os lados. Só na volta consegui passar mais perto daquele monstro negro e
verificar que havia dois homens com bonés azuis dentro naquela coisa. Eram os
maquinistas! Divisei também uma portinhola circular aberta e dois outros homens
com os dorsos nus jogavam toras de madeira para dentro de uma grande barriga
fumegante. Vi bem, no seu interior, labaredas de fogo e um imenso braseiro.
Na
volta, na estrada poeirenta e evitando as bicicletas, enchi meu pai de
perguntas e ele me fez uma breve descrição da viagem. Disse ter saído da
estação de São Luís às quatro horas da manhã e que ainda dentro da cidade foram
alertados a baixar as janelas, pois havia desocupados que frequentemente
arremessavam pedras sobre o trem.
Falou-me
também da passagem da composição sobre a Ponte da Estiva, com seus duzentos e
setenta metros de comprimento e, logo após, já raiando o dia, o grande lençol
verde dos campos de perizes, pontilhado de aves de todos os matizes,
principalmente as garças brancas como a neve.
Falou-me
da Estação de Rosário, com seus dois pavimentos e um grande galpão onde as
composições eram consertadas. Lembrou-se da mudança brusca de som quando a
composição passava pelas pontes de ferro construídas sobre os vários igarapés e
as constantes visões do Rio Itapecuru, que a estrada de ferro margeia desde a
saída da Ilha.
Deu
alguns detalhes sobre as Estações de Pirapemas e Kelru e de uma parada que o
trem fazia obrigatoriamente já nas proximidades de Itapecuru Mirim para abastecer
suas caldeiras com água. Era um processo demorado pois a máquina tinha que
fazer um acoplamento a uma caixa d’água que se localizava acima dela.
Explicou-me um pouco sobre o processo de funcionamento do sistema de propulsão
da máquina a partir do aquecimento da água pelo fogo e a produção do vapor que
é canalizado e distribuído alternadamente para produzir os movimentos das
rodas.
Eu
nem estava mais prestando atenção naquelas explicações técnicas, minha cabeça
estava agora imaginando uma luta de Tarzan com um monstro que tinha o corpo de
cobra e a cabeça de búfalo.
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