Conto de Daniel Ribeiro
A última noite do
festejo de Nossa Senhora do Rosário foi celebrada pelos brancos descendentes de
portugueses com a tradicional religiosidade católica, novenas, rezas do terço,
missas e encerramento com a procissão, porém, ainda estava por vir à grande
celebração da noite, quando a Irmandade dos Pretos do Rosário se reunia para
homenagear a sua padroeira como era tradição entre os escravos alforriados. A
fogueira por vezes era alimentada para esquentar os tambores que logo louvariam
com os seus ritmos sagrados as cantorias de roda, onde as negras pareciam
flutuar no ar, a cachaça rodeava de mão em mãos para aquecer a garganta dos
puxadores do tambor, Elesbão um dos mais experientes mestres da confraria e
também ajudante do sacristão da igreja, era o responsável pelo translado da
imagem sacra de Nossa Senhora do Rosário, logo após as chaves cerrarem as
portas da matriz e nenhum branco percorresse as ruas da pequena vila,
certificava-se sempre se os párocos da freguesia já estavam dormindo, sua
missão era garantir com segurança que a santa antes do amanhecer retornasse ao
altar central.
Os escravos eram
proibidos de frequentar as festas católicas tradicionais, no entanto mesmo
impedidos resistiam e mantinham seu calendário de devoção, adotado no Brasil
por volta do século XVI, para aliviar-lhes os castigos impostos pelos seus
senhores nas senzalas. Madruga adentro o sincretismo religioso reunia os cantos
dos pretos a declamar o rosário produzido a partir da semente de um capim
típico da região, cujas contas grossas, denominavam lágrimas de Nossa Senhora.
Terminado as rezas que misturava a língua nagô africana com o português vulgar
e o nheengatu língua dos tupinambás falada ao longo de todo o vale amazônico
brasileiro. Iniciavam-se as roda de tambor, a composição rítmica possuía basicamente
uma espécie de oratória cantada livremente como louvação a santa, homenagens,
fatos e desafios entre os cantadores, inspirados na dor e sonhos de liberdade
dos negros que mesmo alforriados sofriam a grande exclusão social. A punga,
saudação dada pelas mulheres na roda, além de convite a dança, representava a
presença dos orixás vindos d’África nos corpos negros africanos esculpidos em
perfeição a bailar em frenesi religioso.
Extasiados pelas
celebrações por toda a noite os negros da irmandade do Rosário amanheceram
satisfeitos em festejar mais uma vez a sua padroeira, símbolo de devoção e
encontro com o sagrado, libertavam-se a cada ano, sentiam-se livres do sistema
excludente que os aprisionava, contudo, ao retornarem ao seu cotidiano
permaneciam no anonimato religioso, não podiam manifestar a sua fé, muitas
vezes, percorriam longas distancias para participar dos cultos religiosos de
matriz africana, espalhados por toda a região da Ribeira do Itapecuru, do
Rosário Grande a Vila da Manga havia muitos terreiros, a maioria deles
escondidos dos olhares mais repreensivos, os homens brancos de religião cristã
não aceitavam tais manifestações consideradas por eles místicas.
No decorrer
daquele ano tudo seguiu como de costume, apenas rumores de batucadas dos negros
por toda a madrugada, comentavam os paroquianos da sossegada Ribeira do
Itapecuru, a não ser por um olhar mais atento de um ferrenho ex-capitão do
mato, a mando de dona Maria Cerqueira, latifundiária e beata católica que nunca
havia se convencido de que os negros precisassem de cultos religiosos, que a
atormentavam ao longo de décadas, por isso, contou com os serviços do cruel
perseguidor dos homens de cor, Manuca Bispo, testemunha ocular que delatou todo
o ocorrido da retirada da santa ao chefe da cadeia e câmara, na presença dos
padres e de outras beatas, além da sua mandatária, a herdeira de boa parte das
terras que um dia fora sesmarias ao longo das margens do Rio Itapecuru.
O negro Elesbão
fora condenado à prisão, e toda e quaisquer manifestações religiosas dos
ex-escravos estavam proibidas, sob pena de condenação ao enforcamento,
suspensas às celebrações dos pretos da irmandade, outubro aproximava-se e dia
sete, era o dia de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Chegava a tão esperada
oportunidade, em que os Pretos da Irmandade do Rosário organizavam um levante
contra a Vila e a Paróquia, assim, às vinte e três horas daquele dia ouvia-se
os gritos dos soldados de plantão da cadeia velha, contavam os mais antigos que
foram degolados, e nenhum negro que estava preso permaneceu ali, não obstante,
do outro lado da vila às portas da igreja matriz amanheceram arrombadas e no
altar-mor um imenso vazio, havia sido roubada a imagem sacra de Nossa Senhora
do Rosário.
Caixeiros
viajantes relataram na freguesia que cerca de duzentos homens e mulheres negras
rumavam pelos campos em direção a Vila de Santa Maria, antiga aldeia indígena,
posteriormente conhecida como Anajatuba, que em tupi significa abundância de
anajás. Região de campos alagados, o trajeto escolhido era de difícil acesso só
conhecidos por ex-escravos fugitivos, logo alguns foram vistos com uma grande
imagem enrolada em toalhas, deixaram um rastro de canto e danças a cada parada
entoavam os tambores em cantos de júbilo e liberdade. Na nova povoação ergueram
uma capela, cujo altar era todo esculpido em pedras e revelava uma riqueza
imensa de detalhes que encantava a todos aqueles que fossem devotos de Nossa
Senhora do Rosário, que mais tarde passou a ser padroeira daquela cidade e nome
oficial da paróquia.
A Ribeira do
Itapecuru ficou órfã de padroeira coube a um frade franciscano vindo da cidade
do Crato no Ceará, viajante por esses caminhos de peregrinação entre o
Maranhão, Piauí e o território cearense a missão de iniciar a devoção a Nossa
Senhora das Dores também padroeira da pequena povoação, “Tabuleiro Grande” que
depois passou a ser chamada de “Juazeiro do Norte”, terra de Padre Cícero. A
partir de sua chegada, frei Alteredo percebeu que a agitação era tamanha pela
pequena vila, então tratou de acalmar a euforia e a angustia dos paroquianos,
iniciando a devoção a Mater Dolorosa com a novena das Sete dores da Virgem
Maria. Após meses ainda carentes de sua mãe Nossa Senhora do Rosário, o
vilarejo encontrou nos braços de sua nova padroeira acalanto para seguir em
frente, assim, em setembro próximo como era celebrada no dia quinze passou a
ser tradição nessa pequena povoação. Venerada há mais de duzentos anos na
cidade de Itapecuru Mirim, passou a igreja matriz e a freguesia a ser
oficialmente conhecida como paróquia Nossa Senhora das Dores, posteriormente
reconhecida como a mais antiga da diocese de Coroatá do qual faz parte.
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