domingo, 2 de outubro de 2016

Relato de uma Viagem de Navio a Vapor pelo Rio Itapecuru



CRÔNICA DE OUTUBRO

Por: Josemar Lima                                                 SÉRIE CRÔNICAS – ANO III/nº 34/2016

Era julho de 1904 quando um cidadão aqui de São Luís, um conceituado advogado e político, resolveu fazer uma viagem até Teresina/Pi, utilizando o mais moderno meio de transporte regular existente à época – O Navio a Vapor! Ele ainda teve a iniciativa de registrar em um caderninho os principais episódios ocorridos desde a saída do navio aqui de São Luís até sua chegada ao porto de Caxias/Ma. 

As anotações do Dr. Araújo Costa foram organizadas e publicadas no Blog Arquitetura, Urbanismo e História, pelo seu produtor, arquiteto e urbanista caxiense, EZÍQUIO BARROS NETO. 

Ei-la, com algumas intervenções pontuais que não comprometem a essência do relato:
Sua epopeia começa no dia 17 de julho de 1904. O porto de embarque para navegação fluvial em São Luís ficava no Cais da Sagração, próximo ao Palácio do Governo, ponto turístico da capital e imortalizado no romance do escritor maranhense Josué Montelo. 

A ladeira existente hoje, que dá acesso à Praça Pedro II, se estendia em rampa íngreme até bem próximo ao Cais. Era por essa rampa que se tinha acesso aos barcos para embarque e desembarque. Era tradição os amigos e parentes acompanharem o viajante até à “Rampa do Palácio” para se despedirem e em alguns casos faziam-se discursos em sua homenagem, mesmo que a viagem fosse breve. Com o Dr. Araújo Costa não foi diferente! Às 20h00, oito da noite, ele embarcou a bordo do Vapor “Carlos Coelho”, acompanhado de amigos, onde recebeu desde desejos de boa viagem a discursos emocionantes. 

Á meia noite, após estridentes apitos, o “Carlos Coelho”, vagarosamente, movia suas pás laterais e zarpava pelas águas salgadas da Baia de São Marcos, buscando a embocadura do Rio Itapecuru, localizada na Baia do Arraial, anda no município de São Luís. 

Lendo o livro “CAMINHOS DO ITAPECURU – Uma viagem pelo Jardim do Maranhão”, de autoria do professor e escritor itapecuruense Tiago de Oliveira, recém  lançado e que tive a honra de prefaciar, constatei que os Navios a Vapor singraram as águas do Rio Itapecuru no período de 1849 até meados do século XX. Foi mais de um século de intensa navegação, desde aquele histórico dia de maio de 1849 quando a população da cidade de Rosário/Ma viu chegar ao seu porto o Vapor Gaiola “Caxiense”, pertencente à Companhia de Navegação a Vapor do Maranhão, que fazia a sua viagem inaugural. 

Os vapores navegavam no Rio Itapecuru levando a produção agrícola dos lugares que o margeavam e trazendo de São Luís os produtos manufaturados, máquinas e equipamentos para a região que mais se desenvolvia à época no estado do Maranhão. Os Navios a Vapor mais conhecidos foram “São Pedro”, “Rui Barbosa”, “Gomes de Castro”, “São Salvador”, “Ipiranga”, “O Maranhense”, “São Paulo”, “Santo Antônio”, “Carlos Coelho”, “Gonçalves Dias”, “Barão de Grajau”, “Rio Branco”, “Vitória” e “Balão”. 

O Navio a Vapor “São Salvador” tem um destaque especial, pois transportou o presidente Afonso Pena numa viagem de São Luís à Caxias, na primeira década do século XX.
Voltemos à viagem do Dr. Araújo Costa: 

O Navio a Vapor era o meio de transporte mais comum na época. Sem muito luxo e não dispondo de quartos individuais. Camarotes, como eram chamados os quartos, ficavam restritos aos funcionários mais graduados e ao capitão. Todos dormiam em redes. Alguns mudavam constantemente de lugar, pois o vai e vem da embarcação fazia com que se molhassem ou fossem atingidos por galhos de árvores que se projetavam das margens. Os passageiros se dividiam com os diversos tipos de mercadorias transportadas, inclusive animais. Nessa viagem, em particular, o Dr. Araújo Costa relata que no Navio a Vapor estavam sendo transportadas seis vacas, pertencentes a um tal de coronel Luís Rego, importante comerciante de Oeiras, com destino a sua cidade no estado do Piaui. De Caxias em diante, as vacas seguiriam por terra. 

No dia seguinte, 18 de julho de 1904, todos tomaram café a bordo do navio, como preparação para enfrentar a Cachoeira de Vera Cruz, lugar muito perigoso por causa das pedras submersas e só possível de atravessar com maré cheia. Graças as vacas do coronel piauiense, o leite foi abundante nessa refeição matutina. 

Ás 09h00 da manhã o navio acionava seus estridentes apitos e atracava no porto de Rosário/MA, cinquenta e cinco anos depois que “O Caxiense” ali aportara em sua viagem inaugural. 

Foi anunciada uma pausa de uma hora para embarque e desembarque de passageiros e cargas. Tempo suficiente para uma caminhada pela cidade e admirar a Estação do Trem, com dois pavimentos, e visitar a histórica igreja. Essas paradas eram importantes para que os passageiros adquirissem alguns mantimentos necessários à viagem, principalmente fumo e bebidas. 

Ás 11h00 da manhã do dia 18 de julho de 1904, o “Carlos Coelho”, acelerava suas máquinas para enfrentar a correnteza forte do rio, com destino à cidade de Itapecuru Mirim, passando antes pelos povoados de “Carema” e “Kelru”, ode fazia paradas para abastecimento de madeira e água para a fornalha e caldeira. 

À meia norte, já próximo da cidade de Itapecuru Mirim, o Navio a Vapor encalha, contratempo comum naquela época em que o rio já sofria os efeitos do assoreamento causado pelo desmatamento indiscriminado de suas margens, para a implantação de grandes fazendas de cana-de-açúcar e algodão e também pelo uso de suas áreas inundáveis pelas chamadas vazantes.
O trabalho foi intenso, envolvendo funcionários, passageiros e alguns ribeirinhos até que a embarcação se livrou dos bancos de areia. Na madrugada do dia 19 de julho de 1094 o “Carlos Coelho” acionou suas buzinas, reduziu sua aceleração e atracou no porto da cidade de Itapecuru Mirim, mais precisamente na Rampa Manoel Cobra, onde atracavam todos os vapores de linha.
As estridentes buzinas não foram suficientes para que algum estabelecimento comercial localizado à beira do rio abrisse suas portas e atendessem os sedentos passageiros. Os que seguiam viagem continuaram a bordo e esperaram o raiar do dia para subirem uma rua estreita e chegarem à lendária Rua do Egito, onde se concentravam as maiores lojas de tecidos e variedades da cidade. Alguns foram até à Praça do Mercado para provarem o famoso cuscuz de arroz regado ao leite de coco babaçu. 

Ainda não tinha sido construído o atual prédio do Mercado Municipal, só inaugurado em 1924, mas a feira funcionava ali há muitos anos. Ás 9h00 da manhã, após as providências de praxe o “Carlos Coelho” zarpou com destino a Vila de Cantanhede, aportando por lá já no finalzinho da tarde. Em Cantanhede/Ma, como nas demais localidades, as melhores construções se situavam as margens do Rio Itapecuru, onde se desenvolvia todo o comercio e o transporte fluvial contribuía para atrair todo o movimento das povoações para os portos. 

Seguia o Navio a Vapor pelas águas do Rio Itapecuru. Na madrugada do dia 21 de julho de 1904, o “Carlos Coelho” atracava no porto de Coroatá/Ma, após encalhar pela segunda vez.
Na cidade de Coroatá/MA, mais uma oportunidade de passeio pela cidade, compras de mantimentos e de enviar mensagens pelo serviço de telégrafo. 

Pela manhã, todos estavam a bordo, com destino à cidade de Codó/MA, onde o Navio a Vapor, sem incidentes no percurso, baixou suas âncoras após a meia noite do dia 22 de julho de 1904. Ficaram na embarcação até clarear o dia e embarque dos novos passageiros. Antes houve o tradicional passeio pela cidade, que era uma das mais desenvolvidas do vale do Itapecuru, com casas bem construídas e comércio pungente. Possuía imprensa e uma fábrica de tecidos. Assim como nas demais localidades nosso narrador teve tempo de visitar amigos e ainda almoçar na casa de um deles. 

Ao meio dia o navio apitou chamando todos para o embarque. Passadas algumas horas o “Carlos Coelho” zarpava para seu destino final, Caxias/Ma. 

Além dos portos das cidades com paradas regulares para embarque e desembarque e as vezes que encalhava, o Navio a Vapor parava em locais diversos para receber lenha, seu combustível básico, onde se demorava cerca de uma hora. Essas paradas improvisadas e com a mesma duração das paradas regulares irritavam os passageiros. 

Durante a viagem, para se passar o tempo, alguns passageiros praticavam tiro ao alvo, geralmente nos animais silvestres que apareciam no caminho. No fim da viagem os amigos totalizavam quantos pássaros, jacarés e camaleões tinham alvejado. 

Ás 8h00 da manhã do dia 25 de julho de 1904 o “Carlos Coelho” dava alguns apitos breves avisando estar próximo à cidade de Caxias/Ma. Era o tempo para arrumar as malas e preparar as mercadorias para o desembarque. Depois das 21h00, nove da noite, o Navio a Vapor finalmente chegava ao porto de Caxias/Ma. Oito dias depois do embarque festivo no Cais da Sagração, na cidade de São Luís, o “Carlos Coelho” chegava ao seu destino final. 

A viagem do nosso narrador, Dr. Araújo Costa continuaria agora por via férrea, pela recente construída Estrada de Ferro Caxias-Flores, atual cidade de Timon/Ma, onde atravessaria o Rio Parnaíba, o Velho Monge”, para ser recebido por amigos em Teresina, capital do estado do Piaui. O Dr. Araújo Costa ainda permaneceu por alguns dias em Caxias, onde tomaria banho no Riacho do Ponte e se apaixonaria pela cidade. 

No ano de 1906, dois anos após essa apoteótica viagem do Dr. Araújo Costa, chegava à Caxias/Ma, o então Dr. Afonso Pena, então recém-eleito presidente do Brasil. O seu percurso até Caxias/Ma pelo Rio Itapecuru trazia relatos de uma viagem cansativa e perigosa, devido a diminuição cada vez maior do curso d’água. O tempo de viagem aumentava a cada ano. Diz a lenda que foi devido a essa viagem que o presidente Afonso Pena, que constatou pessoalmente as dificuldades do transporte, autorizou a construção do trecho Caxias-São Luís, integrante da então Estrada de Ferro São Luís-Teresina. 

A construção da Estrada de Ferro São Luís-Teresina, concluída em 1921, aliada a degradação ambiental da Bacia do Rio Itapecuru decretaram a morte dos Navios a Vapor. Agora restam as lendas, como no Velho Chico, e os registros da era dos Vapores, como nas crônicas do jornalista itapecuruense Zuzu Coelho Nahuz que, quando menino, em uma grande enchente do Rio Itapecuru, viu uma dessas formidáveis máquinas ancorada em seu quintal. O “Carlos Coelho”, efetivamente morreu, conforme registros no livro “Rio Itapecuru – Águas que Correm entre Pedras”, de autoria do engenheiro e historiador Raimundo Medeiros, o Navio a Vapor descrito nessa crônica, naufragou em águas do Rio Mearim. 

Se você, prezado ribeirinho das margens do Rio Itapecuru, algum dia ouvir sons de esguicho d’água e apitos estridentes à meia noite de uma sexta-feira lá prá banda do rio, pode ser um Navio Vapor ressuscitado das profundezas que resolveu refazer o seu antigo itinerário pelo Rio Itapecuru ... Tudo é possível! 


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