Daniel Ribeiro
Às águas às
margens da tribo subiam demasiadamente, ganhavam outra tonalidade avermelhada,
barrenta e escura, era o sinal do espírito das águas, haveria de chover por
várias luas, previa Guaraci a filha mais nova do cacique em mais uma de suas
visões. Naquela tarde todos estavam preparando mais uma cerimônia para os
espíritos da floresta que haveriam de percorrer a costa do grande rio
“Itapicuru”. Segundo a tradição desses povos a cada 25 anos aconteciam grandes
cheias que inundavam o entorno do aldeamento, obrigando os índios a adentrarem
a mata em busca de abrigo.
Touceiras de
espinhos de tucum era o lugar preferido para a manifestação da presença dos
deuses, que logo arrebatariam todo o mal, trazido das águas de cima do grande e
majestoso Itapicuru. Os Uruatis respeitavam muito esse manancial sagrado que
garantia a sua sobrevivência, por isso, não permitiam nenhum cultivo na sua
mata ciliar, quem o fizesse sofreria punições severas. Após as oferendas serem
ofertadas a Tupã deus do trovão, raios e tempestades e a Caaporã protetor das
florestas e dos rios partiriam em retirada, respeitando os limites que haveriam
de inundar todo o leito. Os nativos construíam suas pequenas ocas em terras
muito acima do leito do rio, seus antepassados também entenderam a dinâmica das
inundações, por isso, adotaram um calendário de acordo com o ciclo das
enchentes, dividia o ano em dois longínquos períodos que seriam respectivamente
o tempo de Peurê, o senhor do verão e Nhará, que preside o inverno, o próprio
Itapicuru era sinônimo de divindade.
Entre as crianças
era contado à lenda do grande peixe, o “Surubim de Cama” que habitava o fundo
do rio, era um semideus violento e irritável, agitava as águas, e atormentava
os homens, protetor das espécies de peixes e animais aquáticos. Nessa ocasião
somente as mulheres aproximavam das beiras, os homens só poderiam tomar banho
nos igarapés, segundo Ubiracy o pajé da tribo, o terrível monstro assemelha-se
a um tubarão, implacável com aqueles que desobedecessem à estação de reprodução
dos peixes.
No entanto,
adorava receber enfeites, e pequenos outros peixes como o Jeju, Bodó,
Carambanja e o Cascudo encontrado principalmente nos igarapés e afluentes, eram
apresentados como oferendas somente pelas índias virgens da tribo, isso
acalmava as águas quando o gigante estava muito agitado. Reza ainda a lenda que
nas noites de lua cheia, o mesmo transforma-se em homem e seduzia suas
parceiras para margens dando continuidade a espécie de gente dessas matas.
A sabedoria dos
Tapuios passada de geração em geração transmitia os ensinamentos do cultivo da
terra, manipulação das ervas, e os ritos de celebração religiosa, além dos
segredos das florestas. A jovem Guaraci herdara o dom de prever as coisas,
desde criança tinha visões proféticas em seus sonhos. Numa madrugada chuvosa
sonhou que homens brancos, barbudos com um mau cheiro impregnado, usando
vestimentas que cobriam todo o corpo navegariam o majestoso rio acima
expulsando o seu povo, deitando com suas irmãs, e destruindo tudo que
encontravam em seu caminho.
Depois em outro de
seus apocalípticos sonhos, viu os primeiros colonizadores europeus que traziam
no seu corpo doenças, que foram dizimando a todos os povos indígenas da região.
Fazendo-os se deslocarem para terras mais ao sul que ficava há léguas de
distância. Os colonizadores começam a explorar o pau de tinta muito comum nessa
região, trocavam a madeira por objetos, colares, espelhos, pentes, entre outros
e tentavam ensinar ritos de uma religião que pregava um deus desconhecido pelos
indígenas, mas que prometia salvar-lhes de um fogo abrasador de um lugar
chamado inferno, tão logo, observaram que as terras eram produtivas
introduziram por essas brenhas o cultivo de cana de açúcar, algodão e arroz. As
terras eram doadas e seus proprietários que nem sabiam da sua dimensão exata
agora lavravam em cartórios documentos que os assegurasse a posse.
Em outra de suas
visões Guaraci aterrorizou-se ao ver que homens de uma terra afastada, separada
pelas grandes águas foram traficados de forma violenta, arrancados do seio da
mãe África, vieram aos montes nos porões insalubres de navios, desceram o
Itapicuru a trabalhar nas lavouras dessas velhas povoações de Rosário,
Itapecuru e Caxias. Morriam simplesmente por serem tratados de forma desumana. Todavia,
resistiram e foram formando grandes comunidades ao longo da beira do rio,
chamadas de quilombo. A cor de sua pele compôs todo o aspecto cultural dessa
gente nova, filha de índios, europeus e pretos.
Após sucessivas
invasões, resistência e extermínio de indígenas as vilas cresceram dando origem
a cidades prósperas do Maranhão. Principalmente com a produção de algodão que
durante a “Guerra de Independência dos Estados Unidos da América” alavancaria,
sendo o estado periodicamente o grande produtor, isso criaria uma elite
maranhense europeizada que via o Itapicuru como fonte de lucro e exploração.
Com a independência do país “Ianque” voltaria o Maranhão a viver da exploração
das drogas do sertão novamente e da forte dependência comercial com os
lusitanos. Desceram o rio povos vindos de outras nacionalidades sírio-libanês,
comerciantes por excelência também aqui fincaram o pé nas margens da divindade
desses povos, o rio Itapicuru.
O pajé Ubiraci
interpretava os sonhos da jovem índia Uruati como uma maldição dada aos homens
que haveriam de pagar um preço muito alto pela não preservação do rio, ao longo
dos séculos seguintes cheias devastadoras inundaria cidades, aumentariam a
proliferação de doenças, retomariam o leito devastado para o plantio. Haveria
sede e o caminho a ser seguido seria respeitá-lo como um deus que sempre fora
para os Tapuios Uruatis e tantos outros povos que assim o consideravam.
No último de seus
presságios Guaraci viu quando boa parte das espécies de peixes, aves e
mamíferos deixariam de existir nas dependências desse bioma, sofreu com fortes
dores, febre e convulsões, morreu quando pressentiu que seria muito difícil os
homens de outras gerações voltassem a amar o rio Itapicuru como dádiva, e sinal
de existência da própria vida, os seus descendentes ainda como derradeira gota
de esperança migraram para a cabeceira do Itapicuru, resistiriam até o fim da
própria vida para preservá-lo.
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