Josemar Lima SÉRIE CRÔNICAS – ANO IV/nº 37/2017
Ela percorria
diariamente, geralmente à tarde, as ruas arenosas e escaldantes e também as
duas únicas avenidas calçadas com pedras cabeça-de-jacaré que existiam na
cidade de Itapecuru Mirim. Andava retilineamente no centro das vias como se
fosse a porta-estandarte de um pelotão imaginário. Seus trajes finos chamavam
atenção pela variedade das cores e pelos adereços que usava.
A minha primeira
visão dela foi privilegiada! Da ala norte do imponente prédio da Prefeitura
Municipal de Itapecuru Mirim, onde trabalhava todas as manhãs como encarregado
dos cadastros rurais. O palácio municipal se alevanta do chão por quase dois
metros e, dali, tem-se uma visão ampla de toda a Praça Gomes de Sousa e áreas
adjacentes.
Lembro quando fui
chamado com certa insistência e
apreensão pelo amigo “Borá”, que ali também prestava serviço, mas dividia suas
tarefas com uma insistente preocupação com a larga janela arqueada que dava
para a rua.
– Acho que chegou
um circo! Dizia ele, apontando para a praça.
Cheguei até uma
das janelas laterais de onde tinha visão privilegiada do Itapecuru Social Clube
e, lá em baixo, como que desfilando pelo centro da antiga Rua da Boiada,
passando justamente pela parte lateral do clube em direção à Rampa Velha, pude
apreciar a figura de uma mulher morena, alta, que se destacava pela sua
indumentária luxuosa, extravagantemente colorida e uma tiara de flores naturais
sobre a cabeça. Lembrava os trajes estilizados de Carmem Miranda!
Os cabelos se
dividiam em dois longos cachos que escorregavam sobre os seios. Usava uma saia
longa, vermelha, que descia até aos pés e se encontrava com um sapato preto de
salto alto, que ela equilibrava magistralmente sobre as pedras irregulares do
calçamento. A blusa era de um amarelo-ouro, com mangas compridas e botões
dourados.
Confesso que nunca
tinha visto uma cena igual, nem quando vinha a São Luís e visitava a Rua
Grande, local onde desfilavam a riqueza e a beleza da capital.
Posteriormente
fiquei sabendo que Madalena, recém-chegada de Chapadinha, tinha perdido o
esposo e, com o trauma, boa parte das
faculdades mentais. Entre as ideais fixas, destacava-se essa de desfilar
diariamente toda a sua beleza exótica pelas ruas da cidade. Recebia,
entretanto, uma gorda pensão do falecido e isso lhe garantia uma vida sem
apertos e bancava os seus prazeres que afloraram após o falecimento do marido.
Ela residia
sozinha em um casarão lá para os lados do Mercado Público e não recebia
visitas. Passava as manhãs confeccionando e preparando suas roupas e suas
tiaras de flores naturais.
No dia seguinte no
colégio, nesse tempo eu cursava a segunda série ginasial, na Escola Normal
Regional Gomes de Sousa, o assunto era um só – O Desfile de Madalena! E
começaram a aparecer as mais diversas versões e uma delas versava sobre os seus
perfumes...
Dizia-se que ela
mesma fabricava em casa, para seu uso exclusivo, com mistura de flores, raízes
e essências, perfumes que nada deviam aos melhores de Paris.
A sua beleza
exótica logo começou a despertar paixões exacerbadas entres os jovens. Um
colega meu matava aulas para acompanhar sorrateiramente os passeios de
Madalena. A coisa agravou-se e ele passou quinze dias sem aparecer na escola.
Num sábado à tarde
resolvi fazer uma visita ao amigo e saber o que estava acontecendo; encontrei-o
deitado em uma rede na varanda da residência de seus pais, localizada no final
da Rua da Bica, não sei se essa rua ainda existe com essa denominação.
Espantei-me com
sua magreza e um silêncio sepulcral, completamente diferente de sua forma
habitual, alegre e brincalhão. Sua mãe serviu um café com bolo de goma. Comi
sozinho, pois ele nem tocou!
Quando eu já me
estava preparando para pegar a bicicleta e voltar para casa, percebi que ele
tirara o lençol do rosto e disse que queria contar-me uma história, mas que eu
jurasse que não contaria para ninguém mais ... saímos para o quintal, sentamos
debaixo de um pé de manga rosa e ele de olhos voltados para o chão e gaguejando
frequentemente, relatou-me o motivo de não ter ido à escola nos últimos quinze
dias:
Disse que
resolvera fazer uma visita surpresa ao casarão de Madalena. Escolheu um horário
que ninguém pudesse vê-lo. Esperou anoitecer e as luzes da cidade, após o
costumeiro sinal, apagarem-se completamente. Chegou tremendo à porta principal
e bateu com os nós dos dedos na grande porta de cedro.
Na segunda batida
a porta se abriu e Madalena, como se já o esperasse, mandou-o entrar mesmo sem
vê-lo direito. Foram até uma mesa grande na varanda sem trocarem nenhuma
palavra. Madalena vestia um chambre longo e transparente, que deixava
vislumbrar à luz da lamparina, os contornos do seu belo corpo. Meu amigo
tremia!
Mandou-o esperar
por um momento e entrou em um dos vários quartos do casarão e, quando voltou,
trazia nas mãos um “lavabo”, formado por uma grande bacia de porcelana e,
dentro dela, uma espécie de “cântaro” cheio de uma água amarelada e flores de
cores variadas. Sem pedir licença derramou todo o conteúdo na cabeça do meu
pobre amigo, encharcando-o da cabeça aos pés.
Literalmente, um
balde d’água fria nas terceiras ou quartas intenções de meu alquebrado amigo! O
pior é que aquele líquido começou a
exalar um cheiro tão forte e intenso que ele sentiu vertigens. Levantou-se
bruscamente e saiu quase correndo pelo corredor escuro até chocar-se
violentamente com a sua bicicleta Monark vermelha que havia deixado logo da
entrada do bendito corredor.
Sentiu um gosto
salgado na boca e ao passar a costa das mãos sobre a testa descobriu a imensa
brecha de onde jorrava muito sangue. E o cheiro intenso de flores continuava a
persegui-lo insistentemente como uma praga. Sua cabeça doía muito pelo
ferimento e pelo odor forte das flores que deviam estar ali num processo de
infusão ou coisa parecida.
E agora como
voltar pra casa naquelas condições e com aquele cheiro?
Resolveu, então,
ir até a Rampa do Adhir, que ficava na mesma rua e lavar-se nas águas do Rio
Itapecuru. Já passava da meia noite!
Encostou sua
bicicleta da calçada (naquele tempo não se falava em roubo, assalto, etc. E
quando sumia alguma coisa já se sabia que tinha sido o “Homem Branco”, o único
meliante de carteirinha que existia na cidade).
Desceu correndo a
íngreme rampa de pedras que ia até à margem do rio e jogou-se com roupa e tudo
nas águas mornas do Rio Itapecuru!
Ali passou imerso alguns minutos e quando saiu pensando ter
resolvido parte de seus problemas qual não foi sua surpresa ao sentir um odor
mais forte ainda e, dessa vez, o único aroma que chegavam ao seu nariz eram de
“cravo de defunto”, uma florzinha amarela muito presente no centenário cemitério
da cidade.
Tirou então a
calça comprida e a camisa que, inclusive era a camisa de farda escolar,
enrolou-a às calças e prendeu na garupa da bicicleta e lá se foi pelas ruas
apenas usando sua famosa cueca “samba canção” que ganhara de presente de aniversário
de quinze anos de uma tia que morava em São Luís.
A porta principal
de sua casa estava apenas encostada e ele entrou nas pontas dos pés, rezando
para que sua mãe não tivesse acordada. Teve sorte!
Foi até o quintal,
estendeu sua calça, camisa e cueca em um arame que servia de varal, armou sua
rede e tentou dormir com aquele cheiro de cravo de defunto que não lhe saia da
pele. Adormeceu...
No dia seguinte,
quando foi acordado para tomar seu café e explicar-se, todos da casa estavam se
queixando de um forte cheiro de cravo de defunto que vinha do quintal se
alastrava pela casa toda e aumentou quando ele se sentou à mesa!
Meu pobre amigo
foi então chamado aos aposentos dos pais e, passados alguns minutos, os demais
que tinham ficado à mesa do café, começaram a ouvir o estalar de chibatadas e
os gritos abafados do jovem aventureiro. As marcas lhe ficaram às costas e esta
era uma das razões da ausência à escola. Entendi perfeitamente!
E Madalena?
Sofreria ela de loucura ou seria apenas uma metáfora da Maria Madalena dos
Evangelhos? Maria Madalena urgiu Jesus com essências perfumadas trazidas num
cântaro de alabastro! Mera coincidência? Coisas que vão muito além de nossa vã
filosofia, como diria “Caneca”, outro personagem folclórico das ruas arenosas
de nossa cidade dos anos 60/70.
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