domingo, 1 de janeiro de 2017

OS PERFUMES MÁGICOS DE MADALENA



Josemar Lima                                                  SÉRIE CRÔNICAS – ANO IV/nº 37/2017 

Ela percorria diariamente, geralmente à tarde, as ruas arenosas e escaldantes e também as duas únicas avenidas calçadas com pedras cabeça-de-jacaré que existiam na cidade de Itapecuru Mirim. Andava retilineamente no centro das vias como se fosse a porta-estandarte de um pelotão imaginário. Seus trajes finos chamavam atenção pela variedade das cores e pelos adereços que usava. 

A minha primeira visão dela foi privilegiada! Da ala norte do imponente prédio da Prefeitura Municipal de Itapecuru Mirim, onde trabalhava todas as manhãs como encarregado dos cadastros rurais. O palácio municipal se alevanta do chão por quase dois metros e, dali, tem-se uma visão ampla de toda a Praça Gomes de Sousa e áreas adjacentes. 

Lembro quando fui chamado com  certa insistência e apreensão pelo amigo “Borá”, que ali também prestava serviço, mas dividia suas tarefas com uma insistente preocupação com a larga janela arqueada que dava para a rua. 

– Acho que chegou um circo! Dizia ele, apontando para a praça. 

Cheguei até uma das janelas laterais de onde tinha visão privilegiada do Itapecuru Social Clube e, lá em baixo, como que desfilando pelo centro da antiga Rua da Boiada, passando justamente pela parte lateral do clube em direção à Rampa Velha, pude apreciar a figura de uma mulher morena, alta, que se destacava pela sua indumentária luxuosa, extravagantemente colorida e uma tiara de flores naturais sobre a cabeça. Lembrava os trajes estilizados de Carmem Miranda! 

Os cabelos se dividiam em dois longos cachos que escorregavam sobre os seios. Usava uma saia longa, vermelha, que descia até aos pés e se encontrava com um sapato preto de salto alto, que ela equilibrava magistralmente sobre as pedras irregulares do calçamento. A blusa era de um amarelo-ouro, com mangas compridas e botões dourados. 

Confesso que nunca tinha visto uma cena igual, nem quando vinha a São Luís e visitava a Rua Grande, local onde desfilavam a riqueza e a beleza da capital. 

Posteriormente fiquei sabendo que Madalena, recém-chegada de Chapadinha, tinha perdido o esposo e, com o trauma,  boa parte das faculdades mentais. Entre as ideais fixas, destacava-se essa de desfilar diariamente toda a sua beleza exótica pelas ruas da cidade. Recebia, entretanto, uma gorda pensão do falecido e isso lhe garantia uma vida sem apertos e bancava os seus prazeres que afloraram após o falecimento do marido.
Ela residia sozinha em um casarão lá para os lados do Mercado Público e não recebia visitas. Passava as manhãs confeccionando e preparando suas roupas e suas tiaras de flores naturais. 

No dia seguinte no colégio, nesse tempo eu cursava a segunda série ginasial, na Escola Normal Regional Gomes de Sousa, o assunto era um só – O Desfile de Madalena! E começaram a aparecer as mais diversas versões e uma delas versava sobre os seus perfumes... 

Dizia-se que ela mesma fabricava em casa, para seu uso exclusivo, com mistura de flores, raízes e essências, perfumes que nada deviam aos melhores de Paris. 

A sua beleza exótica logo começou a despertar paixões exacerbadas entres os jovens. Um colega meu matava aulas para acompanhar sorrateiramente os passeios de Madalena. A coisa agravou-se e ele passou quinze dias sem aparecer na escola. 

Num sábado à tarde resolvi fazer uma visita ao amigo e saber o que estava acontecendo; encontrei-o deitado em uma rede na varanda da residência de seus pais, localizada no final da Rua da Bica, não sei se essa rua ainda existe com essa denominação. 

Espantei-me com sua magreza e um silêncio sepulcral, completamente diferente de sua forma habitual, alegre e brincalhão. Sua mãe serviu um café com bolo de goma. Comi sozinho, pois ele nem tocou! 

Quando eu já me estava preparando para pegar a bicicleta e voltar para casa, percebi que ele tirara o lençol do rosto e disse que queria contar-me uma história, mas que eu jurasse que não contaria para ninguém mais ... saímos para o quintal, sentamos debaixo de um pé de manga rosa e ele de olhos voltados para o chão e gaguejando frequentemente, relatou-me o motivo de não ter ido à escola nos últimos quinze dias: 

Disse que resolvera fazer uma visita surpresa ao casarão de Madalena. Escolheu um horário que ninguém pudesse vê-lo. Esperou anoitecer e as luzes da cidade, após o costumeiro sinal, apagarem-se completamente. Chegou tremendo à porta principal e bateu com os nós dos dedos na grande porta de cedro. 

Na segunda batida a porta se abriu e Madalena, como se já o esperasse, mandou-o entrar mesmo sem vê-lo direito. Foram até uma mesa grande na varanda sem trocarem nenhuma palavra. Madalena vestia um chambre longo e transparente, que deixava vislumbrar à luz da lamparina, os contornos do seu belo corpo. Meu amigo tremia! 

Mandou-o esperar por um momento e entrou em um dos vários quartos do casarão e, quando voltou, trazia nas mãos um “lavabo”, formado por uma grande bacia de porcelana e, dentro dela, uma espécie de “cântaro” cheio de uma água amarelada e flores de cores variadas. Sem pedir licença derramou todo o conteúdo na cabeça do meu pobre amigo, encharcando-o da cabeça aos pés. 

Literalmente, um balde d’água fria nas terceiras ou quartas intenções de meu alquebrado amigo! O pior é que aquele líquido  começou a exalar um cheiro tão forte e intenso que ele sentiu vertigens. Levantou-se bruscamente e saiu quase correndo pelo corredor escuro até chocar-se violentamente com a sua bicicleta Monark vermelha que havia deixado logo da entrada do bendito corredor. 

Sentiu um gosto salgado na boca e ao passar a costa das mãos sobre a testa descobriu a imensa brecha de onde jorrava muito sangue. E o cheiro intenso de flores continuava a persegui-lo insistentemente como uma praga. Sua cabeça doía muito pelo ferimento e pelo odor forte das flores que deviam estar ali num processo de infusão ou coisa parecida. 

E agora como voltar pra casa naquelas condições e com aquele cheiro? 

Resolveu, então, ir até a Rampa do Adhir, que ficava na mesma rua e lavar-se nas águas do Rio Itapecuru. Já passava da meia noite! 

Encostou sua bicicleta da calçada (naquele tempo não se falava em roubo, assalto, etc. E quando sumia alguma coisa já se sabia que tinha sido o “Homem Branco”, o único meliante de carteirinha que existia na cidade). 

Desceu correndo a íngreme rampa de pedras que ia até à margem do rio e jogou-se com roupa e tudo nas águas mornas do Rio Itapecuru! 

Ali passou imerso  alguns minutos e quando saiu pensando ter resolvido parte de seus problemas qual não foi sua surpresa ao sentir um odor mais forte ainda e, dessa vez, o único aroma que chegavam ao seu nariz eram de “cravo de defunto”, uma florzinha amarela muito presente no centenário cemitério da cidade. 

Tirou então a calça comprida e a camisa que, inclusive era a camisa de farda escolar, enrolou-a às calças e prendeu na garupa da bicicleta e lá se foi pelas ruas apenas usando sua famosa cueca “samba canção” que ganhara de presente de aniversário de quinze anos de uma tia que morava em São Luís. 

A porta principal de sua casa estava apenas encostada e ele entrou nas pontas dos pés, rezando para que sua mãe não tivesse acordada. Teve sorte! 

Foi até o quintal, estendeu sua calça, camisa e cueca em um arame que servia de varal, armou sua rede e tentou dormir com aquele cheiro de cravo de defunto que não lhe saia da pele. Adormeceu... 

No dia seguinte, quando foi acordado para tomar seu café e explicar-se, todos da casa estavam se queixando de um forte cheiro de cravo de defunto que vinha do quintal se alastrava pela casa toda e aumentou quando ele se sentou à mesa! 

Meu pobre amigo foi então chamado aos aposentos dos pais e, passados alguns minutos, os demais que tinham ficado à mesa do café, começaram a ouvir o estalar de chibatadas e os gritos abafados do jovem aventureiro. As marcas lhe ficaram às costas e esta era uma das razões da ausência à escola. Entendi perfeitamente! 

E Madalena? Sofreria ela de loucura ou seria apenas uma metáfora da Maria Madalena dos Evangelhos? Maria Madalena urgiu Jesus com essências perfumadas trazidas num cântaro de alabastro! Mera coincidência? Coisas que vão muito além de nossa vã filosofia, como diria “Caneca”, outro personagem folclórico das ruas arenosas de nossa cidade dos anos 60/70. 

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