Wanda Cunha
Duas crianças se encontraram na praia: uma menina de sete anos, olhos azuis e cabelos loiros; e um garoto de seis, olhos negros, bem moreninho.
As crianças sempre se atraem. E onde quer que estejam, por mais
que não se conheçam, elas se aproximam e trocam uma prosa.
A menina já estava na areia, fazendo um castelo, quando o menino
sentou-se ao lado dela e indagou:
- O que é isso?
Ela não estava para muito conversa:
- É areia, não tá vendo?
Ele ficou sem jeito, mas não perdeu o rebolado:
- Pensei que fosse um castelo.
- Mas é um castelo de areia, seu bobo.
Ele completou:
- Um castelo de areia e uma espiga de milho.
- Espiga de milho? – indagou a menina surpresa – Cadê a espiga de
milho?
O menino foi taxativo:
O menino foi taxativo:
- Tu é a espiga de milho.
A garota foi à forra:
- Tu que é uma espiga de milho... – titubeou – uma espiga...
espiga de milho queimado, um picolé de chocolate, um menino todo sujo de lama.
- Não sou sujo de lama, sou assim, da cor do meu pai. E tu, que é
magra como um palito de dente, como um...
O menino não completou a frase; mordeu os lábios, esfregou os
olhos e saiu chorando ao encontro da mãe:
- Mãe, aquela menina disse que eu tô sujo de lama.
A mãe foi ao encontro do filho:
- O que aconteceu, meu bem?
Ele repetiu entre soluços.
- Aquela menina – apontou para a menina – ela disse que eu tô sujo
de lama.
-Sujo de lama? Sujo de lama, por quê?
A mãe dirigiu-se à garota:
- Por que você disse que meu filho está sujo de lama?
A menina falou sem levantar a cabeça:
- Porque ele é chato, tem a cor de lama e é metido.
A mãe da menina foi ao encontro dos três:
- Qual é o problema?
- O problema – respondeu a mãe do garoto – é que sua filha disse
que meu filho está sujo de lama só porque ele é moreninho.
A menina retrucou:
- Mãe, ele disse que eu era uma espiga de milho.
As mães começaram a trocar farpas. A mãe do garoto elevou a voz.
- Você deve dar educação à sua filha. Não observa que isso que ela
falou é puro racismo e que racismo é crime inafiançável?
- Quem é você para dizer que minha filha é criminosa, sua
lambisgóia...
As duas mulheres perderam o equilíbrio emocional. Uma pequena
conversa de criança foi acabar na delegacia. E os pais que não estavam no
início da história, tomaram as dores das mães.
O delegado que estava de plantão pôde ouvir atentamente as duas
partes, ainda que as mulheres falassem concomitantemente e pelos cotovelos.
- Posso ver as crianças? – falou o delegado.
- Qual é? Quer prender minha filha? – questionou desesperada a mãe
da menina.
- Não, minha senhora. – Ponderou o delegado – Só quero conversar
com as crianças.
- Minha filha está no carro e não vai entrar nesta delegacia.
- Meu filho também não vai entrar aqui, doutor, ele só tem seis
anos.
O delegado usou de tranqüilidade:
- Não vou prender ninguém. Só quero conversar com as crianças.
Quando o delegado chegou à porta, viu as duas crianças sentadas na
beira da calçada de mãos dadas. Os pais ficaram atônitos. A autoridade ficou de
cócoras diante dos meninos:
- Muito bem, guris, seus pais estavam lá dentro brigando por causa de vocês, e vocês estão aqui de mãos dadas, felizes. O que me dizem disso?
- Muito bem, guris, seus pais estavam lá dentro brigando por causa de vocês, e vocês estão aqui de mãos dadas, felizes. O que me dizem disso?
A menina levantou os olhinhos cheios de brilho e fitou o delegado
com segurança:
- Esse aqui é meu coleguinha Humberto. Ele disse que era uma
espiga de milho e eu disse que ele...
O menino rematou:
- Ela disse que eu tava sujo de lama e que eu era um picolé de
chocolate.
O delegado explicou:
- Vejam só! Vocês não podem trocar esses apelidos. Você é Humberto
e você é...
- Meu nome é Alice – completou a menina.
- Pois é. Humberto e Alice, vocês devem chamar as pessoas pelos
seus nomes. Esse negócio de um apelidar o outro de picolé de chocolate e de
espiga de milho, isso é coisa feia.
A menina falou apertando as bochechas do garoto:
- É que eu gosto tanto de picolé de chocolate!...
O menino, acariciando o cabelo da menina, deu um sorriso maroto:
- Eu também gosto muito de espiga de milho.
*Wanda Cristina da Cunha
e Silva, graduada em Jornalismo e Letras, poetisa, cronista, teatróloga, compositora,
cordelista e musicista. Tem vários livros publicados e lançou vários CDs com
músicas de sua autoria.
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