*Heloisa Helena
Sueli aprumou os passos se preparando para correr,
uma grande, quase incontrolável vontade de olhar para trás, de olhar para
o rosto de quem lhe espreitava e ameaçava. Mas não podia fazer isso. Precisava
escapar. Não seria mais uma a fazer parte da triste estatística de feminicídio
no Brasil. É jovem, acabou de fazer vinte anos. Tem ainda muita coisa para
realizar.
Muito para viver. E sua mãe lhe esperava em casa.
Não podia decepcionar ou abandoná-la. A mãe só tem ela agora, depois de seu
irmão ter morrido com uma bala do policial ao sair de madrugada de uma balada.
Tão triste lembrar daquele dia não muito tempo atrás. Seu irmão tão alegre e
cheio de vida e de planos. Inteligente, engraçado. Fazia troça de tudo, de uma
sagacidade impressionante. Tinha ido comemorar o aniversário de um amigo e
nunca mais voltou. Nem chegou a ir para a universidade que tinha sido aprovado
com louvor. Foi mais uma vítima de "bala perdida". Impressionante
como as balas se perdem com mais facilidade em comunidades pobres. Sua mãe
nunca mais foi a mesma. Nunca mais voltou a sorrir. Passava o dia trancada em
casa, sem ânimo para nada, sisuda, amargurada, os olhos opacos e sem vida.
Quanta dor uma mãe carrega ao enterrar seu filho.
Tao difícil quando a história se investe. Não basta sofrer a dor de perder o
único e amado irmão, havia a infinita dor de não poder trazer luz de volta à
pobre mulher que agora só podia contar com ela. Por isso não há espaço para o
medo, para a entrega ou para a covardia ou mesmo para a coragem de enfrentar,
neste caso, sinônimo de morte. Calcula na mente o tempo que gastará até em casa
em debandada carreira e impulsiona o corpo para frente, as pernas obedecendo o
comando do cérebro em sintonia com o medo do inimigo. Seus pés ganham o
protagonismo esperado e parecem voar no asfalto molhado e pouco regular. Era
uma figura graciosa e esguia varando a noite envolta em sombras pela parca
claridade lançada em preguiçosos raios da luz amarelada que vinha dos poucos postes
de rua, os braços segurando com força a pequena bolsa de couro barato que
guardava em seu interior algumas poucas moedas e sua identificação. Atrás
carregava seus sonhos numa velha mochila jeans, o motivo de ter que sair, mesmo
sabendo o quão perigoso era se expor ao mundo fora de casa em noites que
escondem muito mais que o sol. Esconde a própria morte em homens que não
aceitam um não. Que não respeitam a vida, que são movidos pelo desejo de pegar,
tocar, estuprar e matar. Quantas vizinhas e amigas não foram mortas ou caladas
por dizer não. A vida vivida, completa, desfrutada e sem medo não foi feita
para as mulheres. Seus ouvidos detectam passos tão rápidos quanto os seus em
seu encalço e teme não conseguir chegar em casa. Seu coração disparado, os
olhos cegos de medo, as mãos e pernas trêmulas.
Aumenta ainda mais a velocidade e reza. Senhor
misericórdia, senhor me ajude. Sente o coque se desmanchar e seus cabelos
balançarem em volta do rosto, deixando-o ao alcance do marginal que a segue em
igual corrida. Ouve muito próximo o barulho da respiração e uma mão que tenta
desesperadamente lhe puxar pelo cabelo. Está há poucos metros de casa, olha a
luz da varanda acesa e impulsiona a cabeça para frente quando sente uma dor
enorme ao ser puxada para trás por seus cabelos, respira e sente os olhos
umedecerem de medo e ódio. Não, não será fácil não. Quando ele a puxa para si,
Sueli arremessa o corpo inteiro na direção dele ao mesmo tempo em que dá um
grito de raiva e horror. Surpreso com a reação dela, eles caem no asfalto
gelado, ele sobre ela, tentando dominá-la, ao mesmo tempo em que tenta evitar
com que grite, o que é inútil. Ela morde sua mão, arrancando pedaços de carne,
e o gosto horrível de sangue entre seus dentes, é infernal a dor que sente ao
receber no rosto vários socos, sua boca sangra e acredita ter perdido alguns
preciosos dentes. E volta a gritar. Seu algoz tenta novamente calar-lhe e ela
novamente o morde com a força que lhe resta e cospe em sua cara medonha.
Aproveitando sua surpresa e nojo, em um movimento ágil e
desesperado ela consegue soltar
uma mão e num procura desesperada pelo chão encontra um pedaço de viga de
alguma construção ali por perto, e enfia-lhe no rosto, bem próximo ao olho. Ele
se enche de ódio e dor e com ambas as mãos lhe aperta o pescoço, ela esperneia,
sem conseguir mexer o corpo com o peso dele sobre ela. Sabe que vai morrer e
chora lembrando da mãe lhe esperando inutilmente. Não, eu não posso morrer. E
em mais um esforço sobre-humano, retorce o corpo ao mesmo tempo em eu vê o olho
dele praticamente fora do lugar com a pancada certeira da viga. Consegue forças
para lhe acertar com o joelho no meio das pernas o que faz com que ele diminua
a pressão em seu pescoço. Muito cansada ela grita com todas as suas forças, o
que na verdade, não passa de um gemido, segundos depois, não vê mais nada.
Horas mais tarde recebe uma visita no hospital. Era
um rapaz alto e simpático com um tímido sorriso, cabelos curtos e arrumados por
gel. O boné azul numa das mãos. Parecia meio sem jeito. É o policial que
acertou o marginal que quase lhe tira a vida. E trouxe para lhe entregar
algo que ela não tinha sentido falta ainda, sua mochila jeans. Sueli
tenta sentar na cama e pegar sua mochila para olhar se não faltava nada. Mas
volta a deitar, com dor na cabeça e no corpo. Ele leva a bolsa até a cama e a
ajuda a abrir.
Ela com os olhos marejados, retira de lá um par de
sapatilhas amarradas numa fita de cetim cor de rosa. Um par de meias e uma surrada
colan de ginástica. Se abraça a elas, encolhendo o corpo pequeno em posição
fetal, com voz embargada fala que tinha que chegar em casa para dizer para a
mãe.
_ Mãe, eu fui selecionada para compor o corpo de
balé de uma grande companhia do Rio de Janeiro.
E chorou.
*Heloísa
Helena Santos de Sousa, caxiense, professora artista plástica, escritora, e especialista
em Literatura infanto juvenil pela UEMA. Laura foi o seu primeiro romance
publicado. É sócia fundadora da Associação dos Escritores Independentes - AMEI
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