sábado, 6 de fevereiro de 2016

OS TAMANCOS DE DONA COTINHA E OUTRAS HISTÓRIAS...


Josemar Lima                                                         Série crônicas – ano III/nº 26/2016
    
Conheci Dona Cotinha! Ela residia ali na Rua Benedito Leite, antiga Rua da Boiada, bem próximo à Creche Municipal. Era uma respeitadíssima  professora particular, com um enorme estoque de saber e famosa pelos seus métodos de fazer os seus alunos apreenderem a qualquer custo.

Ela usava um argumento quase infalível para os alunos que não acertassem suas perguntas, principalmente nas rodadas semanais de tabuada – Uma velha e surrada “palmatória”, temida por todos  aqueles que passaram por lá ou que os pais ameaçavam para lá mandá-los..

Dizem as más línguas que quando os alunos fugiam da palmatória ela usava um par de tamancos voadores que fazia mais estragos que uma dúzia de bolos com a palmatória de aroeira. Não posso confirmar,  pois felizmente, porque me livrei dos bolos, e infelizmente, porque não aprendi tabuada; não passei por lá.

Livrei-me da palmatória, mas não me livrei dos tamancos! Acho que foi o meu primeiro calçado depois daquele sapatinho de lã azul, feito artesanalmente, que minha mãe guardava como um troféu, mesmo que o tempo tenha roubado um dos pés. 

Acho que todos os meninos e meninas do meu tempo usavam tamancos!

Ainda havia os tamancos incrementados: Nos meus usava lonas de pneus velhos nos saltos e na parte dianteira e, com isso, eles ficavam mais elevados, resistentes e conseguia transitar  pelos mosaicos dos  corredores do Grupo Escolar Gomes de Sousa sem chamar a atenção dos inspetores escolares.

Depois vieram as alpercatas com solados de pneus usados, com coberturas mais elaboradas e, finalmente, as sandálias japonesas, que resistem até hoje com pequenas mudanças na denominação e nos detalhes.

Tamanco é a denominação de um tipo de calçado composto por uma plataforma de madeira leve como solado, com uma tira de couro trabalhado pregada na sua parte dianteira, um pouco acima dos dedos, para fixá-lo aos pés. Pelo menos era esse o modelo único que usávamos ai em Itapecuru Mirim. Lembro muito do meu primeiro tamanco, pois ele foi produzido na minha própria casa, ou seja, na oficina do meu tio Zé Félix, localizada no quintal de sua casa à rua da Boiada, onde eu residia para estudar e aprender a profissão de sapateiro.

Os tamancos foram utilizados e ainda os são em áreas rurais do norte da  Espanha (Astúrias, Cantábria e País Basco) e regiões de Castela e Catalunha, como calçado de trabalho no campo, além de proteção em fábricas, minerações e fazendas.Na Espanha para facilitar a fabricação se trabalha a madeira ainda verde de amieiro, faia, nogueira e outras madeiras leves. Ai em nossa região era usada largamente a paparauba, uma madeira branca, leve e de fácil moldagem. Existiam artesões, especialistas na produção das plataformas ou solados, habilmente talhados com facões bem amolados.

Há uma teoria de que a dança “sapateado” teve origem nos moinhos de algodão da Inglaterra, quando os operários, que utilizavam o dito calçado, para não escorregar no chão molhado, bailavam golpeando-os contra o solo ao ritmo dos teares.

Na França, os tamancos ou sapatos feitos de madeira são denominados “sabot”, vinculado à palavra francesa sabotage, porque os operários da indústria, quando em greve, costumavam colocar seus tamancos entre as engrenagens das máquinas para danificá-las.

Há alguns anos, numa programação do INCRA em Brasília/DF, assisti ao filme “A Árvore dos Tamancos”, que conta a história de um grupo de famílias que moravam num mesmo agrupamento de casas na área rural de Bérgamo, norte da Itália. Entre essas famílias encontrava-se a de Bastiti, que tem um filho com razoáveis dotes intelectuais e é convencido pelo pároco local a colocar o filho na escola em vez de utilizá-lo apenas na lavoura.

Para isso existiam enormes obstáculos: A escola ficava a seis quilômetros de caminhada e a família do menino vivia numa situação muito precária, com dificuldades até para comprar roupas e materiais escolares para ele.

Depois de transcorrido um razoável período de aulas, os tamancos do menino (por sinal os únicos que possuía) ficaram deteriorados e  impossível de serem utilizados. Bastiti, o pai, tenta dar um jeito na situação e, escondido, corta uma árvore da propriedade do senhor das terras, um latifundiário que vivia da exploração dos pobres lavradores no final do século XIX.
 Por esse “roubo” Batisti e sua família acabaram expulsos da propriedade.

O filme, considerado a obra mais importante do diretor italiano Ermano Olmi, produzida em 1978, retrata as dificuldades vivenciadas pelos trabalhadores rurais no final do século XIX, no norte da Itália, como exploração, sofrimento, medo, injustiças, servidão, etc.

Trabalha, também, o papel da religiosidade na vida dos camponeses como forma de ajudar a encarar e suportar a dureza da vida cotidiana orando ou rezando nos momentos mais cruéis. 

Mostra, ainda, que mesmo em circunstâncias tão adversas, a comunidade encontra  forças para tentar viver feliz. Faz festas e seus integrantes dançam, cantam, celebram casamentos, batizados e outros eventos festivos.

Lembrei muito da comunidade de “Felipa”, ai mesmo em Itapecuru Mirim, que nos anos setenta vivia espremida entre cancelas e cercas de arame farpado, sem espaço para suas roças anuais, e mesmo assim promovia verdadeiros festejos aos seus santos padroeiros e rememorava sua matriz africana com a dança do tambor de mina e a dança do coco sempre que era visitada e os visitantes não eram os jagunços das fazendas próximas.

Ainda temos por aqui muito do século XIX e mesmo agora vemos trabalhadores rurais, não apenas sendo expulsos de povoados fundados pelos seus ancestrais há mais de duzentos anos, mesmo sem cortar nenhuma árvore para fabricar um tamanco, mas assassinados impiedosamente por pistoleiros contratados por latifundiários. Alguns poucos pistoleiros são presos, mas nenhum dos mandantes está na Cadeia.

Viva o século XIX! Aqui a justiça do século XXI vem de tamancos desgastados...

Neste mês de fevereiro comemoramos os aniversários de nascimento de Joaquim Gomes de Sousa (15/02/1829); Newton de Carvalho Neves (14/02/1896); Luiz Gonzaga Bandeira de Melo (14/02/1915); Cônego José Albino Campos (04/02/1922); Osman dos Santos Coelho (09/02/1928);  todos patronos da Academia Itapecururuense de Ciências, Letras e Artes – AICLA e figuras icônicas da nossa rica história.



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