Josemar
Lima
Série crônicas – ano III/nº 26/2016
Conheci Dona Cotinha! Ela residia ali na
Rua Benedito Leite, antiga Rua da Boiada, bem próximo à Creche Municipal. Era
uma respeitadíssima professora
particular, com um enorme estoque de saber e famosa pelos seus métodos de fazer
os seus alunos apreenderem a qualquer custo.
Ela usava um argumento quase infalível
para os alunos que não acertassem suas perguntas, principalmente nas rodadas
semanais de tabuada – Uma velha e surrada “palmatória”, temida por todos aqueles que passaram por lá ou que os pais
ameaçavam para lá mandá-los..
Dizem as más línguas que quando os
alunos fugiam da palmatória ela usava um par de tamancos voadores que fazia
mais estragos que uma dúzia de bolos com a palmatória de aroeira. Não posso confirmar, pois felizmente, porque me livrei dos bolos,
e infelizmente, porque não aprendi tabuada; não passei por lá.
Livrei-me da palmatória, mas não me
livrei dos tamancos! Acho que foi o meu primeiro calçado depois daquele
sapatinho de lã azul, feito artesanalmente, que minha mãe guardava como um
troféu, mesmo que o tempo tenha roubado um dos pés.
Acho que todos os meninos e meninas do
meu tempo usavam tamancos!
Ainda havia os tamancos incrementados:
Nos meus usava lonas de pneus velhos nos saltos e na parte dianteira e, com
isso, eles ficavam mais elevados, resistentes e conseguia transitar pelos mosaicos dos corredores do Grupo Escolar Gomes de Sousa
sem chamar a atenção dos inspetores escolares.
Depois vieram as alpercatas com solados
de pneus usados, com coberturas mais elaboradas e, finalmente, as sandálias
japonesas, que resistem até hoje com pequenas mudanças na denominação e nos
detalhes.
Tamanco é a denominação de um tipo de
calçado composto por uma plataforma de madeira leve como solado, com uma tira
de couro trabalhado pregada na sua parte dianteira, um pouco acima dos dedos,
para fixá-lo aos pés. Pelo menos era esse o modelo único que usávamos ai em
Itapecuru Mirim. Lembro muito do meu primeiro tamanco, pois ele foi produzido
na minha própria casa, ou seja, na oficina do meu tio Zé Félix, localizada no
quintal de sua casa à rua da Boiada, onde eu residia para estudar e aprender a
profissão de sapateiro.
Os tamancos foram utilizados e ainda os
são em áreas rurais do norte da Espanha
(Astúrias, Cantábria e País Basco) e regiões de Castela e Catalunha, como
calçado de trabalho no campo, além de proteção em fábricas, minerações e
fazendas.Na Espanha para facilitar a fabricação se trabalha a madeira ainda
verde de amieiro, faia, nogueira e outras madeiras leves. Ai em nossa região
era usada largamente a paparauba, uma madeira branca, leve e de fácil moldagem.
Existiam artesões, especialistas na produção das plataformas ou solados,
habilmente talhados com facões bem amolados.
Há uma teoria de que a dança “sapateado”
teve origem nos moinhos de algodão da Inglaterra, quando os operários, que
utilizavam o dito calçado, para não escorregar no chão molhado, bailavam
golpeando-os contra o solo ao ritmo dos teares.
Na França, os tamancos ou sapatos feitos
de madeira são denominados “sabot”, vinculado à palavra francesa sabotage,
porque os operários da indústria, quando em greve, costumavam colocar seus
tamancos entre as engrenagens das máquinas para danificá-las.
Há alguns anos, numa programação do
INCRA em Brasília/DF, assisti ao filme “A Árvore dos Tamancos”, que conta a
história de um grupo de famílias que moravam num mesmo agrupamento de casas na
área rural de Bérgamo, norte da Itália. Entre essas famílias encontrava-se a de
Bastiti, que tem um filho com razoáveis dotes intelectuais e é convencido pelo
pároco local a colocar o filho na escola em vez de utilizá-lo apenas na
lavoura.
Para isso existiam enormes obstáculos: A
escola ficava a seis quilômetros de caminhada e a família do menino vivia numa
situação muito precária, com dificuldades até para comprar roupas e materiais
escolares para ele.
Depois de transcorrido um razoável
período de aulas, os tamancos do menino (por sinal os únicos que possuía)
ficaram deteriorados e impossível de serem
utilizados. Bastiti, o pai, tenta dar um jeito na situação e, escondido, corta
uma árvore da propriedade do senhor das terras, um latifundiário que vivia da
exploração dos pobres lavradores no final do século XIX.
Por esse “roubo” Batisti e sua família
acabaram expulsos da propriedade.
O filme, considerado a obra mais
importante do diretor italiano Ermano Olmi, produzida em 1978, retrata as
dificuldades vivenciadas pelos trabalhadores rurais no final do século XIX, no
norte da Itália, como exploração, sofrimento, medo, injustiças, servidão, etc.
Trabalha, também, o papel da
religiosidade na vida dos camponeses como forma de ajudar a encarar e suportar
a dureza da vida cotidiana orando ou rezando nos momentos mais cruéis.
Mostra,
ainda, que mesmo em circunstâncias tão adversas, a comunidade encontra forças para tentar viver feliz. Faz festas e
seus integrantes dançam, cantam, celebram casamentos, batizados e outros
eventos festivos.
Lembrei
muito da comunidade de “Felipa”, ai mesmo em Itapecuru Mirim, que nos anos
setenta vivia espremida entre cancelas e cercas de arame farpado, sem espaço
para suas roças anuais, e mesmo assim promovia verdadeiros festejos aos seus
santos padroeiros e rememorava sua matriz africana com a dança do tambor de
mina e a dança do coco sempre que era visitada e os visitantes não eram os
jagunços das fazendas próximas.
Ainda
temos por aqui muito do século XIX e mesmo agora vemos trabalhadores rurais,
não apenas sendo expulsos de povoados fundados pelos seus ancestrais há mais de
duzentos anos, mesmo sem cortar nenhuma árvore para fabricar um tamanco, mas
assassinados impiedosamente por pistoleiros contratados por latifundiários.
Alguns poucos pistoleiros são presos, mas nenhum dos mandantes está na Cadeia.
Viva
o século XIX! Aqui a justiça do século XXI vem de tamancos desgastados...
Neste
mês de fevereiro comemoramos os aniversários de nascimento de Joaquim Gomes de
Sousa (15/02/1829); Newton de Carvalho Neves (14/02/1896); Luiz Gonzaga
Bandeira de Melo (14/02/1915); Cônego José Albino Campos (04/02/1922); Osman
dos Santos Coelho (09/02/1928); todos
patronos da Academia Itapecururuense de Ciências, Letras e Artes – AICLA e
figuras icônicas da nossa rica história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário