sábado, 20 de junho de 2020

PIPAS

  *Eduardo Sandes

Tenho lembranças de outros dias. Hoje sentei no quintal de casa e me transportei no tempo e espaço (a apenas alguns metros de onde estava). Olhei pro céu, uma pipa solitária dançava no céu limpo e azul manchado com algumas nuvens. Senti o cheiro de vó e de repente percebo que todas as minhas lembranças de infância têm cheiro de vó.

Sentado na varanda da casa da minha avó, onde cresci, olhando o céu, contando pipas e confundindo com os pássaros (àquela época eram poucos pássaros pequenos, em tempos normais pedras troavam por sobre os telhados atrás das pipiras).

Era a temporada das pipas. Aparentemente na mente das crianças o tempo era contado por essas temporadas invisíveis; meu calendário era bem diferente dos demais meninos da rua. Meu mundo era o quintal de casa, dois quintas unidos e infinitos. Tínhamos o tempo de manga, quando eu dificilmente almoçava e passava o dia em cima do pé de manga fazendo dele tantas coisas a mente de um imaginador pode imaginar. Tinha o tempo d a goiaba, mas o pé de goiaba da casa da minha vó fora cortado depois que eu adoeci, tinha muitas lagartas lá. Tinha também o da castanha e caju; eu e meus irmãos travávamos verdadeiras guerrilhas com as pedras do quintal contra os meninos dos fundos, é que o pé de caju ficava do lado deles, mas caia muitos cajus pro nosso lado. Eu era o comandante atirador mor, a baladeira mais potente era a minha; o irmão mais velho.

Os meninos da rua também tinham seus tempos, entre frutas e brincadeiras.

Lembrava, nesse momento, do tempo das pipas. Olhava as coloridas e, vendo a direção, reconhecia que o local escolhido no dia era  a rua Tomás de Aquino, na época ainda de pedra. Todos os meninos das ruas de perto iam pra lá, se exibir e mostrar os pavões que voavam que eles haviam feito ou comprado. Os mais ricos, obviamente, tinham pipas mais pomposas, toda sorte de cor e papel; papel crepom, papel seda... azuis, amarelas, róseas. Os mais pobre se contentavam com sacolas de supermercado azul e branco ( o que não diminuía sua beleza aos seu olhos). Como grandes competições haviam gritos, vaias e ovações. "-iiiii a minha tá mais alta." "-Mas tu é besta, eu tô só brincando, deixa eu botar a minha pra voar que tu vai ver". Os capitães do asfalto (modo de dizer, poucas ruas ali perto tinha asfalto) guerreavam bravamente e era questão de honra. A mais alta vencia. Vez ou outra acontecia de uma pipa cair e começar a caçada pela pipa perdida. Eu adorava. Ficavam sempre atento vendo onde elas iam cair, se perto ou se longe. De toda forma pipas de outras terras e ruas mais distantes caiam no quintal da minha avó após fazerem uma viagem desgarrada. Era uma alegria saber que agora aquela pipa danificada que ficara enganchada no pé de manga seria minha. Não iria empina-la na rua ou competir com os outros meninos, mas meu quintal ficava mais colorido com aquela pipa, os ventos se tornavam visíveis e era a minha vez de desfilar com aquele objeto simples que me trazia tanta alegria. E assim eu ficava, as pipas vizinhas no céu e  eu com minha pipa quebrada dentro do meu quintal.

Vez ou outra dava em briga, era quando cada um tomava seu rumo de casa no fim da tarde. O sol se despedia de todos, amanhã seria outro dia e outra competição, era hora de consertar as pipas que quebraram, ou fazer outras, de tomar um banho e jantar vendo tv. A noite pertenciam a outras brincadeiras. E dormíamos, e os sonhos voavam como pipas coloridas, mais ou menos altas e belas.

*Eduardo da Silva Sandes, filho de Maria José Araújo da Silva e Edvaldo Viana Sandes. Nasceu em Vargem Grande  (MA) em  27 de fevereiro de 2001. Estudou nas escolas Farina, com uma breve passagem pela escola Raulina de Sousa Silva,  depois ingressou na Escola Comunitária Dom João Antônio Farina. Atualmente está inscrito no curso de História esse ano (2020) na UFMA.
É amante das artes entre as quais, música, literatura, artes plásticas, cênicas. A leitura e escrita sempre fizeram parte do seu dia-a-dia. Atua em Movimentos Sociais com foco na juventude, assim como na promoção e produção cultural. Gosta muito de ler, ouvir música, escrever, conversar.





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